É perfeitamente compreensível que os “guardiões” das entidades visadas embarquem-se em estratégias (por vezes maquiavélicas) de autodefesa no sentido de se distanciar, ou de se “limpar” de qualquer alegação ou da perceção depreciativa da corrupção a que poderão estar associados. Embora não se deva confundir a “perceção” com o “facto consumado”, o certo é que ela não se forma do nada, ou de um vazio. A “perceção”, negativa neste caso, enquanto sentimento do povo, é um indicador de que “alguma coisa não vai bem”. Por isso, quem governa não deve descartá-la e nem desprezá-la pura e simplesmente. Os visados podem até concordar ou discordar de que estão a envolver-se em atos de corrupção, ou que estão a ficar cada vez “mais” ou “menos” corruptos, mas isso não mudará em nada a “perceção” e o “sentimento” do povo, que se formam na vivência do quotidiano e das práticas institucionais observadas no dia a dia desta terra.
O fenómeno de corrupção tem sido nos últimos dias um buzzword, ou seja, a “palavra da moda” na esfera pública Cabo-verdiana, na sequência da publicação de um estudo da Afrosondagem/Afrobarómetro, sobre o tema “Instituições, liderança e governança”, e posteriormente com a publicação do relatório “Corruption Perceptions Index” da Transparência Internacional, que coloca Cabo Verde na posição 35 no Índice de Perceção da Corrupção 2022.
A corrupção é geralmente definida como “abuso do poder recebido para a obtenção de vantagem pessoal”. A sua ocorrência manifesta-se única e exclusivamente mediante casos judicialmente comprovados de abuso de poder para a satisfação de interesses pessoais e/ou particulares. Por seu turno, a perceção da corrupção entende-se como “o grau em que a corrupção é percebida a existir entre os funcionários públicos e políticos” (Transparência Internacional). E qual é o relacionamento entre esses dois conceitos? O estudo da Afrosondagem supramencionado baseou-se numa pesquisa de opinião conduzida junto de cidadãos comuns em todo o país. Por sua vez, o relatório da Transparência Internacional é produzido anualmente a partir da avaliação de um conjunto de medidas institucionais levadas a cabo pelos estados, e no nosso caso, pelo governo/instituições Cabo-verdianas. Se os dados relatados pela Afrosondagem “penalizaram” um conjunto de instituições visadas, o relatório da Transparência Internacional trouxe um balão de ar fresco para essas mesmas instituições, e motivo de algum regozijo para os seus guardiões.
Os dados avançados pela Afrosondagem demonstram que entre 2019 e 2022 registou-se um aumento generalizado da perceção da corrupção em Cabo Verde, em todas as instituições avaliadas conforme ilustra a figura 1.
Figura 1- Perceção de corrupção volta a aumentar em Cabo Verde
Fonte: https://www.afrobarometer.org
Este aumento significa tão somente que houve um incremento do número de Cabo-Verdianos que “acham” ou que “percebem” que os funcionários públicos e políticos estão envolvidos em corrupção no país. Esse aumento da perceção da corrupção provocou, como era de se esperar, reações diferentes junto das instituições e de outros atores visados pelo estudo da Afrosondagem, e o público em geral. Por um lado, os que pertencem aos círculos dos que “governam”, e que se sentem feridos, encaram o “estudo” e os reportados com algum ceticismo, questionando a sua relevância e descrevendo-s como “fake news”, numa vã tentativa de se autodefender e de se ilibar de práticas corruptas. Por outro lado, o cidadão comum e a sociedade civil no seu todo — os “governados”, vêm o aumento da perceção de corrupção como uma chamada de atenção e uma oportunidade para que as os atores visados e as instâncias governativas arrepiem caminhos, adotando e implementando medidas que mudem os sinais e/ou os fundamentos que estiveram na base da formação daquela perceção.
Isto porque, independentemente das posições assumidas publicamente pelos atores visados, a “perceção da corrupção”, como reportam os dados da Afrosondagem, descreve tão somente o “sentimento” do povo cabo-verdiano (embora só uma parte dele se trate) perante uma situação, que na sua ótica, “não está bem”. Cogita-se que esse sentimento estriba-se numa certa desilusão e defraudação perante práticas recorrentes de desvio de poder, e corrosivas para o nosso sistema democrático e o nosso processo de desenvolvimento. E o povo questiona, “será que aqueles que governam estão a abusar do poder recebido como oportunidade para maximizar as suas próprias vantagens e interesses, em detrimento da maximização do nosso bem comum?”. E sendo impotente perante o “uso indevido do seu poder”, que se manifesta em “escândalos”, “casos” e “casinhos” que cheiram corrupção, não resta outra alternativa a povo senão dizer candidamente aos seus governantes, “é nossa perceção que vocês estão a envolver-se cada vez mais em atos de corrupção”.
É perfeitamente compreensível que os “guardiões” das entidades visadas embarquem-se em estratégias (por vezes maquiavélicas) de autodefesa no sentido de se distanciar, ou de se “limpar” de qualquer alegação ou da perceção depreciativa da corrupção a que poderão estar associados. Embora não se deva confundir a “perceção” com o “facto consumado”, o certo é que ela não se forma do nada, ou de um vazio. A “perceção”, negativa neste caso, enquanto sentimento do povo, é um indicador de que “alguma coisa não vai bem”. Por isso, quem governa não deve descartá-la e nem desprezá-la pura e simplesmente. Os visados podem até concordar ou discordar de que estão a envolver-se em atos de corrupção, ou que estão a ficar cada vez “mais” ou “menos” corruptos, mas isso não mudará em nada a “perceção” e o “sentimento” do povo, que se formam na vivência do quotidiano e das práticas institucionais observadas no dia a dia desta terra.
A boa notícia é dada pela Transparência Internacional, anunciando um salto tímido de Cabo Verde da posição 39ª em 2021 com 58 pontos, para a posição 35ª em 2022 com 60 pontos no Índice de Perceção da Corrupção. Esta boa notícia pode até servir de conforto para os “percepcionados como corruptos”. Contudo, a corrupção só pode ser realmente “curada”, não simplesmente com meras medidas formais, mas sim, com uma verdadeira mudança da cultura governativa e institucional, onde “aqueles que governam”, governam de facto “em nome do povo, para o povo, e com o povo”. Quiçá esta cultura se torne escola, e que contribua para a mudança da perceção que o povo tem dos seus governantes.
Praia, 24 de fevereiro de 2023
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