Esta semana, arrisco-me a escrever a crónica noutro registo, o da poesia. Mas não se enganem com o tom, esta é uma fábula para adultos. Num Cabo Verde cada vez mais parecido com um curral moderno, onde os lobos vestem gravata, os carneiros batem palmas, os mochos citam leis que não se aplicam a todos, e as serpentes assinam decretos de olhos fechados, resta-nos a metáfora como último reduto da liberdade. Porque há verdades que só a poesia consegue dizer sem censura. E há silêncios que só rimam com revolta.
Na ilha onde o sol nasce cedo,
venderam ao povo um falso enredo:
liberdade, justiça e pão serviram-no frio, temperado em traição.
Os lobos, disfarçados de governantes,
brindaram à pátria com sorrisos brilhantes.
Uivam promessas sob a luz do holofote,
enquanto roubam debaixo do capote.
Nos vales da lei, altivos e calados,
mochos de toga e olhos vidrados
murmuram sentenças em tom indeciso,
e ocultam verdades num pacto omisso.
As serpentes, com voz calculada,
sibilam leis em língua dourada.
Vendem a pátria num contrato informal;
nada é público, tudo é selado
com punho de luxo e respaldo legal.
E os carneiros… Ah, os carneiros!…
batem palmas com gestos ordeiros.
Não leem jornais, mas sabem de cor a cartilha,
e lambem, em fila, as garras da matilha.
No meio, sem rosto e sem nome,
um rapaz curvado, herdeiro da fome,
caminha exausto, com o país às costas,
silencioso e ferido de promessas mortas.
Chamam-lhe Povo, com pompa e louvor,
mas é só dor disfarçada de valor.
Perguntaram-lhe, com riso mordaz: “
- O que queres para ti, rapaz?”
Ele ergueu os olhos com serenidade: “
- Quero viver…com dignidade.”
Riram-se com escárnio e pose banal,
chamaram-lhe louco, subversivo e radical.
E para o calar, com zelo precioso,
deram-lhe um tacho no governo local.
A pátria tornou-se num curral consentido,
onde tudo se vende, se troca, e é fingido.
Mentem com dados, com o povo a olhar,
somos um paraíso fiscal à beira do mar.
E no fim desta história sem moral,
quem grita justiça é varrido da memória.
Mas quem lambe botas com ar de doutor
sobe ao palácio…
ao som do hino e do tambor.
FORTE APLAUSO
Comentários
Arpy, 9 de Jul de 2025
Grito de revolta e de tomada de consciência de uma esperança a brotar no chão das nossas ilhas. Mais uma vez e como no passado, a poesia exprime, alimenta e serve de bússola a um novo horizonte a despontar nos céus de Cabo Verde. Sempre assim foi, assim é e continuará a ser a manhã e sempre os caminhos da História.
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Mário Semedo, 9 de Jul de 2025
Garçom … aqui neste periódico jornal
Você já cansou de escutar
Centenas de casos como este
Garçom
Neste jornal só se escreve “debanda”
Este caso é mais um… não anda
Mas preste atenção, por favor
Saiba
Que este meu grande poeta
Hoje vai se graduar
Mandou uma carta pra não chorar
Deixou em pedaços a caneta do profeta
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jcf, 9 de Jul de 2025
Versos de Maré Cheia
Li os teus versos ao romper da luz,
e a ilha, de súbito, ardeu-me no peito.
A tua voz — mel e punhal —
abriu caminho por entre as costuras do dia.
Fiquei sem chão.
Ou talvez com chão a mais,
duro, liso, escorregadio,
como quem sonha que dança
num campo de batalha molhado.
Tu, vestida de metáforas
e com a pátria na língua,
fizeste-me querer escrever-te com as mãos,
sem gramática nem clemência.
---, 9 de Jul de 2025
Há um grito que me cresce nos dedos,um grito que não se ouve — mas treme.
E se um dia leres isto em silêncio,
talvez sintas a tempestade discreta
que te deixei entre as sílabas.
Porque há verdades que não se dizem.
Só se entregam.
Any Delgado, 9 de Jul de 2025
Muito obrigada pelo seu comentário em forma de poema. Um bem haja!Responder
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