...olhando para o quotidiano das nossas escolas e toda a realidade educacional, há uma significativa discrepância entre o que diz a Constituição da República, no seu artigo 78º, mas também aquilo que diz a Lei de Bases do Sistema Educativo, particularmente, nos seus artigos 5º e 11º que, quanto mim, deveriam estar mais presentes nas cabeças de todos os decisores políticos, dirigentes educacionais e professores. Julgo que se passarmos a ser mais rigorosos com aquilo que nós próprios nos propomos, nas duas Leis, para a nossa Educação, estaremos a dar um grande passo para, de facto, melhorarmos a Educação e fazer avançar este país. Na verdade, tanto a Constituição, como a Lei de Bases do Sistema Educativo, espelham a modernidade. As nossas práticas é que estão antiquadas.
Nos dias 16 e 17 do corrente mês, e no âmbito da comemoração do Dia da Criança Africana, a Rede Nacional da Campanha de Educação para Todos (RNCEPT), em parceria com a Uni-CV e demais organizações, levou a cabo dois dias de reflexões sobre as temáticas em título, envolvendo vários aspetos afins.
Na qualidade de Professor da Universidade de Cabo Verde e Presidente do Conselho para a Qualidade na referida Universidade, participei do evento que me pareceu de grande alcance, pois refletir e debater a Educação, do meu ponto de vista, é exercitar-se sobre o assunto maior de qualquer nação e de toda a humanidade. Afinal, é a Educação que nos faz tornar humanos, quando nascemos, e é com o Conhecimento que progredimos e asseguramos o nosso bem-estar comum.
Olhando para a nossa realidade, é percetível de que precisamos melhorar a qualidade da nossa Educação, daí, a necessidade de o Estado aumentar o seu Financiamento, considerando que, com mais recursos financeiros, é possível fazer mais e melhor para a Educação. Acontece, porém, que a questão é mais complexa! Aumentar mais recursos financeiros, não significa, necessariamente, que a qualidade educacional vai se melhor.
O Estado de Cabo Verde já disponibiliza, em média, 5% do PIB para a Educação, variando entre 4 a 6%, ano. Estamos próximo da média dos países da OCDE, pelo que é um dado que coloca o país bem posicionado, sobretudo, no contexto africano. Mas a questão, de fundo, não é a quantidade de recursos financeiros disponibilizados, mas sim a qualidade das despesas.
Num estudo feito pelo Banco Mundial, em 2019, a pedido do Governo, no âmbito do PEDS I, revelou-se que Cabo Verde gasta mais do que países como Seicheles, Samoa, ou Butão, mas que estes alcançam melhores resultados educacionais (Banco Mundial, 2019, p. 65). De acordo com esse estudo, há um problema no uso mais eficiente de recursos.
É fundamental melhorarmos a qualidade de toda a administração educacional, na medida em que é muito difícil melhorarmos o processo educativo (o ensino-aprendizagem), se toda a política de administração educacional não for melhorada. Aqui, convém realçar um outro aspeto crítico referido no relatório do Banco Mundial e que é a excessiva centralização da administração educacional, um procedimento que contraria as tendências das melhores práticas internacionais.
É urgente trazer mais ciência, mais profissionalismo, mais autonomia e mais responsabilização para o campo da administração educacional em Cabo Verde. Está provado que o centralismo e as grandes reformas não mudam a Educação, mas, sim, as escolas, cada uma individualmente, com pequenas ações, mudam as reformas e mudam a Educação!
Tenho criticado de que tem havido muito amadorismo na administração educacional em Cabo Verde, tanto a nível das decisões e orientações, como no plano operacional. Portanto, sem um olhar mais crítico para a qualidade da administração educacional, aumentar mais recursos é bom (sugeria um aumento para 6 ou mesmo 7% do PIB), mas não vai melhorar a qualidade e fazer o país dar o salto de que precisa para se tronar mais autónomo e com melhores condições de vida para todos.
O segundo lema da RNCEPT é “100% de Crianças no Pré-escolar”. De facto, é preciso valorizar mais o pré-escolar. Está provado cientificamente que a fase mais propensa para a aprendizagem das crianças é aquela que vai de 0 a 12 anos. É ali que se constrói as bases que, depois, poderão ser desenvolvidas.
Em alguns países, hoje, o Pré-escolar é integrado no Ensino Básico, ou seja, o Ensino Básico começa aos 4 anos, sendo que os dois primeiros anos são dedicados às aprendizagens do Pré-escolar. Aliás, tradicionalmente, os Colégios comportam esse nível de ensino e vão até ao 12º Ano. Cabo Verde poderia olhar para as melhores práticas e procurar melhorar a intervenção estatal nesse subsistema educacional.
Agora, defender 100% de crianças no Pré-escolar, é uma excelente ideia, mas não basta e porquê? Se olharmos para o Ensino Básico, a taxa de acesso, hoje, é de mais de 90%. No entanto, estamos a ter muitas perdas, ao longo do percurso, até a conclusão do ensino secundário. Os números de reprovações e de abandonos escolares são ainda acentuados, apesar dos esforços louváveis que se vem fazendo, designadamente, com as refeições, apoios nos transportes e a abolição das propinas. Basta ver que, por exemplo, em 2019/2020, haviam 8.629 alunos repetentes no Ensino Básico e 5.016, no Ensino Secundário, perfazendo um total de 13.645 alunos repetentes, de acordo com o Anuário da Educação 2019/20.
O número expressivo de repetentes é um mau indicador de qualidade da Educação. Se por um lado, ilustra que o processo ensino-aprendizagem tem falhas (e aqui, convém que as falhas sejam assumidas e repartidas por todos os atores, desde o Ministério da Educação aos Professores, aos alunos e incluindo os pais), por outro, o número elevado de repetentes significa que o Estado anda a pagar um bom número de Professores, mais do que uma vez, para fazerem as mesmas coisas que eles ou os seus colegas tinham feitos em anos anteriores. Ora, de ponto de vista de Gestão Económica da Educação, não é bom, na medida em que faz escassear recursos para melhorar, por exemplo, as condições de trabalho dos Professores, ou dos recursos didáticos. Imaginem quantos professores são necessários para 13.645 alunos e qual é o custo anual?
Portanto, garantir 100% de crianças no Pré-escolar ou nos outros níveis educacionais, passa por assegurar o acesso, o que ainda no Pré-Escolar é um grande desafio em Cabo Verde, mas também passa por assegurar a permanência e, sobretudo, o sucesso escolar e, assim, cumprir com a Constituição da República quando diz, no seu artigo 78º que “Todos têm direito à Educação”. Mas essa Educação deve ser efetiva, ou seja, de qualidade, no cumprimento do nº 2 do referido artigo, que define como é que a Educação deve ser. Neste ponto, convém realçar dois dos nossos maiores desafios educacionais: (1) reconceptualizar o nosso modelo escolar; e (2) reformar as nossas práticas pedagógicas, pois ambas são do séc. XIX e estamos no séc. XXI.
Parece-me que, em termos práticos, olhando para o quotidiano das nossas escolas e toda a realidade educacional, há uma significativa discrepância entre o que diz a Constituição da República, no seu artigo 78º, mas também aquilo que diz a Lei de Bases do Sistema Educativo, particularmente, nos seus artigos 5º e 11º que, quanto mim, deveriam estar mais presentes nas cabeças de todos os decisores políticos, dirigentes educacionais e professores. Julgo que se passarmos a ser mais rigorosos com aquilo que nós próprios nos propomos, nas duas Leis, para a nossa Educação, estaremos a dar um grande passo para, de facto, melhorarmos a Educação e fazer avançar este país. Na verdade, tanto a Constituição, como a Lei de Bases do Sistema Educativo, espelham a modernidade. As nossas práticas é que estão antiquadas.
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