XXXIII CENA
Em casa da Beba, sentadas num banco de madeira. Rosa vai visitá-la e as duas se cavaqueiam sobre a vida e prisão de Paulito.
ROSA – Deus há-de dar-lhe coragem, força e paciência suficientes até que vença a sua batalha.
BEBA – A minha cruz é pesada, Rosa! Não sei se vou conseguir levá-la até chegar ao Calvário. Dez anos de cadeia não é brincadeira. Não são dez dias.
ROSA – Fé em Deus é o que é preciso. Os dias passam depressa… os anos voam.
BEBA – Mas a nossa força é demasiado fraca para aguentarmos os solavancos do mundo. Nós cansamos muito rapidamente.
ROSA – Não desanime. Deus disse: - Os desanimados para o Inferno. - Ele é que dá remédio. Quantos filhos vocês têm?
BEBA – Temos dois rapazes. Um com sete anos e outro com dois e tal.
ROSA – Se lhe pedisse o mais novo para levar comigo para Angola, você mo daria? Eu não tenho filho, tratava-o como se eu fosse a mãe dele.
BEBA – Por mim… não há problema. Não tenho condições de o educar conforme ele merece. Não sei é se quererá ir falar com o pai dele na Cadeia.
ROSA – Quando é que é dia de visita? Ele está na Cadeia Civil?
BEBA – Sim. Em São Martinho. As visitas são às quintas-feiras e aos domingos, das dez horas até ao meio dia, e das três às cinco da tarde.
ROSA – No domingo, se Deus quiser, vou falar com ele. Ponha o menino pronto que se ele aceitar para não atrasarmos. Eu viajo já na próxima semana.
BEBA – Criança não tem muito que arranjar. É a sua roupinha… está toda lavada e passado a ferro.
ROSA – Então sim. (Levanta-se e prepara para sair) Tenha coragem e muita fé em Jesus Cristo.
BEBA – Amem. Vá com Deus, até a próxima.
XXXIV CENA
LULUXA – Nosso Senhor há-de dar-lhe força e coragem, paciência e confortamento até vencer o seu destino.
ALCINDA – Luluxa, o meu destino é muito cruel. Não sei porque é que Deus não me mate, do que me fazer sofrer assim.
LULUXA – Não diga isso, que Deus não lhe vai ficar contente. Ele só mata quando chegar a hora. Não se preocupe. Você não é a primeira, nem a única certamente. Quantas torres já têm sido desabadas!
ALCINDA – Deus é quem dá castigo de facto, mas, a uns… ele chicoteia duro demais. Diz-me quem é que me irá ajudar a criar duas crianças inocentes? Dez anos de cadeia?!
LULUXA – Olha: é por isso que vim cá falar consigo. Estive na Cadeia Civil, fui visitar um enteado meu, aproveitei e falei com Paulito.
ALCINDA – Não fui este domingo, porque estava com um joelho incomodado com reumatismo. Mas quinta-feira eu vou. Que enteado seu é que está preso?
LULUXA – Bidolo!
ALCINDA – Ele não estava em Portugal?
LULUXA – Estava. Descuidou-se… não renovou os documentos… pensou que ele é que mandava… olha!
ALCINDA – E o pai dele?
LULUXA – Por causa das suas patifarias o coitado morreu atropelado.
ALCINDA – Não me diga?…
LULUXA – Depois de muito tempo sem o ver, o pai foi visitá-lo um dia. Ele estava a preparar droga para vender quando Polícia arrombou-lhe a porta. Polícia tinha um mandado de busca e captura contra ele, por vários crimes.
ALCINDA – E como é que o homem… o pai dele morreu atropelado?
LULUXA – O pai não foi preso. Apresentou todos os documentos, o papel da firma onde sempre trabalhou, foi mandado embora. Como não estava habituado com aquela situação, saiu desorientado, ao atravessar numa passadeira foi acolhido por um carro conduzido por um traficante, colega do Bidolo. Apanhou-o em cheio.
ALCINDA – Credo! Morreu logo?!
LULUXA – Na hora. E nem a indemnização me deram. O rapaz não tinha carta e o carro não tinha seguro.
ALCINDA – Santa Nossa Senhora… meu Deus!
LULUXA – Vou visitá-lo na prisão para ganhar com Deus. Mas ele não merece.
ALCINDA – Eu também acho. Mas quando estava ainda cá fora, antes de embarcar, era tão bom menino!… Trabalhava na justiça e tudo!
LULUXA – Mesmo cá já andava desorientado. Davam-lhe dinheiro para pagar multa, ele não pagava e as pessoas iam parar à Cadeia.
ALCINDA – Uma vez também ele levou uma tia ao Tribunal!
LULUXA – Tia que tomou conta dele e dos irmãos quando a mãe embarcou.
ALCINDA – Que lhe pôs na escola e criou-o sem falta de nada. Já não me lembro por causa de quê?
LULUXA – Acusou a tia de ter-lhe feito um feitiço que lhe provocou panariz num dedo. A mulher tinha 75 anos de idade.
ALCINDA – Sempre que ele passava por mim, cumprimentava-me. Como era muito falador, ficávamos horas a fio a conversar.
LULUXA – Esse de falar muito é a sua doença. Só que lá se agravou. Cá ele falava muito e divertia os outros. Lá ele mente e calúnia as pessoas.
ALCINDA – Não me diga?!
LULUXA – Morou com a irmã, esta pôs o nome dele na Câmara para ter direito a um quarto quando ela recebesse a casa para habitação social. Quando a Câmara fez o realojamento, pediu o documento dele, como estava caducado a Câmara retirou o seu nome da lista.
ALCINDA – Ficou sem direito a um quarto?
LULUXA – Mas você não acredita que, sem vergonha, ele foi à Câmara dizer que a barraca era dele, que ele é que tinha dado agasalho à irmã?!
ALCINDA – Tiraram a casa à irmã e deram-lhe a ele?
LULUXA – Não. Ele já sabia que não lhe iam dar uma casa porque ele não estava legal no país. Ele queria tão-somente que tirassem a casa à irmã.
ALCINDA – E tiraram a casa à irmã?
LULUXA – Não. Ele não tinha prova e a irmã tinha todos os documentos da casa em nome dela.
ALCINDA – E como é que ele ficou a viver?
LULUXA – Pedinchando cada dia numa porta, antes de ir preso. Passou 4 anos na Cadeia, quando lhe foi concedida a liberdade condicional, por ser no mês de Dezembro, fez um requerimento ao juiz de execução de penas e pediu para sair depois do Inverno.
ALCINDA – E cá… por que é que está preso? O que foi que ele fez?
LULUXA – Ele nega. Mas dizem que há provas de que terá assaltado um homem e acabou em tragédia.
ALCINDA – Quantos anos lhe deram?
LULUXA – Vinte e quatro!
ALCINDA – Jesus-maria! E quantos anos ele tem?
LULUXA – Quarenta e tal.
ALCINDA – Quantos filhos têm?
LULUXA – Lá em Portugal, que eu conheça… nenhum. Nunca lhe conheço uma namorada sequer.
ALCINDA – Mas cá ele tem filhos.
LULUXA – Deixou 4 filhos pequenos, nunca soube deles, durante mais de 20 anos quando foi expulso.
ALCINDA – Ele bebia muito?
LULUXA – Bebia, consumia drogas, jogava batota e não trabalhava.
ALCINDA – Foram também essas as desgraças do Paulito.
LULUXA – Pois, encontrei com a Rosa na Cadeia, ela disse-me que ia falar com Paulito e pedir-lhe um dos filhos dele e da Beba para levar para Angola, aproveitei e falei também com Paulito. Então ele mandou-me falar consigo, se você quiser, eu levo um dos vossos filhos para Portugal comigo. Ponho-o na escola e educo-o como se fosse meu filho.
ALCINDA – Seria uma grande ajuda.
LULUXA – Então a Alcinda não se importa?
ALCINDA – Claro que não. Eu não tenho condições para criar duas crianças sozinha.
LULUXA – São todos meninos… ou meninas?
ALCINDA – Um rapaz e uma rapariga.
LULUXA – Eu gosto mais de rapariga. Se não se importa eu levo a menina.
ALCINDA – A menina é mais pequena.
LULUXA – Melhor ainda. O mais velho ajuda-lhe nos serviços de casa. A mais pequena tem quantos anos? Como é o nome dela?
ALCINDA – Ela tem dois anos e tal, chama-se Mónica.
LULUXA – Nome mesmo bonito.
ALCINDA – Toda a gente assim o diz. Quinta-feira quando eu for visitar Paulito, falo com ele.
LULUXA – Já lhe disse que embarco daqui há oito dias.
ALCINDA – Não há problema. A criança arranja-se rápido. É só lavar e vestir.
LULUXA – Então, fica assim combinado. Mantenha fé firme em Deus.
ALCINDA – Seja como Deus quiser. Diz-se que devemos invocar o nome de Jesus antes de nos cairmos. Que depois da queda já não é preciso.
LULUXA – Isso mesmo. Não perca a fé.
XXXV CENA
Punoi está com um baralho na mão e insiste com Danilson para jogarem.
PUNOI – Mano… anda jogar comigo.
DANILSON – Agora não, Punoi. Agora não estou concentrado.
PUNOI – Não vamos demorar. É só para eu ver se te ganho. Anda!
DANILSON – O jogo não é bom, Punoi. Não viste onde é que o papá está?
PUNOI – Papá foi a Xia que o chibou.
DANILSON – Então estás a ver? E se alguém nos chibar também?!
PUNOI – Nah… vem! Vem só agora.
DANILSON – Deixa para depois, Punoi.
PUNOI (atira o baralho ao chão) – Nunca mais brinco contigo.
Sai zangado. Danilson vai atrás dele, corre-lhe a mão na cabeça, tenta convencê-lo, mas ele não demove!
XXXVI CENA
Paulito vai a uma consulta no Hospital da Praia e Bia vai ter com ele. O carro da Cadeia pára, Bia pede boleia ao Guarda João.
BIA – João, dá-me boleia até a Cadeia?
JOÃO – Sobe.
Passam pelo Tribunal e apanham o Diretor-Geral. Pelo caminho, Bia beija Paulito, Diretor-Geral olha através do espelho retrovisor, manda o carro parar e desce.
DIRETOR-GERAL (abre a porta traseira do Jeep) – Vá, saltem para o chão. (Bia levanta) Todos para fora do caro. Mal-educados!
João, Paulito e Bia descem. O Diretor-Geral volta a entrar no Carro que arranca e vai parar a frente da Cadeia. Ele desce e entra pelo portão e vai direto ao gabinete do Diretor.
XXXVII CENA
No gabinete do Diretor, todos os Guardas estão de pé.
DIRETOR – As vossas armas estão limpas? Têm munições suficientes? (Todos respondem SIM e ele volta para João) Deixa-me ver a tua arma! (Toma-lhe a pistola e finge inspecioná-la) O que fizeste ao Diretor-Geral?
JOÃO – Eu não lhe fiz nada.
DIRETOR – Nunca ninguém fez nada. Este mundo é tão injusto!
JOÃO – Eu vinha com o Paulito do Hospital, a Bia pediu-me boleia, pelo caminho ele mandu o condutor parar e mandou-nos descer.
DIRETOR – Não sabes por que é que ele vos mandou descer?
JOÃO – Ele não nos disse nada. Só mandou o condutor parar, saiu do seu lugar, foi abrir a porta e mandou-nos descer.
DIRETOR – Ele disse que a senhora beijou o preso que estava no carro…
JOÃO – Eu não reparei.
DIRETOR – Tu acompanhas um preso, não prestas atenção no que ele faz? Que tipo de Guarda tu és? (Para um bocado) Diretor-Geral mandou correr contigo do trabalho…
MARCOLINO (olha para o relógio) – Já é quase a hora da visita.
DIRETOR – Bia não pode entrar na visita durante três meses. E Paulito vai ficar no Segredo durante uma semana, quando sair vai passar um mês sem apanhar Sol e três meses sem ir à visita.
MARCOLINO – Apago-lhe a luz… ou deixo acesa?
DIRETOR – Podes deixar-lhe a luz acesa.
MARCOLINO – Com licença.
DIRETOR – Ah!… Também, a partir de agora, os presos estão proibidos de irem a Hospital no carro da Cadeia. É por ordem do D.T.G. O carro da Cadeia só pode levar presos ao Tribunal para serem ouvidos ou para o julgamento. E revistem bem os visitantes porque há presos que andam bêbados cá dentro… não sei como é que permitem que grogue entre na Cadeia. (Para João) Tenho pena de ti… mas não tenho nada a fazer! Vai despir a farda e entrega ao Carcereiro. Fim do mês passa cá e vem receber o teu salário.
XXXVIII CENA
Cada qual sentado a um canto a falar baixinho com seus visitantes que vão entrando, depois de revistados a pente fino e humilhados pelos Guardas.
RABOLINA – Coitado do João! Deus lhe há-de acautelar e que não seja corrido do trabalho!
DUCO – Não me parece que ele se safa! Aquele D.T.G. é muito mau! Só lhe supera as sarnas no rabo.
RABOLINA – E como é que vou ficar a trazer-te as coisas?! Eu entrava com elas só quando João estava na porta.
DUCO – Ensino-te dois truques, que até o próprio Diretor podes dar para me entregar. São truques que aprendi na Cadeia em Portugal.
RABOLINA – Cadeia é como uma escola! As pessoas aprendem tanta coisa!… Pena é porque aprendem mais as coisas erradas.
DUCO – Coisas erradas… mas às vezes ajudam-nos a desenrascar!
RABOLINA – Diz quais são os truques?
DUCO – Quando comprares cocos para me trazeres para fazer artesanato, tira a juba com cuidado, de forma a ficar intacta, despeja toda a água e enche-o com aguardente. Tapa o buraco bem tapado com pastilha elástica e cola a juba como estava antes.
RABOLINA – Tu sabes muito, rapaz!
DUCO – Isto é apenas um truque…
Com uma mochila ao ombro, o João despede-se de todos os reclusos.
RABOLINA (limpa lágrima) – Coitado!…
João vai dar um abraço terno ao Duco, sai e Duco volta a sentar-se.
DUCO – Ouve mais um…
Ele limpa as lágrimas
RABOLINA – Não chores. Sei que vocês eram muito amigos…
DUCO – Compra latas de sumo, fura um buraquinho no fundo, despeja todo o sumo e, com uma seringa de injeção enche novamente a lata com aguardente. Pede ao Jota que tape a lata com solda e passe lixa por cima.
RABOLINA – Jota é bom nessas coisas.
DUCO – Trazes dentro do coco, numa visita, e, em latas de sumo na outra. Eu vendo-o aqui dentro, dou-te dinheiro e trazes mais. Depois digo-te como é que vais trazer padjinha.
O sino toca para o término da visita. Rabolina e outras visitantes levantam-se e abraçam os seus maridos ou namorados lovely.
RABOLINA – Adeus!
DUCO – Adeus!
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