O arquipélago da morabeza gestou e tem crescendo no seu seio uma nova Medusa, cujo pensamento crítico, durante anos petrificou. Paira sobre as ilhas o véu branco da despolitização. Despolitização essa, que tudo evita e nada muda. O evangelho da despolitização nos é dado pelos apóstolos da classe dominante, sempre que surge uma oportunidade. Ensinam-nos que não se deve debater política, e que tal tema não deve ser abordado pelos professores nas salas de aula. E pregam mais, que os jornais se aquietem em seus lugares e apressem-se a ser neutros. Bem, quanto a nós, os hereges, seguiremos pelo rumo do pensamento crítico, pelo rumo do debate sem censuras ou tabus. Mas entendemos o receio dos ideólogos da classe dominante. Eles entendem por Política, a política partidária. E, impregnados pelo pensamento binário, consideram que qualquer crítico ao lhes dirigir a crítica, seja adepto de um outro partido. Por confundirem a política partidária com a Política de grande porte, desejam sufocar a crítica, e para isso é preciso demonizar o debate político. Parecem não ter perspicácia suficiente para ver, que é impossível abafar o debate político por muito tempo. Precisamente porque a Política é dotada de uma envergadura olímpica no campo social, no sentido de que, tudo que fazemos, pretendemos fazer, ou somos proibidos de fazer, é regido por questões políticas. Em suma, tudo é política. Ao dizer que tudo que fazemos ou somos proibidos de fazer constitui um ato político, peço que pensem por exemplo, nos Estados Unidos na década de 20 do século passado, nessa época implementou-se a Lei Seca. Consumir bebidas alcoólicas ou não consumi-las, revelou-se um ato político para o povo.
Pensem por exemplo, na Alemanha Nazista da década de 30, com a publicação das leis antissemitas. Os judeus ficaram proibidos de caminhar pelas calçadas, ou seja, o mero fato de andar sob o passeio público, revelou-se um ato político. A Política, a grande Política, não essa deplorável que vemos no parlamento, tem como objeto toda realidade social. Portanto ao transmitirem a noção deturpada de que a política partidária é a única forma de Política, e ao serem os professores censurados de qualquer debate político, impedem os alunos de ter um debate crítico acerca da sua própria realidade. Alienam-se cidadãos e formam-se analfabetos políticos. A implicação mais contundente desta "cultura" foi o alto número de abstenção nas últimas eleições. Se observarmos por esse raciocínio fica cristalino tal resultado. Qualquer humano, quando interioriza que a Política se resume a política partidária, ao constatar a falência dos partidos da ordem burguesa, pensa constatar a falência da própria Política. Logo, se abstém e despolitiza-se.
A Política abarca a política partidária, mas não se esgota nela! Não queremos ser aqui, Cassandra de Tróia, no entanto, devemos alertar que a despolitização consciente ou inconsciente de cidadãos e de pertinentes setores da sociedade cabo-verdiana, traz consigo graves prejuízos. Despolitizar é deixar que a iniciativa de sanar problemas sociais e econômicos residam nas mãos de uma minoria que age de acordo com os seus interesses de grupo ou de classe. Essa minoria é a classe dominante, é a burguesia. Por isso nada mais confortável para os partidos da ordem vigente, do que conviverem com cidadãos desinteressados e alheios a realidade social cabo-verdiana.
Esse processo de despolitização, ou melhor seria afirmar, esse processo de castração política é elaborado em vários setores da sociedade civil cabo-verdiana. A condição necessária para tal castração é ilustrar a sociedade como um elemento social homogêneo, o povo é destituído das classes sociais que o compõem. Ou seja, o conceito de povo torna-se abstrato, sem nenhum vínculo com a realidade. Assim nos é apresentada uma sociedade cabo-verdiana sem lutas de classes. Assim pintam com as cores da despolitização, um Cabo Verde que não existe. As lutas de classes, que por essência, são lutas políticas, constituem a genética da sociabilidade cabo-verdiana. A prova disso está nas revoltas que tivemos ao longo da nossa história. E por outro lado, o apagamento e a falta de destaque que recebem essas gloriosas revoltas no nosso sistema educativo, deixa patente o nível de alienação e a ignorância que nos impõem á realidade que nos cerca.
E quando acontece o milagre de abordarem o tema das revoltas, toma-se como tema, na esmagadora maioria das vezes, a digna e justa Revolta de Rubon Manel. Todavia, tratam dela apenas como um descontento da população e não como uma classe em confronto com a outra, e como se não bastasse, relegam para obscuridade três revoltas, pelas quais a Revolta de Rubon Manel seria impensável!
A saber:
- Revolta de 28 de Dezembro de 1811, que levou a marcha de três mil trabalhadores camponeses do interior da ilha de Santiago á vila da Praia de então, para protestar contra o aumento de imposto pelo Governo;
- Revolta dos engenhos no ano de 1822, em que os camponeses se ergueram contra o morgado e coronel Domingos Ramos;
- Revolta de Achada Falcão no ano de 1841, que levou os rendeiros a levantarem se contra o morgado Nicolau dos Reis.
Nessas revoltas não está em causa apenas o descontentamento, mas sim elementos muito mais centrais, como a tirania de uma classe sob a outra, a exploração dos trabalhadores, a desigualdade gerada pela propriedade da terra, e por fim, o confronto de uma classe dominante de então, que plana sob a égide da renda da terra, com uma classe trabalhadora despossuída, é o confronto entre o capital e o trabalho assalariado. Confronto que está presente ainda nos nossos dias.
Pode haver almas cabo-verdianas que ainda desconhecem a alienação e a natureza nefasta de não se ter uma consciência de classe, mas os trabalhadores e as trabalhadoras da República conhecem muito bem um tema muito presente para eles na sociedade cabo-verdiana, a repressão. Um evento recente na sociedade cabo-verdiana elucidará esta posição. Recentemente enfermeiros reclamam para si melhores remunerações e condições de trabalho. Sabiamente, quiseram tornar anónimas as suas denúncias, pois a repressão em Cabo Verde cai sobre os trabalhadores sempre que reivindicam posições antagônicas a ordem do capital. Quantos trabalhadores já não foram "transferidos" para outras ilhas como forma de represálias? Quantas vezes recomendam-nos a evitar explanar certas críticas no ambiente de trabalho? Quantas vezes executamos uma auto-censura para que nenhuma repressão nos caia em cima como relâmpago em céu sereno?
Diz-se repetidamente, partido sai, partido entra e o cenário não muda: os filisteus continuam corruptos, as regalias aumentam e o Estado se endivida. Isso só seria um paradoxo se ignorássemos a natureza da diferença dos partidos, que constituí uma diferença bastante supérflua. Até porque, se consideramos que os dois maiores partidos da República descendem de uma matriz comum(PAIGC), essa diferença diminui consideravelmente. Ambos são partidos da ordem burguesa, o que remete dizer que ambos concordam nos pontos estruturais de uma sociedade capitalista periférica e dependente como Cabo Verde. Em outras palavras, aceitam a desigual distribuição de renda, a superexploração do trabalho com trabalhadores recebendo remunerações abaixo do seu valor, a transferência de valor de Cabo Verde para o estrangeiro e o pagamento religioso e ilegítimo da dívida externa como algo inevitável. A diferença está essencialmente em que, um partido com viés mais à esquerda, se preocupa com os problemas sociais, mas não se digna a resolver o problema na sua ferida, e como consequência, opera uma digestão moral da pobreza com programas como Casa Para Todos, e não toca na raiz do problema que é, uma grande concentração de propriedade privada e monopólio de poder político. Não irei deter-me nestes temas pois outros autores já estudaram exaustivamente e muito melhor do que eu, demonstraram de forma brilhante o tema da propriedade privada e o monopólio de poder político como fonte de desigualdades sociais. Pensem por exemplo, na obra seminal Origem e Fundamentos da desigualdade dos Homens, de Rousseau.
O outro partido, sendo um partido de direita, é dotado de aspectos conservadores e até mesmo reacionários por excelência. Por exemplo se impõe um toque de recolher na vida noturna, introduz-se ensino religioso nas escolas, e por "religioso" entende-se somente a religião Católica, já que o Islamismo, a Umbanda, o Hinduísmo etc, têm a entrada vetada, mas o Estado é laico (dizem), também se censuram pinturas de vertente nudista, o que nos faz perguntar, o que seria dos censores se entrassem na Capela Sistina e observassem os nus de Michelangelo?
Nesse partido, satanizam as estatais, acreditam ser elas inoperantes e ineficazes. Acometidos pelo fetiche neoliberal, elegem a privatização como a panaceia da sociedade. Fazem um esforço hercúleo para privatizar as estatais, mesmo às custas dos direitos dos trabalhadores. Pensem por exemplo, nos salários atrasados dos funcionários da Cabo Verde Airlines.
Ambos partidos, consideram a democracia como uma festa eleitoral em que o povo comparece à cada quatro anos. Pois bem, hoje devemos lembrar-lhes que é hora de pagar o empréstimo da esperança que foi contraído dos trabalhadores e das trabalhadoras de Cabo Verde. Anunciamos que na festa da democracia, os trabalhadores não são os convidados, e sim, os donos. Acusamos de raquitismo e estagnação político-social, os profetas dos partidos da ordem burguesa. Que engolidos no amálgama de negociatas, tramas e cálculos sem escrúpulos, negligenciam a emancipação do proletariado cabo-verdiano. Estes ditos partidos, têm entre si uma relação dialética, cujo ponto fulcral de superação dessa relação e desses partidos, está na práxis social e política dos trabalhadores cabo-verdianos, tomando de volta em suas mãos as rédeas do futuro da República, executando contínua e simultaneamente, a reflexão crítica e a prática revolucionária.
Florianópolis, Fevereiro de 2020
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