Tinha uns dez anos. Ele me convidou se eu queria acompanhá-lo em um passeio. Nossa, que alegria! Era um convite irrecusável. Claro que eu queria.
Eu já o admirava muito. De paixão. Ouvia atento as histórias que minha mãe contava sobre ele. De como ele era inteligente. Cursava direito em Portugal. Que era amigo de Amílcar Cabral. Uau! Amílcar era um mito, um mistério. Imagina o cara ser amigo dele?!
Topei o passeio e lá fomos a pé visitar um bairro de Fonte-Ana, a uns dois quilômetros de Cabeça Carreira onde ele morava e onde moravam os avós mais fabulosos que o mundo já teve e os primos mais queridos. Claro, estava em casa deles sempre que surgia a menor folga.
Ele chamou minha atenção para a pobreza que cercava as casas de nossos irmãos e a miséria que se via por todo o lado. 1960. Nunca tinha olhado para a realidade de nosso povo com essas lentes.
Tentou explicar-me a razão dessa miséria. Pela primeira vez ouvi uma palavra que viria a ser tornar corriqueira: colonialismo! “O que é isso?” — perguntei intrigado. Felisberto estava politizando um menino de 10 anos. A fome do povo era urgente. Não podia esperar nem que os meninos crescessem. Por todos os meios era preciso achar um caminho para o resgate.
Com uma pequena máquina fotográfica ele tirou inúmeras fotos. Quando voltamos para casa, ele me levou para o quarto dele. E do lado ele havia improvisado um laboratório fotográfico.
Era um quarto escuro onde ele tinha improvisado genialmente tudo. Parecia o laboratório do tio Patinhas. E pela primeira vez na vida eu participei do processo de revelação de fotos. Os vários banhos. Cada um em um tipo de líquido especial. A cronometria do tempo. E as fotos aparecendo, em preto e branco. E o varalzinho onde ficavam a secar. Fiquei eufórico. Mas ele me avisou sério: ninguém podia saber disso... Justo na hora que planejava contar para Totinho e Nandinho, meus amigos de peito!
Das fotos minha Mãe não ficou sabendo nunca, mas do passeio à Fonte-Ana no dia seguinte lhe contaram. Amiga fiel e prima-irmã, ficou sem jeito de me proibir andar com ele. Mas fez um mistério que me deixou medroso: “Felisberto anda metido com coisas sérias e você é ainda muito menino para saber disso”. Ela conseguiu potencializar duas emoções fortes: confusão e curiosidade.
Mamãe conversou com ele. Nem imagino o quê. Mas ele ficou sabendo que eu não falei uma palavra sobre o laboratório clandestino. Conhecedor da habilidade policial dela de extrair confissões dos investigados, ganhei sua confiança, e um laço especial se estabeleceu desde então.
Três anos mais tarde saberia que ele fazia parte dos movimentos de autodeterminação das colônias portuguesas, bem como de outros ligados a nações africana, seu envolvimento com o partido de libertação de Guiné e de Cabo Verde, com Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Kuame Nkrumah, Eduardo Mondlane. Minha admiração por ele disparou...
Saberia mais tarde que ele era um dos principais fichados pela Polícia política salazarista — PIDE — e que eles “amavam convidá-lo” para uma “conversa ao pé d’orelha”.
Adolescente, tremia de medo só de passar na rua onde ficavam os escritórios dessa famigerada PIDE, inspirada e organizada nos moldes da GESTAPO. Imaginar uma “conversinha” dessas?! DIOS libra e torna tadja!
Por tudo isso, Felisberto se tornou meu grande herói. Nunca conheci Amílcar Cabral e seus ideais de libertação a não ser por foto e por leitura de seus raros textos, alguns guardados como relíquia até hoje. Mas Felisberto eu conhecia. Sua coragem, seu destemor, sua ousadia, seu comprometimento com o povo sofredor, com os desfavorecidos, com a nação, com a Pátria. Ele era meu herói nacional.
Era ainda adolescente quando a PIDE levou vários revolucionários cabo-verdianos para a farsa de julgamentos, por crime contra a segurança nacional. Sempre a mesma cantilena. Só mudam os tempos. Eles só não contaram com um personagem aguerrido, competente, destemido e pronto para guerra: Dr. Vieira Lopes como um dos advogados de defesa, parte de um litisconsórcio.
Menor de idade, embora minha altura escondia bem a idade, não podia assistir as audiências. Ele pediu a um dos oficiais do cartório me emprestar o paletó e deu um jeito para que entrasse na sala do Tribunal. Seu espírito combativo, sua entrega total em defesa do cliente, sua retórica brilhante, seu raciocínio rápido, seu domínio das leis me deixou babando... Foi uma festa, um banquete para mim. Guardo a imagem sofrida, de um agente da PIDE que foi interrogado por ele. Dava dó. Era nossa desforra. Nosso herói estava em cena. A família toda orgulhosa. O pai dele, tio Germano, sempre discreto, curtindo calado. Mas o tio dele, meu avô, que sempre foi um revolucionário convicto, e que não sabia o que era medo, não media palavras: “Felisberto dja kaba ku PIDE”.
A vida nos distanciou, mas a amizade, a admiração, nunca terminaram. Certo ano passamos o réveillon em Lisboa juntos. Foi especial demais. A chovia e o frio não foram capazes de nos tirar o prazer da companhia mútua, a profundidade da conversa e o desfrutar do afeto. Ele não era de beber, apenas um brinde ou um vinho nas refeições. Conversamos sobre tudo. E não lhe faltava assunto. Qualquer tema ele abordava com conhecimento de causa. Em profundidade. Uma cultura humanista rara.
Do Brasil mantivemos muito contato. Claro, ele sempre questionando o uso de e-mails. Os cuidados internalizados durante os longos e duros anos de luta revolucionária o fazia ver ameaça em tudo. Mas foi ele, em um dos nossos encontros, que me fez conhecer um dos maiores poetas brasileiros, Catulo da Paixão Cearense, cuja obra ele conhecia bem, com poeta que era. Com a sensibilidade refinada que lhe era peculiar me pediu levar-lhe essa música, em tempos que não havia Internet: “Luar do Sertão”:
Oh! Que saudade do luar da minha terra
Lá na serra branquejando folhas secas pelo chão
Este luar cá da cidade tão escuro
Não tem aquela saudade do luar lá do sertão.
Se a lua nasce por detrás da verde mata
Mais parece um sol de prata prateando a solidão
E a gente pega na viola que ponteia
E a canção e a lua cheia a nos nascer do coração.
Coisa mais bela nesse mundo não existe
Do que ouvir um galo triste no sertão que faz luar
Parece até que a alma da lua que descansa
Escondida na garganta desse galo a soluçar.
Ai quem me dera se eu morresse lá na serra
Abraçado à minha terra, e dormindo de uma vez
Ser enterrado numa cova pequenina onde à tarde a sururina
Chora a sua viuvez.
Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão (refrão).
Quando um dos meus melhores amigos foi de férias para Lisboa, dei-lhe o contato telefônico do Felisberto, recomendando-lhe que talvez ele lá não estivesse. Ligou e ele o atendeu gentilmente. Dedicou um dia inteiro de passeio turístico na cidade que conhecia como Fonte-Ana, com direito a uma bacalhoada, regado a muito papo. Zé se tornou fã dele até hoje e chorou comigo a partida dele.
Esse era o querido Felisberto. Não estamos lidando com um ser comum. Ele era gênio. Um superdotado. O maior que eu já conheci até hoje — e olha que conheço muita gente genial.
Lidar com gênio é tarefa quase impossível. Gênio opera em outra frequência. Tem outros tipos de vibrações. Não funciona como ser comum. De vez em quando a gente consegue contato com ele, mas isso é exceção e não regra. Seu quociente de inteligência mental (QI) é fora de série, mas seu quociente de inteligência emocional ou relacional (QR), era deficiente.
E o pior, gênio sempre acha que todo mundo é igual a ele. E quando ele descobre que não é verdade ele não sabe como se comportar. É quando dá curto-circuito.
Soube — faz apenas dois anos — que ele trocou o nome da filha, que ele escolhera a dedo, porque eu me havia me apaixonado pelo nome e o posto na minha. E eu havia conversado com ele sobre isso. Ele nunca me disse nada, mas fez isso... Ela sofre para regularizar seus documentos até hoje. O que para a maioria poderia ser motivo de orgulho, para ele foi uma afronta. E nunca me disse nada.
Soube também recentemente de um gesto absurdo com pessoa especial, que muito o amava e ama, e que ele também amava, por algo com o qual não concordava.
Esse era nosso querido Felisberto.
Intenso em tudo que fazia. Não conhecia meio termo. Ou era ou não era. Por isso afastou-se de muitos antigos compatriotas e amigos de luta quando, depois da independência, o comportamento deles mudou. Mudou porque eram outros tempos. Mas ele não entendia assim. E não os poupava de críticas duras.
Não sabia o que era medo. Certa vez ele citou uma frase histórica de um parente nosso, Tadeu Monteiro, que exerceu funções administrativas municipais: “Na vida, tenho um único medo: de morrer de parto”. E deu aquela gargalhada de aprovação que ele tinha quando dizia alguma coisa fora do comum.
Mas me lembro do nosso último encontro e de como ele foi carinhoso para comigo, numa dimensão humana sem limites.
Fora visitar minha mãe após a morte do meu pai. Me visitou algumas vezes. Lhe contei do meu receio de me despedir da Mamãe. De pronto se prontificou para ir me buscar. Foi providencial.
Hora de dizer adeus. Ela e eu tínhamos certeza de que era nosso último encontro. Nos abraçávamos, chorávamos, mas não conseguíamos nos desgrudar um do outro.
Sabiamente Felisberto entrou no nosso meio com muito carinho e doçura:
— Chega, vocês vão se ver muitas outras vezes. Afinal, onde fica a vossa confiança em DEUS?
E suavemente ele, que já havia colocado minha mala no carro dele, deu um beijo na minha mãe e foi me empurrando para a porta.
Entrei no carro chorando compulsivamente. Ele respeitou minha dor da minha separação. Afinal a conhecia muito bem. E ficou em silêncio, por muitos quilômetros, enquanto soluçava de dor.
Essa é a dimensão do Homem que guardarei para sempre! Sensível com as dores do outro. Com tudo que machuca o outro. Podendo esse outro ser um parente, um amigo, o seu povo. Sensível com as dores do seu próximo.
E por falar em próximo, ele amou o próximo como poucos. Se Jesus resumiu a essência da religião em “amar a DEUS e amar o PRÓXIMO”, Felisberto foi sem dúvida mais seguidor de Jesus do que muitos que têm um discurso bonito e uma práxis desprezível.
Nesse encontro falamos sobre espiritualidade. Eu não tenho dúvidas de que ele era um discípulo de Jesus de Nazaré, acreditem os religiosos fundamentalistas ou não.
Aliás ele comentou comigo que deixou de ir à igreja que ele conheceu ainda criança, porque não se sentia bem lá. Ninguém chegava perto para uma palavra. “Até a pintura”, disse ele, “ficou uma coisa esquisita”. “Tenho ido à Igreja Católica e acreditas que tenho me sentido bem e até o padre vem falar comigo?”
Contestador por natureza, ficou esperando uma contestação minha. Mas eu havia acabado de descobrir Philip Yancey, Henri Nouwen, Brennan Manning. Estava em nova jornada de espiritualidade, descobrindo a Maravilhosa Graça de DEUS. Incapaz de ser contida nos redutos da religião, nos estreitos compartimentos denominacionais. Disse-lhe:
— Sabes de uma coisa, fiz uma descoberta intrigante. Que Jesus é maior que o Cristianismo.
Arregalou os olhos. Deu aquela risada que eu conhecia bem, quase que pigarreando e me provocou:
— Quero saber mais.
Esse era Felisberto Vieira Lopes. Damba Lopes. Kaoberdiano Dambara.
O gênio!
E.T.: Dedico esta homenagem à prima Diara Kady Rocha, que não conheço pessoalmente, mas com cuja dor me identifico e compartilho.
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