I CENA
Joana e os irmãos João e Pedro estão sentados à beira de um caminho, passa por eles o primo Durand. Uma manada de vacas é projetada numa tela.
JOANA – Bom dia, primo Durand! Vai a Domrémy?
DURAND – Vou ver o teu pai.
JOANA – Mas o meu pai não está em casa. Foi a Vaucouleurs levar o dinheiro dos impostos ao Governador, o capitão Baudicourt, e passou lá a noite. Deve regressar logo à tardinha.
DURAND – Ah, Joana, tens um pai bastante importante. Deves sentir-te orgulhosa dele! Jacques d’Arc, prefeito de Domrémy, recebedor de impostos… (olha para a tela) e dono de uma grande quantidade de vacas!
JOANA (sorrindo contrafeita) – Estas vacas não são todas do meu pai; algumas pertencem aos nossos vizinhos.
PEDRO – As crianças de Domrémy revezam-se para levarem as vacas a pastar, e hoje é a nossa vez.
DURAND – Obrigado, priminhos. Adeus, procurarei o vosso pai noutra ocasião.
Parte-se e os primos lhe acenam em gesto de despedida.
JOANA, JOÃO E PEDRO – Adeus, primo Durand!
JOANA – Gostava imenso de poder visitar os familiares do primo Durand.
JOÃO – Também eu!
PEDRO – Eu também!
JOANA – A coisa que mais gostaria de fazer agora era ir à ermida do bosque das faias, em Bermont.
JOÃO – Mas por quem queres tu rezar em Bermont?
JOANA – Pela França. É sempre por ela que eu rezo. Para que acabe a guerra com a Inglaterra.
JOÃO – Se queres ir a Bermont… eu, por mim, dispenso-te.
PEDRO – Também eu te dispenso. João e eu podemos bem guardar as vacas.
JOANA – Obrigada, obrigada (Bate palmas, contente) E as vacas? Dispensam-me também? (Para a tela) Margarida, dás licença que eu vá a Bermont?
MARGARIDA – Mu-u-u-u, mu-u-u-u.
JOÃO (rindo-se) – Na língua das vacas, isso quer dizer «sim».
PEDRO (abraça a Joana) – Vai, vai depressa à capela de Bermont e reza, com todo o fervor, ao bom Deus, para que Ele salve a nossa querida França.
II CENA
Joana chega numa capela e coloca uma flor amarela aos pés da estátua da Virgem. Depois ajoelha-se e começa a rezar com muita dedicação. Faz-se um barulho, Joana levanta a cabeça e vê uma velhinha a aproximar-se dela. A velha vem envolta numa capa escura e esburacada, a cabeça coberta com uma manta preta e traz às costas um molho de lenha. Joana reconhece-a.
NANNETTE – Ah, és tu, Joana? Quando vi o teu rosto tão lindo, iluminado pelo sol, julguei que se tratava de uma santa.
JOANA – Oh, Nannette! Quem me dera ser santa! Vim rezar à Virgem, pedindo-lhe pela nossa pátria e pelo nosso rei.
NANNETTE – O nosso rei, coitado, está perdido.
JOANA – Perdido!… Oh, Nannette, porque diz isso?
NANNETTE (senta-se num tronco) – Olha, Joana, o povo murmura e a velha Nannette escuta. Não sou inteligente, nem sei ler. Tu sabes ler, Joana?
JOANA – Não. Sei apenas escrever o meu nome.
NANNETTE – Bem. Aprendo muito escutando as línguas que murmuram. Dizem que o velho rei Carlos VI já morreu há dois anos, e o filho, o delfim Carlos, ainda não foi coroado e vagueia pelo país em busca de amigos que o auxiliem a conquistar o seu lugar de rei.
JOANA – E não consegue encontrá-los?
NANNETTE – Muito poucos. A maior parte são traidores como o duque de Borgonha: afirmam que o delfim não tem direito ao trono e garantem que o rei Henrique de Inglaterra é o verdadeiro rei de França.
JOANA – Mas isso não é verdade, Nannette!
NANNETTE – Não.
JOANA – Esses homens são uns traidores.
NANNETTE – No entanto, o exército inglês avança e vai, pouco a pouco, conquistando a França.
Ambas ficam caladas a matutar.
JOANA – Não posso demorar-me mais tempo. Meus irmãos esperam-me.
NANNETTE – Eu também vou para casa atiçar o lume antes que ele se apague. (Levanta-se) Há ainda outra história que as línguas contam. É uma espécie de profecia, mas eu não creio em profecias. E tu?
JOANA – Não… julgo que não!
NANNETTE – Ora, segundo essa profecia, a França será salva da Inglaterra. Os exércitos ingleses serão destroçados, e o delfim ocupará o seu trono. Tudo isto se conseguirá graças à coragem de uma donzela.
JOANA (estupefacta) – De uma donzela?!
NANNETTE – Sim, uma rapariga da região do bosque de Chenu.
JOANA – Mas quem é ela? Onde está? Quando a conheceremos?
NANNETTE – Oh! Não sei; ninguém sabe. Duvido mesmo que alguma de nós a possa ver um dia. (Sorri) Adeus, Joana.
JOANA – Adeus, Nannette.
III CENA
JOANA – Maninhos, vocês sabem o que é que Nannette me disse quando estava a rezar na capela?
PEDRO – Nannette?!
JOÃO – Aquela velha que vive numa cabana, perto de Bermont?
JOANA – É essa mesma.
PEDRO – Aquela velha que vagueia pela floresta, apanhando gravetos para queimar na sua choça? Muita gente diz que ela é uma bruxa.
JOANA – Tolices; não acredito em bruxas.
JOÃO – E o que foi que ela te disse?
JOANA – Que segundo uma profecia, apesar de ela não acreditar nas profecias, a França será salva da Inglaterra. Os exércitos ingleses serão destroçados, e o delfim ocupará o seu trono. E que tudo isto se conseguirá graças a coragem de uma donzela.
JOÃO – É ridículo! Uma profecia! Uma donzela salvará a França!
JOANA – Uma donzela da região do bosque de Chenu.
PEDRO – E porque dessa região? A velha Nannette deve estar maluca.
JOANA – Não, Pedro, isso não; ela até disse que decerto tal profecia não passava de uma invenção de tagarelas.
JOÃO – E é. Ou então inventou ela a história para se divertir à tua custa?
Os irmãos ficam a rir-se e a gozar com Joana que está triste e zangada.
IV CENA
Da porta da cozinha Joana vê Pedro sentado ao lado do pai. Brtrand, barbudo e forte, está sentado num banco junto à uma lareira, com uma jaqueta de veludo castanho com uma manga rasgada, uns calções de couro e umas botas de montar. Joana dá um jeito no cabelo e entra. A mãe está a servir à mesa, pondo sopa em seis pratos.
JOANA – Boa noite, mãe; boa noite, pai.
JACQUES (Agarra a Joana por uma mão e leva-a junto do banco onde o desconhecido está sentado) – Minha filha, este senhor é Bertrand de Poulengy, um soldado ao serviço do capitão de Baudricourt.
Joana, delicadamente, cumprimenta-o, fazendo uma pequena mesura.
BERTRAND – Vim de Vaucouleurs com seu pai e vou ao sul da França levar uma mensagem do meu capitão. Hoje pernoitarei aqui, porque seu pai teve a amabilidade de me oferecer abrigo e ceia.
JOANA – Seja bem-vindo.
Joana sorri. Pedro fica impaciente pela demora da ceia, inspira o cheiro do aroma da sopa e fala para Bertrand.
PEDRO – O senhor, não tem fome? (Bertrand sorri e a família fica comprometida) Eu… confesso que tenho muita; estou mesmo esfomeado! (Volta a inspirar o ar) O senhor não acha que a sopa cheira bem?
BERTRAND – Cheira; cheira muito bem.
Ri-se. Entra João.
JACQUES – Então vamos comer. João acaba de chegar.
Todos se aproximam da mesa, levando os seus bancos consigo.
V CENA
JOANA – Senhor, eu gostava de arranjar a manga do seu casaco.
BERTRAND – Deveras? Terei muito prazer nisso. (Joana vai buscar uma agulha e linhas; Bertrand tira o casaco, coloca-o no regaço da pequena e fica a observá-la) A menina parece-me uma costureira muito hábil.
MÃE – Efetivamente, a minha filha cose muito bem; também sabe cozinhar e faz um pão que é uma delícia.
JACQUES – Mas a maior parte das vezes é uma Maria-rapaz. Tivesse ela tanto cuidado com as maneiras como está a ter agora com esse casaco.
BERTRAND – É um grande favor que ela me está a fazer.
MÃE – Então… porquê?
BERTRAND – É que não tinha mais ninguém que mo arranjasse. Não tenho mulher nem filhos, nem mesmo qualquer pessoa da família.
MÃE – Ah! Então a sua vida de soldado é bem triste!
BERTRAND – É! Mais ou menos.
JACQUES – Ontem, bem supliquei ao capitão Baudricourt para baixar os impostos este ano; fiz-lhe ver como o pobre povo ficaria grato por esse gesto, mas o governador alegou ser-lhe impossível fazê-lo.
BERTRAND – Oh! Não é possível, não. O dinheiro das contribuições é necessário para pagar as nossas tropas. Sem um exército estaríamos perdidos nas mãos dos ingleses e, nunca mais o delfim seria coroado.
JOANA (levanta os olhos e escuta com ansiedade) – E porque chamam delfim ao nosso rei?
BERTRAND – Ao filho mais velho do rei de França, o herdeiro do trono, dá-se o nome de delfim.
MÃE – Pois, ele chama-se Carlos.
JOANA – Mas se o antigo monarca já morreu, Carlos é o novo rei. Por que razão não foi, ainda, coroado?
BERTRAND – Porque os reis de França são coroados na catedral de Reims, pelo arcebispo. Ora, o nosso delfim não pode lá ir. Se tentasse entrar em Reims, seria capturado e imediatamente metido numa prisão.
JOANA – Sabe onde ele está agora, senhor Bertrand?
BERTRAND – Não, não sei; só o governador o sabe. Ele envia-lhe muitas mensagens.
JOANA – Diga-me: é muito novo?
BERTRAND – Tem vinte e um anos, mas o rei da Inglaterra, que tem pretensões a governar a nossa França, é muito mais novo que o delfim. É mesmo ainda um bebé.
JOANA – Um bebé?! Mas para que quer um bebé dois tronos? Eu penso que nem um…
BERTRAND – Bem…entretanto, enquanto o sobrinho não atinge a maioridade, o tio que é regente da Inglaterra, governa como se fosse o verdadeiro rei.
JACQUES (aborrecido) – Já acabaste isso, Joana. Agora vai-te deitar.
JOANA (põe de parte a agulha e as linhas) – Pai, o governador autorizou a festa do Verão?
JACQUES (acena afirmativamente com a cabeça) – Disse que podemos fazer a festa como de costume.
MÃE – Penso que assim os camponeses esquecerão por um dia as suas preocupações.
BERTRAND – O que vem a ser essa festa?
JACQUES – É uma espécie de reunião ao ar livre que se realiza todos os anos em Junho.
JOANA – Todas as crianças de Domrémy levam os seus cestos com a merenda e vão para o bosque de Chenu.
JACQUES – Há lá uma grande árvore a que nós chamamos «A Senhora». Ninguém faz ideia da idade dessa árvore. Pois é tão velhinha, que parece ter sempre lá existido.
BERTRAND – Acredito que seja realmente uma linda festa.
JOANA – Até há quem diga que antigamente as fadas viviam nela.
JACQUES – Todos vão para o bosque, acampam-se, comem as suas merendas e ornamentam os ramos de «A Senhora» com flores silvestres. Depois dançam à sua volta, brincam e entoam canções.
JOANA – É uma festa bem linda. (Dá o casaco ao Bertrand) Boa noite, senhor.
BERTRAND – Boa noite e muito obrigado. Acredita que nunca mais me esquecerei de ti, e quem sabe, talvez no futuro lhe possa pagar a gentileza?
Joana sai.
VI CENA
Sentadas à sombra de «A Senhora». O ambiente é de festa: grupo de crianças a jogar qualquer coisa, outras saltando a corda, alguns rapazes brincam ao eixo e, os mais crescidos divertem-se em torneios de luta. Todo a cena pode ser projetada numa tela.
HAUVIETTE – Ah, Joana, como somos felizes por termos a nossa festa! Que aconteceria se teu pai não tivesse pedido licença ao governador? Certamente estávamos a fazer os nossos trabalhos de todos os dias.
Joana acenando com a cabeça. Maria Joyart mexe no cesto da merenda.
JOANA – Olha: está ali a Maria Joyart a mexer outra vez nos cestos da merenda. (Para a Maria) Maria, Maria, estamos aqui! (Maria, roliça e bonacheirona, dirige-se a elas, com uma grande fatia de bolo na mão) Não comeste o bastante ao meio-dia?
MARIA – Eu nunca como o bastante. (Mostra o bolo) Quem ganhou a corrida?
HAUVIETTE – Foi a Joana. Vence-me sempre.
MARIA – Ela vence toda a gente. (Para a Joana) Pega, Joana, o teu prémio; tira um bocado do meu bolo, mas não muito grande.
JOANA (parte um bocado do bolo e mete-o de uma vez na boca. E, com a boca cheia) – Quando principia a dança?
MARIA – Logo que o meu irmão Emílio chegue.
HAUVIETTE – Não é ele que está ali no alto da colina.
MARIA – É ele, e… e está a dizer qualquer coisa. (Para Joana) Ó Joana, julgo que chama por ti.
JOANA – Que é que ele me quer?
MARIA – Parece que está a dizer que a tua mãe precisa de ti em casa.
JOANA – Oh! meu Deus! Mas, então, hei-de ir para casa antes da dança… talvez a mãe precise de mim por pouco tempo…
HAUVIETTE – Vai ver. Faz de conta que estás numa competição. Corre.
VII CENA
Joana chega a casa, encontra a mãe a amassar farinha para fazer pão.
JOANA – O Emílio Joyart disse que a mãe precisava de mim. Vim o mais depressa que pude.
MÃE – O Emílio? (Abana a cabeça) Ainda hoje o não vi, nem te mandei chamar por ninguém.
JOANA – Certamente ele chamava por outra e eu julguei que era por mim. Posso ir outra vez, mãe?
MÃE – Com certeza que podes. Teria muita pena se perdesses um bocadinho que fosse da festa.
Joana sai a correr, pouco tempo, ouve uma voz chamar pelo nome dela.
VOZ – Joana, sê uma boa rapariga!
Um grande clarão a envolve. Ela levanta os olhos e vê um rosto no meio da claridade.
JOANA – Meu Deus, é o rosto de um anjo! O Céu abriu e um Anjo desceu até mim!
VOZ – Sê boa, Joana, e Deus ajudar-te-á.
A luz desaparece. Joana ajoelha-se e reza com fervor. Levanta a cara para o Céu.
JOANA – Oh! Hei-de ser muito boa. (Baixa a cara e murmura) Como é que Deus me ajudará? Que quererá Ele de mim? Terei paciência e esperarei que Deus me diga o que devo fazer.
Continua a andar.
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