
O bordão “tomar a Praia custe o que custar”, associado a Ulisses Correia e Silva – e, ao que sei, nunca desmentido pelo próprio –, podendo não ser uma citação directa (é, também, uma possibilidade), entrou no argumentário político nacional, percorrendo toda a campanha das eleições autárquicas do passado ano. Esperemos, agora, que não seja substituído por um outro: “não perder o poder, custe o que custar”.
Vários amigos, de um lado e de outro da barricada (a palavra é excessivamente bélica, mas penso traduzir o que estamos a viver) desafiaram-me a escrever a minha opinião sobre a operação de busca e apreensão da Procuradoria Geral da República (PGR) na Câmara Municipal da Praia, que ocorreu na última sexta-feira.
Já tencionava fazê-lo, mas não em cima da fogueira de emoções extremadas, até com laivos de esquizofrenia política. Queria dar uns dias. Não porque considere as minhas opiniões tão importantes como algumas pessoas, divididas entre o exagerado elogio a mim próprio e o ataque imbecil, pretendem fazer crer.
As linhas que vos ofereço são, por tal, expressão de uma necessidade interior em dizer o que penso, não por uma qualquer vontade de protagonismo ou por me considerar de uma importância que não tenho nem me interessa ter.
Vamos lá: o que penso sobre isto? Penso o mesmo de sempre, que todas as pessoas têm direito ao bom nome e à presunção de inocência, um princípio central que historicamente está associado aos Estados de direito democrático, conquanto isso nem sempre corresponda às vivências comuns e à relação dos cidadãos com a justiça, as mais das vezes movida por rancores e preconceitos políticos e/ou de classe.
E esta minha posição sobre o direito ao bom nome e à presunção de inocência é bem antiga e, ainda recentemente, se manifestou aquando do caso judicial de que foi alvo Sandeney Fernandes, o ex-coordenador da UASE, Unidade de Acompanhamento do Sector Empresarial do Estado, que viu montado um autêntico circo policial no seu local de trabalho e na sua própria residência, supostamente para apreender documentos comprometedores, com agentes armados até aos dentes, como se ele fosse algum terrorista internacional ou chefe da Camorra.
Anos antes, levantei também a minha voz em defesa de Arnaldo Silva no caso que ficou conhecido por “Máfia dos Terrenos”, com o ex-membro do Governo e ex-Bastonário da Ordem dos Advogados a ser detido em casa (praticamente na cama) e levado sob escolta policial ao tribunal, quando bastaria uma notificação para ele se apresentar de livre vontade e pelo seu próprio pé para prestar declarações.
Para disfarçar quebra de prestígio e criticas generalizadas, PGR entrou de cabeça na “investigação-espectáculo”
A verdade é que, de alguns anos a esta parte, a Procuradoria Geral da República, com o seu prestígio em baixo e alvo de críticas generalizadas, resolveu entrar de cabeça na “investigação-espectáculo”, gerando ela própria intranquilidade e um sentimento de insegurança junto da população, com polícias armados até aos dentes, as mais das vezes embuçados, sem que isso se traduzisse em resultados para a investigação.
O que já disse a PGR sobre a “Máfia dos Terrenos” ou, mais recentemente, sobre o caso da UASE e da venda de ações da Caixa Económica de Cabo Verde? Ou, ainda – e só para citar alguns casos – sobre as concessões dos transportes aéreos e marítimos, em particular, neste último caso, com a alteração de um contrato, todas com elevados prejuízos para o Estado, ou, ainda, sobre a larvar corrupção na Alfândega da Praia?
Não disse absolutamente nada e, à imagem de outros processos, vai ficar tudo em banho-maria ou na penumbra das gavetas da procuradoria, pelo menos té que o atual Procurador Geral da República vá para casa e o senhor (ou senhora) que se segue possa, eventualmente, retirar processos do esquecimento e determinar investigações a sério.
O circo da investigação-espectáculo instalada pela PGR é mais próprio de regimes autoritários do que propriamente de um Estado de direito democrático. E, por arrasto, é fautor da judicialização da política, já que quanto à politização da justiça, sendo difícil prova-lo por enquanto, a dúvida já está instalada com a ajuda da própria PGR, que ou imita muito bem ou disfarça muito mal…
O “assalto” à Câmara Municipal da Praia
Vamos até à última sexta-feira. Ao que se sabe, o procurador Nilton Moniz e agentes da Polícia Nacional, fortemente armados, apresentaram-se, por volta das 10:00, na Direção Financeira e Patrimonial da Câmara Municipal da Praia, situada na Fazenda. Exibiram o respetivo mandado e foram facilitadas todas as diligências exigidas, sem que se tivesse registado qualquer obstrução à acção do procurador.
Finda a operação de busca e apreensão, procurador e agentes policiais abandonaram as instalações, dirigindo-se mais tarde, após a hora do almoço, aos Paços do Concelho, onde pretendiam, de igual modo, continuar a sua ação de busca e apreensão, agora no gabinete do presidente da Câmara.
Como se sabe, foram impedidos de o fazer porque os Paços do Concelho estavam encerrados e nenhum responsável municipal lhe facultou as chaves. Posto isto, procurador e agentes policiais retiraram-se do local, tendo regressado mais tarde, por volta das 16:45, tendo então rebentado com a fechadura do portão lateral dos Paços do Concelho e, com um agente introduzindo-se numa janela aberta, tiveram acesso à sala da diretora de gabinete do autarca e, daí, ao próprio gabinete de Francisco Carvalho, de onde, aliás, não levaram nada.
Neste ponto, algumas almas mais susceptíveis e umas certas virgens-púdicas, que de moto próprio ou manipuladas convenientemente em situação destas, estarão chocadas com o intertítulo onde se alude ao “assalto” à Câmara Municipal da Praia. Se repararem, a palavra encontra-se entre aspas, dependente da sua retirada em função de algumas explicações devidas à própria PGR.
Conforme disse lá atrás, o procurador Nilton Moniz esteve duas vezes nos Paços do Concelho. Na primeira, não exibiu qualquer mandado, não arrombou nenhuma porta ou portão e bateu em retirada; na segunda, ordenou o arrombamento do portão lateral, sem que previamente tivesse exibido o respetivo mandado e só o apresentando após já estar no interior das instalações.
Uma pergunta se apresenta como oportuna: da primeira vez, o procurador não era portador do mandado respectivo e, por isso, bateu em retirada?
“Tomar a Praia custe o que custar”
O bordão “tomar a Praia custe o que custar”, associado a Ulisses Correia e Silva – e, ao que sei, nunca desmentido pelo próprio –, podendo não ser uma citação directa (é, também, uma possibilidade), entrou no argumentário político nacional, percorrendo toda a campanha das eleições autárquicas do passado ano. Esperemos, agora, que não seja substituído por um outro: “não perder o poder, custe o que custar”…
Tendo sido dito, ou não, ipsis verbis pelo primeiro-ministro, a verdade é que toda a campanha autárquica foi empurrada pelo partido do poder neste sentido, desde logo, judicializando o discurso político. O resultado não foi feliz para Ulisses e o seu partido, infligindo uma derrota esmagadora e retirando-lhe, pela primeira vez na história eleitoral autárquica, a liderança dos municípios. Ou seja, arrastando a derrota na Praia para o todo nacional, como efeito dominó.
Se tivessem aprendido alguma coisa da história política cabo-verdiana, Ulisses Correia e Silva e os génios que o rodeiam, saberiam que o próprio partido do Governo tinha sido beneficiário desse efeito dominó nas autárquicas de 2016, quando a recente vitória nas eleições legislativas se transferiu para o registo autárquico, colocando o principal partido da oposição circunscrito apenas a dois municípios.
A judicialização da campanha das autárquicas do último ano, com uma “ajudinha” da PGR - que aliás, já é reincidente na matéria, ao promover “investigações-espectáculo”, em vésperas ou ante-vésperas de eleições -, teve, como dizia, um efeito desastroso, não conseguindo contrariar a tendência de derrota já conhecida em vários estudos de opinião.
Ora, sempre que o partido do Governo se emaranha nessa táctica, fazendo apresentar Francisco Carvalho como um “corrupto” e “populista”, o actual líder do PAICV cresce nas intenções de voto. E isso preocupa muito Ulisses e os seus génios de ocasião.
Alguém mais inteligente e/ou menos desesperado teria a lucidez de esquecer Francisco Carvalho, apresentando as suas propostas e procurando convencer o eleitorado. Porém, quando o fel é superior à inteligência e o desespero toma conta da lucidez, o efeito só pode ser devastador.
É o próprio partido do Governo, cavalgando em cima da PGR (com a anuência ou não dela própria) que tem vindo a transformar Francisco Carvalho numa vítima e putativo primeiro-ministro a partir de 2026. Aliás, nesta matéria – e voltamos à amnesia histórica de Ulisses e dos génios que o rodeiam -, o MpD deveria ter memória das eleições legislativas de 2011, em que a sua táctica de ataques permanentes ao então primeiro-ministro, levaram José Maria Neves à sua terceira vitória eleitoral.
Os acontecimentos de sexta-feira, demonstram uma estranha sintonia entre a ação da PGR e os soldados digitais do partido do Governo. Para começar, o mandado apareceu vazado nas redes sociais, logo seguido de “notícias” surpreendentes para colocar de boca aberta os idiotas que acreditam na primeira patranha que lhes apresentam.
A primeira “bomba” foi a de que a secretária municipal da Praia teria sido algemada; a segunda, é que Francisco Carvalho estaria ausente no estrangeiro. É evidente que isto provoca algum efeito em gente com poucos neurónios e dominada pelo fanatismo. E foi essa a intenção.
No primeiro caso, havia a intenção de passar a ideia de que a secretária municipal teria sido detida; no segundo, que o presidente da Câmara tinha fugido para o estrangeiro, quando, de facto, estava de visita à ilha da Boa Vista.
É um discurso falacioso que convence muito pouca gente e se destina, única e exclusivamente, à bolha de fiéis ventoinha, apenas para conter danos. Mas, à imensa maioria do eleitorado, essa táctica passa ao lado e já deveriam ter aprendido que é da cultura cabo-verdiana o povo ficar, quase sempre, do lado da vítima.
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Post Scriptum: não sei se Francisco Carvalho e a sua equipa são culpados de algum ou alguns crimes em que estão indiciados. Espero que não, até porque quando os crimes são muitos é de desconfiar. O que espero, sinceramente, é que se investigue, de facto, e todos tenham direito ao bom nome e à presunção de inocência, sem truques, sem judicialização da política e, muito menos, sem politização da justiça. Embora, algo me diga que, do ponto de vista criminal, a montanha nem um ratinho irá parir.
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