Despachos e pareceres escandalosamente contraditórios e informações falsas e fraudulentas na homologação dos relatórios de auditoria aos fundos do Ambiente e do Turismo mostram como o Governo protege os gestores das duas instituições rejeitando a sua demissão e eventual processo criminal, conforme proposta dos inspectores das Finanças que terão sido inclusive ‘convidados’ a alterar essas recomendações do relatório. Ainda assim, os ‘dossiers’ do FT e FA vão ser remetidos ao Ministério Público, ARAP e Tribunal de Contas por decisão do VPM, mas o mesmo Olavo Correia pede cautela na assumpção de indícios de crime e o envio dos documentos à procuradoria porque é necessária intervenção de “entidades competentes” sem referir que entidades são essas. Mais: documentos oficiais analisados por Santiago Magazine desmentem o VPM que havia negado o desaparecimento de relatórios no seu gabinete – afinal, sumiram sete relatórios, seis dos quais relativos ao FT e FA, mas só dois foram homologados pelo vice-primeiro ministro, mais de cinco ano depois de os receber (2018).
Os polémicos relatórios de controlo ao funcionamento do Fundo do Turismo e do Fundo do Ambiente, que estavam no Gabinete do Vice-primeiro ministro e ministro das Finanças para homologação desde 2018, foram finalmente aprovados e ratificados no passado dia 19 de Junho, com um extenso despacho assinado pelo governante em contradição factual e temporal com o despacho do inspector geral das Finanças, Domingos Pascoal Lopes.
Desde logo, as datas. O inspector geral das Finanças reaprecia o seu despacho anterior, de 28 de Março de 2022, mantendo a aprovação do relatório mas ressalvando algumas alíneas na sua nova decisão, com data de 13 de Junho de 2023 e escritas à mão, afirmando que o faz “nos termos do despacho do senhor Vice-primeiro ministro”. Ora, Olavo Correia só homologou os dois relatórios no dia 19 de Junho, e no texto manuscrito na primeira página do documento escreve que baseou-se “no parecer do Inspector geral das Finanças”.
Despacho do IGF sobre o Fundo do Ambiente: “Reapreciação dos aspectos relevantes, nos termos do despacho do senhor VPM, permite-nos manter a aprovação do relatório, com ressalva em relação à alínea a) da proposta, cujo acolhimento exige outras diligências das autoridades com competência para julgar”. Ou seja, seis dias antes de o VPM e ministro das Finanças emitir o seu despacho, Domingos Pascoal Lopes assina novo parecer citando os termos de um despacho de Olavo Correia que sequer existia. E o VPM, seis dias depois, vem concordar com a posição do IGF sobre um despacho que ele mesmo não tinha dado, logo, aceitando e aprovando uma fraude sob sua tutela directa.
“Publicar o relatório. Homologo o relatório nos termos do parecer do IGF”, assumiu o governante no início de um extenso despacho de homologação no qual diz “concordar com o IGF quanto à consideração relativa à proposta de exoneração do gestor” do Fundo do Ambiente (a tal alínea a’ que mereceu ressalva do IGF), porque “merece procedimento próprio, por isso não pode ser aceite a proposta nos termos formulados no relatório”.
As contradições no caso do Fundo do Turismo são mais flagrantes. Além da confusão das datas, com o IGF a emitir um parecer/despacho no dia 13 de Junho com base numa posição do VPM inexistente (Olavo Correia homologou só dia 19, e, paradoxalmente, “nos termos do parecer do IGF”), as considerações dos dois responsáveis não batem.
Crime
Domingos Pascoal Lopes reavaliou o seu despacho do ano passado, com base nos “aspectos relevantes, nos termos do despacho do senhor VPM”, mas o IGF só faz ressalvas em relação à alínea c) da proposta da equipa de inspectores, que pediu a demissão do gestor do Fundo do Turismo, mantendo entretanto a sua posição quanto à alínea a) dessa mesma proposta do relatório que apontou indícios de crime na gestão do FT, sugerindo com isso o encaminhamento do dossier para conhecimento do Ministério Público e eventual procedimento criminal.
“A apreciação dos aspectos relevantes, nos termos do despacho do sr. VPM, permite-nos manter a aprovação do relatório, com uma ressalva em relação à alínea c) da proposta, cujo acolhimento exige outras diligências das entidades com competência para julgar”, entende o IGF, num caricato despacho em que refere a “entidades com competência para julgar” (sub-entendido tribunais) num caso em que os inspectores estavam a pedir mera demissão do gestor.
Nesse quesito, Olavo Correia até concordou com o inspector geral das Finanças, recusando a proposta de exoneração do gestor do Fundo do Turismo (“merece procedimento próprio, por isso não pode ser aceite a proposta nos termos formulados no relatório”). Todavia, enquanto Pascoal Lopes viu matéria passível de crime na gestão do Fundo do Turismo, daí concordar com o envio do relatório para o Ministério Público, o vice-primeiro ministro tem outra leitura por isso não homologou a proposta que sugere acção criminal por indícios de práticas e condutas ilegais.
“Homologo o relatório, nos termos do parecer do IGF, com as reservas relativas aos aspectos referenciados na alínea a) da proposta-ponto 5, porque exige a intervenção das entidades competentes, antes de qualquer decisão conclusiva”, versão, de resto, já assumida publicamente pelo número 2 do governo quando disse taxativamente que não há evidência de crime nos relatórios do FA e FT, antes de o Ministério Público que tem, aqui sim, competência para investigar, chegar a tal conclusão. Para certos observadores trata-se de "uma forma de condicionamento da justiça" ou "uma tentativa de o VPM sair ileso deste problema, na medida em que se assumir agora que há indícios de crime não teria como explicar o motivo por não ter enviado os relatórios para o MP, como diz a lei".
Aliás, no seu despacho de 19 de Junho referente ao Fundo do Turismo, Olavo Correia, mesmo ordenando a remessa do relatório de auditoria ao MP, pede cautela no seu envio porque “exige a intervenção das entidades competentes, antes de qualquer decisão conclusiva”, sem no entanto mostrar que entidades são essas, sabendo que os dois relatórios já tiveram parecer favorável do coordenador, aprovação quase integral do inspector geral, homologação do ministro da tutela e já foram publicados, portanto, legalmente prontos para serem encaminhados ao MP sem necessidade de intervenção de qualquer outra “entidade competente”. O própro Olavo Correia disse em declarações à comunicação social na semana passada que a IGF por si só é obrigada a encaminhar ao MP para conhecimento relatórios que contenham indícios de práticas criminais, sem depender da tutela.
A discrepância de datas e afirmações falsas inseridas na reconstituição dos dois relatórios (IGF altera posição indicando para um despacho do VPM que não existia) podem ser enquadradas no capítulo dos Crimes contra a Fé Pública – Falsificação de documentos, previsto no número 1 do artº 234º do Código Penal, punível com pena de prisão de um a cinco anos em caso de inserção de falsidade em documento público e por funcionário público.
“Artº 234º - Omissão de Declaração ou inserção de falsidade em registo ou documento. 1. Quem, com a intenção referida no artigo anterior, omitir, em registo, em documento público ou particular, declaração ou facto que dele devia constar, nele inserir ou fizer inserir declaração falsa ou facto falso ou diverso do que devia ser escrito ou constar será punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou de 6 meses a 4 anos, consoante o instrumento objecto da falsificação seja público ou particular”.
Igualmente, esse acto administrativo – o despacho que homologa os relatórios de auditoria ao Fundo do Turismo e ao Fundo do Ambiente – poderá também ser considerado nulo e invalidado por conter inverdades e informações falsas em documento público, mas o conteúdo dos relatórios que manter-se-á inalterado.
Relatórios extraviados no gabinete do Olavo
O vice-primeiro ministro veio a público na semana passada negar o sumiço de vários relatórios de inspeção, denunciado dias antes pelo inspector de Finanças e coordenador dos dois relatórios, Renato Fernandes, acusado publicamente pelo MpD e pelo Governo de ser o responsável pela fuga dos documentos para a imprensa.
Entretanto, documentos e trocas de mensagens entre inspectores e seus superiores confirmam de facto que pelo menos sete (7) relatórios de auditoria de 2016 a 2023, tidos como classificados até a sua homologação e publicação, desapareceram dentro do próprio gabinete do Vice-primeiro ministro e ministro das Finanças.
“Cara IGAF (Inspectora Geral Adjunta das Finanças), Agradecia diligências junto dos serviços da IGF, no sentido de reencaminhar ao GVPM (Gabinete do Vice-primeiro Ministro), todos os relatórios anteriormente enviados e que ainda não foram homologados, visto que a nova direcção do GVPM tem dificuldades em localizar os mesmos”, escreveu o inspector geral, Domingos Pascoal Lopes, para a sua adjunta, Marisia Araújo, no dia 23 de Março deste ano (ver imagem em baixo).
No dia 31 de Março, Marisia Araújo manda uma mensagem para um técnico a solicitar, a pedido do IGF, “diligências no sentido de reconstituir os relatórios enviados ao GMFFE, e que não foram devolvidos para a IGF” e requeria a impressão de sete relatórios específicos, sendo três relativos ao Fundo do Turismo, três do Fundo do Ambiente e uma Auditoria ao Fundo Nacional de Emergência. Até este momento, o VPM apenas homologou dois e só agora em Junho: o relatório de controlo do Fundo do Turismo e o relatório de controlo ao Fundo do Ambiente.
Mapa com os relatórios desaparecidos no GVPM e que o IGF pediu a sua reconstituição
A inspectora adjunta ainda exige explicações sobre o eventual motivo da não reconstituição de algum relatório, prova de que os documentos desapareceram de facto, pois, à luz da lei (artº 904º numero 1 do Código do Processo Civil), só se pede reconstituição de processos em caso de extravio ou destruição. “Agradeço que aqueles relatórios que não forem possível reconstituir indiquem no quadro o correspondente motivo. Antecipados agradecimentos por este esforço adicional”, fecha a mensagem.
Sabe Santiago Magazine que ao todo serão cerca de duas dezenas de relatórios desaparecidos no gabinete de Olavo Correia e que andam a procurar de todas as formas. Por causa disso, os inspectores tiveram que ser chamados para irem assinar os relatórios novamente impressos.
Aliás, segundo fonte de Santiago Magazine, os inspectores que trabalharam os relatórios sobre o Fundo do Turismo e Fundo do Ambiente recusaram o ‘convite’ para modificarem a sua conclusão e proposta, razão pela qual o inspector geral teve de incluir as ressalvas a algumas alíneas que o Governo queria alteradas, afirmando, porém, e de forma infiel, que foi nos “termos do despacho do sr. VPM”, quando Olavo Correia ainda sequer tinha dado seu veredicto. O que acabaria por acontecer seis dias depois, lembrando o governante que o fez com base “no parecer do IGF”.
Ao fim e ao cabo, tanto o IGF quanto o VPM se desresponsabilizam de qualquer ligação directa e pessoal acerca das medidas e propostas formuladas pelo relatório, passando fraudulentamente esse encargo um para o outro.
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