XVII CENA
É tardinha. Paulito entra em casa e encontra a Bia na sala a arrumar.
PAULITO – Boa tarde, Bia.
BIA (em vez de responder-lhe boa tarde) – Nhu Desempate já te pagou?
PAULITO – Ainda não.
BIA (fora da cabeça) – Ainda não?! Só podes estar a gozar comigo!
PAULITO – Quero dizer-te uma coisa, mas por favor… me compreendas.
BIA – Desde que não seja a mesma lengalenga de ontem!
PAULITO – Não. É um assunto muito sério. No que ontem se passou já nem estou a pensar. Sei que é tudo mentira!
BIA – Como vocês os homens, basta vos digam que a mulher vos põe os cornos, acreditam… armam-se em doidos!
PAULITO – Eu tenho confiança em ti, Bia.
BIA – Felizmente. Quando tu queres és compreensível. Mas olha… alebi ta duê dimás [calúnia ou falsidade dói demais]!
PAULITO – Também eles vão pagar. Mentirosos!
BIA – Tenho fé em Deus que vão pagar. Difamar uma pessoa inocente!…
PAULITO – Como se têm preguiça em calar a boca.
BIA – E Nhu Desempate… o que é que ele te disse?
PAULITO – É precisamente por isso que quero falar contigo.
BIA – Sobre o quê?!
PAULITO – Mas jura que não te vais zangar.
BIA – Não juro nada. Não sei se não vou zangar!
PAULITO – O Patrão não apareceu hoje. Mandou dizer-nos que estava doente, com diarreia e vómitos, que nem conseguia levantar-se da cama…
BIA – Ele ainda não viu nada, estupor! É só suor de coitados que ele anda a tomar, agora está-se a purgar, sacana! O alheio sai até nos traques.
PAULITO – Deus é pai. Ele cura tudo, Bia. Se Ele achar que Nhu Desempate deve ficar com o meu dinheiro, da minha parte ele pode ficar.
BIA – Mentira!
PAULITO – Deus dá remédio, Bia.
BIA – Pelo que trabalhaste tu vais receber. É por isso que vos tratam de palerma. Eles não têm vergonha, vocês os deixam com o vosso dinheiro, eles ficam cada vez mais ricos, nós ficamos a comer macacos do nariz. Agora é que estou a perceber porque é que ficou rico tão rápido! Um homem que a semana passada era pastor de cabras!…
PAULITO – Tens cem por cento de razão. Mas ouça o que te quero propor.
BIA – Podes zurrar que eu ouço. Resta saber se aceito.
PAULITO – Sabes que tenho muitos amigos…
BIA – Sei que tens amigos para aproveitarem de ti… para te chularem.
PAULITO – Calma!
BIA – Mais do que isso?! Nem Jó que é Santo.
PAULITO – Já pensei em arranjar um baralho, vou falar com Nhu Léla, tomo cinco litros de grogue fiado na taberna dele, arranjo padjinha, mando chamar os meus rapazes e experimentamos pôr jogo de batota aqui em casa.
BIA – Jogo de batota?!
PAULITO – Verás como é que num instante nós orientamos. Não só com os ganhos das vendas do grogue, do ponche e da padjinha, por cada mão de jogo, se estão cem escudos na mesa, quinze escudos são para nós.
BIA – Tens a certeza que resulta?
PAULITO – Ontem fui a casa da Xia beber um grogue, ela tinha a casa cheia, com rapazes a jogar. Bia!… Xia fez dinheiro!
BIA – Se achas que resulta!…
PAULITO – Então queres?
BIA – Se tens a certeza de que vale a pena!…
PAULITO – Então vou começar a dar os expedientes. (Prepara para sair) Vou então arranjar os materiais. Manda Danilson chamar os rapazes.
BIA (chama) – DANILSON!
DANILSON (entra na sala, ele e Punoi seu irmãozinho) – Sim, mamã.
PAULITO – Se os rapazes chegarem antes de mim, manda-os entrar e sentar.
BIA – Vai chamar Nhu Seis, Patrick, Carlos e Djucruco para virem responder Paulito. (Para Punoi) Vai com o teu irmão?
DNILSON – Vamos, Punoi?
BIA – Àqueles que não encontrarem em casa deixem o recado.
PAULITO – Quando estiverem próximos das casas, chamem para segurarem os cães. Vão depressa.
Ele tenta beijar a Bia mas ela desvia a cara. Ele sai e os rapazes vão chegando.
NHU SEIS – Como é, Bia?
BIA – Conforme me estás a ver. Vida de pobre é como aquela coisa: esfrega-se ao caminhar anda, arreganha-se quando está de cócoras e, à noite o brejeiro apodera-se dela.
NHU SEIS – Tu tens cada coisa nesta tua cabeça! Para quê é que Paulito precisa de mim?
BIA – Senta-te e espera. Ele é que mandou-te chamar.
PATRICK (entra e dirige-se a Nhu Seis) – O que estás aqui a fazer? Bia, ele não comeu tudo, pois não?
BIA – Não. A tua parte ainda está na panela.
PATRICK – Para quê é que Paulito mandou-me chamar?
BIA – Ele disse para esperarem por ele. Foi buscar umas coisas, mas já volta.
PATRICK – Hoje ele não me vai pôr a chamuscar porco como noutro dia.
BIA – Hoje é para outro assunto que ele mandou-vos chamar. Tu queres que matemos o porco todos os dias?
PATRICK – E nem torresmo ele deu-me, naquele dia, para comer com cachupa.
BIA – De jeito que vocês estavam bêbados naquele dia… esqueceram-se.
NHU SEIS – Já fazias ideia de beber grogue e bafar com torresmo.
CARLOS (entra) – O que é isso, rapazes?! Há festa por aqui hoje?
BIA – Aqui há festa todos os dias.
CARLOS – Não acredito que Paulito e Bia vão-se casar e só nos convidam hoje!
BIA – Não deixes das tuas garotices. Senta-te e espera pelo Paulito.
Paulito entra e coloca um garrafão de cinco litros ao pé da mesa. Mete a mão no bolso do casaco, tira um baralho de cartas, um embrulho feito de papel do jornal e abre. Os rapazes levantam ao mesmo tempo e dirigem-se a ele, sorvendo o ar, comentando.
RAPAZES – Pilon di kusa!
PAULITO – Como é Nhu Seis? Esses olhos como Xibinho quando era rapaz!
NHU SEIS – Podes dizer o que quiseres.
PAULITO – Como deixaste a tua mulher, os filhos e as amantes?
CARLOS – Não precisas de vir com conversas. Essa coisa que tens aí, vamos já devorá-la.
PAULITO – Não te preocupes. (Aperta a mão ao Patrick) Estás como aparentas?
PATRICK – Como grilo debaixo da pedra. Kalka prutxi, froxa boâ.
PAULITO – Tu estás pior que o grilo. Já nem consegues voar!
PATRICK – Tranquiliza-nos primeiro: essa coisa que trouxeste é para nós?
PAULITO – Mais ou menos. (Entra o Djucruco) Aí vem o Djucruco. Que tal? Barriga como cão que engoliu o tacho! Sempre farto tu andas.
DJUCRUCO – Comi a minha comida. Nunca me deste um bocado da tua.
PAULITO – Quantos dez já bebeste hoje?
DJUCRUCO – Quantos me pagaste?
BIA – Hoje os meus rapazes estão todos frenéticos!
PAULITO – Já falei com a Bia, resolvemos passar a divertir-nos cá em casa.
DJUCRUCO – Divertir-nos… cá em casa?
PATRICK – Com Picapada ou funaná?
CARLOS – Se não for Picapada, nem Funaná, que seja Morna ou Coladeira.
NHU SEIS – Pra já é com Tabanca ou Batuque.
PAULITO – Já não precisamos de sair daqui para irmos jogar à casa daquela bruxa da Xia. Passamos agora a jogar aqui em minha casa.
DJUCRUCO – Eh, pah! Aguentas, Paulito? Tens tudo o que a gente vai querer?
PAULITO – Padjinha… os rapazes já viram que tenho das melhores. Grogue também… da pesada; cana-cana, lá do Bom Pau.
BIA – É verdade, rapazes. Esperamos por vós…
NHU SEIS – Esperam por nós?! Então já não cá estamos?!
DJUCRUCO – Bia deve estar bêbada. Ela acha que saímos da nossa casa para virmos aqui a toa?!
CARLOS – Vocês ligam conversa de mulher? Não foi Paulito quem nos mandou chamar? Vamos preparar onde nos sentarmos.
PAULITO – Estar comigo é estar com Deus. Bia, abre lá o baralho.
PATRICK (para Bia) – Dá-nos o baralho para escolhermos os jokers.
Cada qual procura um sítio para se sentar, Bia dá o baralho ao Patrick, vai encher grogue na garrafa e lava os copos. Paulito prepara os charros, os rapazes escolhem jokers do baralho e começam o jogo. Por cada mão do jogo Bia retira 15%. Danilson e Punoi assistem a tudo. Sempre que um deles ganha dá algum tostão aos putos.
XVIII CENA
Bia despeja uma caneca do dinheiro em cima da cama e conta. abraçam-se aos risos, tiram a roupa e deitam-se na cama.
BIA – Nunca imaginava que no jogo se ganhava tanto dinheiro!
PAULITO – Neste mundo é preciso saber viver, minha querida.
BIA – Fizemos trezentos escudos. Mais do que uma quinzena do teu trabalho com aquele ladrão do Nhu Desempate.
PAULITO – Amanhã vais ao Rubom Baleia comprar moreia fresca e vens fritar.
BIA (abraça-o) – Hoje mereces. Podes tomar ao teu apetite. Apaga o candeeiro.
Paulito assopra o podogó.
XIX CENA
Bia e Paulito jogam entre os rapazes. Danilson e Punoi vendem grogue e droga a pessoal. Num ambiente de gozo, brincadeira, agressões verbais e ameaças físicas, vão a rapaziada vai-se falindo e levantam-se um a um. Ficam Carlos, Bia e Paulito a jogar. Carlos ganha e Bia tira-lhe 15% de comissão.
CARLOS – Bia, só nós os três, tu tiras 15% para a caixa?
BIA – Eh! Quanto querias que eu tirasse? Queres jogar à borla?
PATRICK – É verdade, Bia. Pergunta ao Paulito. Ele conhece bem as regras.
PAULITO – E quem te chamou nesta conversa? Alguém pediu a tua opinião?
NHU SEIS – Meu Deus! Dê-nos paciência. Paulito, já viraste fino deste jeito?!
PAULITO – Fino de quê? Estou dentro da minha casa.
NHU SEIS – Tu sabes que nós também temos casa. E cuidado. Conforme dizem, vento no coco, coco no chão.
PAULITO – Vento no coo, coco no chão, para quê? Vocês pensam que sou…
NHU SEIS – Não precisas generalizar. Fala para quem queres dirigir.
PAULITO – Quando abria o cabouco para fazer a minha casa, não vi nenhum patife para me ajudar a segurar num lado de padiola. Carreguei o cunhal aos ombros, a minha querida com os insarços à cabeça, Danilson a preparar e entregar o barro e Punoi a dar-nos o enchimento, ninguém sentiu pena de nós.
NHU SEIS – Mal-agradecido é o que tu és. Não costumo vir ajudar-te a preparar e carregar o barro?
CARLOS – Eu também estive a ajudar-te quando punhas a cobertura. Estive a mandar os molhos de palha.
DJUCRUCO – Eu não vim mas mandei ajuda. Mandei um litro de grogue.
PAULITO – Vieram foi um dia só! Uma casa faz-se num dia? E vieram porque sabiam que havia grogue.
PATRICK – Larguem o Paulito da mão. Vocês sabem que ele é confuzento.
PAULITO – Confuzento és tu, que és mentiroso e calunioso.
Os rapazes riem-se, Carlos levanta e todos saem.
XX CENA
Bia e Paulito riem-se ao entrar no quarto e encontrar Danilson e Punoi a jogar e a fumar. Punoi guarda um pedaço de charro atrás da orelha.
PAULITO – Danilson, vai tu e Punoi chamar os rapazes para virem responder ao Paulito.
Os meninos saem, Bia arruma a casa e a rapaziada começa a chegar, menos Nhu Seis. Entram e sentam-se.
BIA – Não querem nada hoje, rapazes? Tenho postas de moreia bem grandes e estão quentinhas. E muito bem temperadas. Grogue também meço-vos copo cheio. Com kunbidu e konpostura.
DJUCRUCO – Se não melhorarem o vosso comportamento, voltaremos outra vez para Xia. Ela também não presta, mas pelo menos estamos acostumados.
PAULITO – Traz um quarto de grogue por minha conta, Bia. Bafios agora… se os rapazes querem… que comprem.
Jogam, bebem, fumam e divertem-se. Quando todos se preparam para sair:
BIA – Vocês vêm amanhã?
CARLOS – Eu ainda não sei. Tenho um cacho de banana na mira lá em Carreira. Se eu conseguir…
DJUCRUCO – Eu sou capaz de vir. Também tenho um saco de mandioca que controlei ontem em Poilãozinho, já falei com a Bajója e ela disse-me para passar lá hoje à noite. Se ela mo comprar!…
PAULITO – Os meus rapazes virão, sim. Tenho confiança neles.
BIA – Porque é que Nhu Seis não veio hoje? Não o viram?
DANILSON – Não o encontramos em casa. A porta estava fechada e não havia lá ninguém.
PATRICK – Há já uns dias que não o vejo.
PAULITO – É verdade! Durante a semana passada ele não veio cá nem um dia!
BIA – Ele deve estar metido em mais alguma encrenca. Cabeça ele tem rija!
PATRICK – Eu não sei se vou poder vir. O papai disse que vamos regar amanhã em Zimbrão.
PAULITO – Vens quando acabares a rega. Não vais lá dormir!
PATRICK – Se acabarmos cedo…
PAULITO – Fico à vossa espera.
Despedem-se.
XXI CENA
Danilson anda na terceira classe. Juvêncio e Tonecas roubam em casa e vão vender na taberna do Lelenxo.
JUVÊNCIO (tira da sacola um saco de plástico) – Nhu Léla, mamã mandou-me vender-lhe este milho para eu ir comprar materiais de escola.
Lelenxo toma o saco, mede o milho e paga-lhe.
TONECAS (entrega-lhe um saco) – Minha mãe também mandou-me vender esses ovos para comprar caderno e lápis.
LELENXO (com o saco na mão) – Quantos ovos estão aqui?
TONECAS – Seis.
Lelenxo paga-lhe também e os dois saem comentando.
JUVÊNCIO – A tua mãe não te viu a roubar-lhe o milho?
TONECAS – Não. Enquanto eu estava na cozinha a esquentar cachupa, ela no quintal a pilar o milho, eu aproveitei e retirei o milho do tambor que estava na despensa e escondi rápido na minha sacola.
JUVÊNCIO – Eu também apanhei os ovos desde ontem à tarde. À noite, quando a mamã foi ver os ninhos, não encontrou lá ovos. Disse que se calhar as galinhas foram pôr ovos noutro sítio.
Riem-se e continuam a marcha.
XXII CENA
Danilson leva uma garrafa de grogue e alguns charros na sacola. Juvêncio e Tonecas estão empolgados. Pelixo admira onde é que encontraram dinheiro. Bebem grogue e fumam droga. O sino toca para entrada, Pelixo, sem dinheiro, volta para aula e Danilson, Tonecas e Juvêncio continuam a jogar.
XXIII CENA
Danilson dormita na aula. De vez em quando Pelixo belisca-o, ele acorda e volta a dormir. O sino toca para o intervalo, ele é o primeiro a levantar-se para sair. O Professor manda-o sentar, tal qual Juvêncio e Tonecas. Os outros meninos ficam curiosos, não saem da sala.
PROFESSOR – Danilson, Juvêncio e Tonecas, vão sentar-se, preciso falar convosco. Os outros meninos podem sair para o intervalo. (Para a equipa do Danilson) Porque é que faltaram a aula passada?
Danilson arregala os olhos.
TONECAS – Stor, Danilson estava com dor de cabeça, ficamos lá com ele.
JUVÊNCIO – É verdade, stor. Ele estava com muita dor, gemia e vomitava.
O professor passa-lhe a mão na cabeça, fala com ele cheio de pena, ele finge chorar.
PROFESSOR – Por isso é que ele está com os olhos vermelhos! Porque é que não me disseste que estavas com dor de cabeça? Coitadinho! Arruma as tuas coisas e vai para a casa. Diz a tua mãe para fazer-te um chá.
TONECAS – Stor, se nos deixasse, eu e o Juvêncio, acompanhamo-lo. A cabeça pode doer-lhe pelo caminho…
PROFESSOR – Querem levá-lo?
JUVÊNCIO – Se nos deixar… Ya!
PROFESSOR – Obrigado. Arrumem os vossos livros, segurem nele e saiam. As melhoras, Danilson. Se não te sentires melhor não precisas de vir amanhã.
Colocam o Danilson no meio deles, abraçam-lhe e saem. Mal saem da porta para fora, soltam um do outro, correm e entram num pardieiro e voltam a jogar.
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