Amílcar Cabral e o Cancro da Traição da Assembleia Nacional de Cabo Verde
Ponto de Vista

Amílcar Cabral e o Cancro da Traição da Assembleia Nacional de Cabo Verde

Volvidos mais de cinquenta anos do seu desaparecimento físico, o cancro da traição ainda persegue Cabral. A Assembleia Nacional de Cabo Verde, politicamente dominada pelo MpD, mostrou ser a mais nova versão do Brutus, traindo a Nação Cabo-Verdiana e subtraindo-lhe de celebração oficial a que merece o mais ilustre dos cabo-verdianos. O chumbo da resolução para celebração oficial do centenário do nascimento de Amílcar Cabral é, assim, a mais recente facada para com o grande líder histórico de Cabo Verde.

Em 1972, durante o simpósio em homenagem ao antigo líder do Gana Kwame Nkrumah, Amílcar Cabral, Secretário-geral do PAIGC, dissertou sobre o processo da queda daquele que foi um dos mais notáveis pan-africanistas e arquiteto da independência e unificação africanas. Tendo sido deposto por um golpe de Estado em 1966, organizado e financiado pelos serviços de informação ocidentais, Nkrumah foi acolhido por Sekou Touré e acabaria por morrer, supostamente, vítima de cancro de próstata em 1972. No seu discurso, Cabral argumentava que o verdadeiro culpado da morte de Nkrumah não terá sido o cancro de próstata, como atestava a certidão de óbito, mas sim o que chamou de cancro da traição.

Volvidos mais de cinquenta anos do seu desaparecimento físico, o cancro da traição ainda persegue Cabral. A Assembleia Nacional de Cabo Verde, politicamente dominada pelo MpD, mostrou ser a mais nova versão do Brutus, traindo a Nação Cabo-Verdiana e subtraindo-lhe de celebração oficial a que merece o mais ilustre dos cabo-verdianos. O chumbo da resolução para celebração oficial do centenário do nascimento de Amílcar Cabral é, assim, a mais recente facada para com o grande líder histórico de Cabo Verde.

Embora os dois partidos com assento parlamentar posicionaram-se pela afirmativa, a resolução não conseguiu o apoio da bancada do MpD. No dizer do seu líder parlamentar, Paulo Veiga, a posição do bloco derivava basicamente de um pequeno detalhe técnico—o facto da resolução se constituir “um instrumento errado para o efeito.” Embora acostumado com o tamanho desrespeito que a casa parlamentar tem para com a Nação cabo-verdiana, tal posição, na voz de Veiga, é indicativa da falta de vontade de qualquer concertação. Tivesse sido somente o fato de se constituir “um instrumento errado,” o trabalho parlamentar permite ajustes e negociações com vista alcançar consensos. Ao mesmo tempo, tal desculpa mostra também uma tamanha covardia política. Sabe-se que o anti Cabralismo corre nas veias de várias figuras do MpD (uma simples consulta ao Facebook e consegue-se ver tal coisa). Aliás, o debate sobre o assunto, na sexta feira 27 de outubro, deixou bem claro a vaga anti-Cabral, sustentado por algumas vozes dentro da bancada do MpD. No entanto, procurou-se esconder por detrás de um detalhe técnico para tentar camuflar a perspetiva anti-Cabral que tem feito escola nas fileiras do MpD.  

Como dito, o anti-Cabralismo e, com isso, o anti-Cabral, é uma das mais poderosas forças que define um número de deputados do MpD —e alguns dos seus graduados, mormente os sem qualquer sentido de Estado. Tal como vários deputados e simpatizantes do PAICV, estes assumem e ditam a partidarização de Cabral, fazendo deste um ícone do PAICV. E, com isso, perde o processo de nacionalização deste eminente filósofo-rei (no sentido que lhe é dado pelo Platão). É preciso salientar, em letras grossas, que Cabral não é e nunca foi do PAICV. Cabral constitui um património de Cabo Verde, Guiné-Bissau, e do mundo. Quer queira-se ou não, o seu nome está escrito nos anais da história global. 

No que tange ao discurso anti-Cabral, existem duas facões dentro do MpD. Por um lado, existem os que preferem o silêncio (pelo menos público). Movidos por expediente e cálculo político ou sentido de Estado, alguns dos seus líderes escusam de publicitar discurso anti-Cabral.  Por outro lado, existem um número de atuais e antigos membros do MpD, incluindo algumas personalidades que foram seus dirigentes, que não hesitam em proclamar o discurso anti-Cabral. Para estes, qualquer celebração ou honra que é feita a Cabral traduz-se num ganho político do PAICV e, como tal, tudo deve ser feito para mitigar, senão mesmo anular, tal vitória do arqui-inimigo.  

Nota-se que o discurso público anti-Cabral não passa mais do que uma estratégia de visibilidade por parte de alguns deputados mirins perante os bosses do partido. Deputados de segunda ordem são os que mais se pronunciam publicamente contra a vida e legado de Cabral—mesmo caindo no ridículo (neste aspeto, o Facebook é um reservoir rico). Quem é que não se lembra da afirmação do deputado Emanuel Barbosa, de 29 de abril de 2019, na sua página de Facebook onde choramingava o fato de ter visto um quadro de Cabral ao lado do chefe do Estado. Para este deputado, Cabral nunca foi “uma figura do Estado e da República,” querendo com isso dizer que só é figura do Estado aquele/a que tivesse ocupado/a posição na estrutura do Estado pós-colonial. Argumento mais sem nexo, e deveras superficial, que carece de qualquer sustento teórico e facilmente desconstruído pela prática política moderna. Ou seja, por nunca assumir uma posição no Estado pós-colonial, Cabral não seria, assim, uma figura de Estado ou da República. Basta ver, por todo o mundo, personalidades que não tendo feito parte do aparato do Estado, são, no entanto, entendidos pelo seu próprio Estado, como figuras simbólicas, “sítios de história” que reforçam a ideia de excecionalidade da comunidade política. O mais interessante é que o próprio deputado nota que ao lado encontrava um outro quadro, da Cesária Évora. Embora a Cesária Évora não ter chegado a ocupar qualquer posição formal no Estado de Cabo Verde, no entanto não houve críticas algumas ao fato da sua imagem lá estar. Assim, facilmente, consegue-se notar que o problema era o Cabral—ou melhor, o anti-Cabral.

No debate de 27 de outubro, o deputado Euclides Silva, numa clara demostração da veracidade do efeito Dunning-Kruger, chega mesmo a negar a seriedade académica do Professor Hakim Adi, por este ter sugerido o nome de Cabral para a revista BBC World Histories Magazine no quadro do concurso sobre o melhor líder de todos os tempos. Com uma vasta bibliografia e reconhecido como uma autoridade em estudos africanos, o Professor Adi é assim desvalorizado pela escolha que fez em Cabral. Duvido que o deputado tenha dado ao trabalho de ler qualquer obra de Adi—e, no entanto, aparece com um tom depreciativo para com um académico de renome internacional e que chegou ao topo da carreira (correspondente ao professor catedrático no mundo da língua português). Para conseguir tal feito, ao contrário do que é corriqueiro na Assembleia Nacional, a palermice e a leviandade em nada ajudam. O ataque ao Professor Adi foi uma demonstração de anti-Cabral, querendo com isto sugerir que a falta de objetividade científica do Professor Adi o teria levado a escolher Cabral. Como dizem os lusos, “a ignorância é atrevida, adora dar palpites e certezas.” É preciso combater o viralatismo de todas as formas. (recorda-se que, enquanto presidente da JpD, o atual deputado teria organizado uma palestra online com um dos radicais do fascismo tropical brasileiro, Olavo de Carvalho, palestra essa que só não foi adiante por causa de pressões variadas). 

Já para o deputado Luís Carlos Silva, o foco foi no sentido de evitar o “culto da personalidade” (sic). Verifica-se, assim, uma grande confusão entre a celebração de uma efeméride, coisa normal em todo e qualquer Estado moderno, e o culto da personalidade. Será culto de personalidade, o fato dos EUA celebrar anualmente o dia de nascimento do seu primeiro presidente como o Dia dos Presidentes? E o caso de Portugal, com o 10 de Junho onde a figura Luís de Camões é o celebrado? Será um caso de culto de personalidade? Se calhar, para o deputado, a celebração do chamado Guy Fawkes Night no Reino Unido constituir-se-á um culto de personalidade a Guy Fawkes. Nessa linha, o Dia de Tiradentes, celebrado no Brasil, não passa mais do que um culto de personalidade à pessoa de Joaquim José da Silva Xavier, vulgo “Tiradentes.” Pelo contrário, a celebração de indivíduos de atos e histórias extraordinários é próprio do Estado moderno. A celebração dessas individualidades constitui um mecanismo mnemónico de reforço da identidade e coesão nacionais.

Em jeito de conclusão, é preciso lembrar que Cabral, enquanto líder da luta de libertação nacional, foi avesso ao culto de personalidade. Aliás, qualquer mente minimamente esclarecida sobre a sua obra política sabe que o princípio guia que o orientou foi o de não-insubstituibilidade. Ninguém era insubstituível e a instituição política detinha primazia sobre o indivíduo. Por essa razão, o seu assassinato covarde em nada fez travar a marcha para a libertação.   

*Ph.D. Professor Associado de Ciência Política (Simmons University)   

 

 

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