O relatório da Inspecção Geral de Finanças sobre a gestão do Fundo do Turismo entre 2018 e 2019 virou um escândalo nacional e ainda há por onde explorar e contar – desde o duplo financiamento de obras, documentos forjados e empréstimos bancários sem fundamento legal na Câmara Municipal da Praia durante a administração de Óscar Santos, que mais fraude terá cometido no financiamento de projectos, a um inexplicável desembolso de 100 mil contos enviados à CM da Boa Vista, de José Luis Santos, sem quê, nem porquê (não houve obras e essa verba não foi encontrada nos cofres da autarquia!). Viagem ao Fundo do Turismo, onde o controlo precário de contas, pagamentos indevidos, financiamentos ilegais às câmaras do MpD, desvios de fins e gestão lesiva se tornou o seu ‘pai-nosso-de-cada-dia’.
O Governo esteve mais de um ano a esconder dos cabo-verdianos o relatório de auditoria feito pela Inspecção Geral de Finanças ao Fundo do Turismo durante a gestão de 2018 e 2019, mas o muro acaba de ruir e a suposta corrupção ficou à mostra desde a semana passada através de uma reportagem do semanário A Nação, que denunciou “regabofes” e “desvios de grandes proporções a comprometer o sistema ventoinha”.
O documento foi colocado pela IGF sobre a mesa do Primeiro-ministro, Vice-primeiro ministro e ministro das Finanças desde Março do ano passado, mas acabou engavetado na tentativa, eventualmente, de se camuflar esse escandaloso relatório que, agora descoberto, abala a estrutura do Governo e do partido que o sustenta, o MpD.
O documento começa logo por considerar “extremamente deficiente” a gestão do Fundo do Turismo, que apresenta um “baixo nível” de controlo interno, pagamentos indevidos, controlo precário de contas, financiamentos ilegais às câmaras do MpD, desvios de fins, etc.
A auditoria relata casos de ajuste directo em serviços de consultoria e “sem fundamentação”, desvio de fins, duplo financiamento, derrapagem financeira superior a 100%, trabalhos a mais acima do limite legal e sem formalização de contrato.
Para se ter uma ideia, dos pagamentos indevidos feitos pelo Fundo, no valor de mais de 50 mil contos, mais de dois terços foram feitos no âmbito de projectos executados só pelo município da Praia – na verdade, no caso dos financiamentos ilegais foram celebrados contratos com os municípios, num total que ascendem a 3.167.248.933 CVE, “sem que estes estivessem acompanhados dos projetos a indicar as atividades, os locais de intervenção, os orçamentos e os impactos esperados e, ainda, não foram aprovados pelo Conselho de Administração do Fundo, conforme determina a Lei”, lê-se no relatório da IGF.
Óscar Santos, o dono da ‘galinha-poedeira’
A Câmara da Praia, liderada na altura por Óscar Santos, foi de entre todas as beneficiadas – e sempre as Câmaras do MpD – a autarquia que mais irregularidades e ilegalidades cometeu no financiamento de projectos com o dinheiro do FT.
A IGF detectou no Fundo do Turismo, entre 2017 e 2020 (ainda com o actual governador do BCV como presidente) situações anómalas de duplo financiamento, contratação de financiamento bancário feita de forma indevida e de concursos supostamente forjados, como o processo de financiamento para a asfaltagem de algumas vias e bairros da capital (zona do Ténis e do Liceu Domingos Ramos), financiadas pelo Fundo do Turismo e que para os auditores “não é transparente e ocorreu fora do quadro legal vigente”.
“As obras na zona do Ténis e na zona do Liceu Domingos Ramos, orçados em 60.823.467 CVE, foram financiadas simultaneamente pelo Fundo do Turismo e por empréstimo bancário contraído pela empresa Elevolution Engenharia, SA. junto do Banco BAI, nos valores de 50.747.063 CVE e 60.823.467 CVE, respetivamente”, entretanto, diz a IGF, para o recurso ao crédito bancário feito pela empresa adjudicatária, para financiar a construção da referida obra, acabou seendo a CMP a assumir posteriormente a responsabilidade do pagamento do crédito junto da entidade credora. E isso, assinala a IGF, “não tem enquadramento legal e não se enquadra nas parcerias públicas privadas nos termos da alínea f) do artigo 2o, no 1 do artigo 37o e no 1 do artigo 38o da Lei no 69/VII/2010 de 16 de Agosto, como a CMP alega”.
A maior gravidade disto tudo é que, de acordo com o relatório da IGF, os documentos disponibilizados à equipa de auditoria referentes ao concurso restrito para a contratação da Elevolution Engenharia para as obras de asfaltagem do Ténis e Liceu Domingos Ramos “apresentam indícios de serem forjados”, visto que “foram pagos indevidamente nesta obra o montante de 44.722.104 CVE, sendo que destes, 10.807.916 CVE foram fora do quadro de financiamento do Fundo”.
100 mil ao léu ou ao seu?
As irregularidades e ilegalidades abrangem todas as câmaras do MpD, algumas, todavia, com maior grau de gravidade. Nisso, além da CM da Praia, salta à vista uma inexplicável, descabida e injustificável desembolso de 100 mil contos do fundo do turismo para o município da Boa Vista, no dia 27 de Dezembro de 2017, ainda durante o mandato de José Luis Santos, “sem apresentação de qualquer projecto, as obras financiadas não foram executadas e, à data da passagem de gestão da anterior equipa camarária para a actual, este valor (100 mil contos) não estava nos cofres daquele município”, denunciam os auditores das finanças.
“Outrossim, a alteração da Directivas de Investimento Turístico, em Outubro de 2019, introduzindo nela dois projectos no valor correspondente ao valor do desembolso - 100 mil contos – não sana a irregularidade, uma vez que as condições de desembolsos não ficaram asseguradas nos termos do artº 18º do DL nº61/2016 de 29 de Novembro, e não ficou garantida a execução de projectos ‘Interligação de estação de tratamento de esgotos Sal Rei – Chaves’ e ‘Requalificação urbana Sal-Rei e outros povoados’ porque até à data do fecho do presente relatório (Janeiro de 2022), este município não tinha apresentado quaisquer documentos justificativos de despesas realizadas no âmbito destes projectos e a conta bancária apresentava um saldo de 241 contos (241.776 CVE)”, reporta a IGF.
No geral, na sua conclusão os auditores constataram ainda que “os desembolsos efectuados em 2018 no total de 60.623.207 CVE – sendo Tarrafal de Santiago no valor de 13.980.676 CVE, Santa Catarina de Santiago 8.500.000 CVE, São Domingos 9.635.970 CVE, São Filipe 11.507.861 CVE e São Vicente 16.998.700 CVE e em 2019 a São Vicente no valor de 3.500.000 CVE – ocorreram sem que estes apresentassem documentos justificativos de despesas no valor recebido em 2017 e 2018”.
A IGF diz ainda que foram pagos indevidamente o montante total de 8.865.060 CVE , sendo 8.633.152 CVE pago no âmbito da empreitada de requalificação da zona do Liceu Domingos Ramos, 231.908 CVE pago ao TC duas vezes para o mesmo serviço.
Diante desse enorme buraco, o próprio Inspector Geral das Finanças recomendou a demissão do presidente do FT, Manuel Ribeiro, mas, 14 meses depois, o Executivo continua quieto e Ribeiro inamovível.
Enfim, é, resumidamente, este o relatório de auditoria ao Fundo do Turismo que esta semana o Governo (PM, VPM, ministra da Defesa, Presidência do Conselho de ministros e Assuntos Parlamentares, Janine Lélis), a bancada parlamentar do MpD, o secretário geral do partido, Luis Carlos Silva, negaram existir, mas a cada dia que passa sentem mais dificuldades para fazê-lo desaparecer. Pelo contrário, o fedor já tomou conta da sala, obrigando a limpeza profunda.
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