Basta! Dias e noites quase inteiras sem energia elétrica, torneiras secas, e uma internet que cai ao ritmo da frustração coletiva são deveras revoltantes. É um interminável capítulo de uma novela da quinta categoria, ou um filme-retrato de um país que nunca quer se habituar à precariedade e ser sinónimo de um Estado que perdeu o controlo sobre o mais elementar: garantir serviços públicos mínimos aos seus cidadãos. Me inquieta estes dias a montanha-russa de argumentos e a dualidade de critérios do Governo. Sim, as explicações para os cortes de luz foram-se alterando, de manutenção de rotina à falta de peças, até ser transformado em caso de polícia – sabotagem!, vocifera-se – fazendo-me lembrar as patéticas suspeitas sobre uma maléfica ‘mão criminosa’ do extremismo russo no apagão que há pouco tempo paralisou a decadente Europa. O ministro da tutela e os gestores da EPEC/EDEC continuam inamovíveis apesar de tudo, e dou comigo então a pensar como é que o Executivo demite o CA da TACV “por ineficiência”, quando essa equipa gestora, bem ou mal, já trouxe em apenas um ano de função três ATRs, recuperou o certificado para voos para Europa (EASA), negoceia a reatribuição do ETOPS e tem planos para retomar em Dezembro as aguardadas ligações directas para os EUA?!. Quais os critérios para decapitar uns e dar a mão a outros?
É preciso um breve recuo de memória a ver se nos entendemos nesta floresta negra: assim que começaram os cortes de energia em Santiago (não é só na Praia, que fique sublinhado), sem aviso da empresa distribuidora de electricidade como é costume, a primeira justificação oficial foi de que a EPEC estava a fazer manutenção nas máquinas. Algo rotineiro, normalíssimo, portanto. Ante a insatisfação dos utentes que não estavam a suportar tanta interrupção de energia elétrica nas suas casas, empresas e serviços, a EDEC e o ministro da Energia, Alexandre Monteiro, deram a cara para assumir que, afinal, houve avaria nalguns geradores e que bastaria trocar as peças danificadas para a electricidade voltar ao normal na ilha de Santiago. E com data certa: 1 de Outubro – a população da Praia planeara manifestar-se contra a escuridão na capital um dia antes, 30 de Setembro, e a acção teve que ser abortada por causa do anúncio da retoma da normalidade.
De repente a narrativa de manutenção passou para “intervenção operacional”, conforme o diagnóstico do administrador Antão Cruz, em declarações à imprensa, afiançando ainda que o primeiro gerador estava em manutenção em decorrência de uma avaria que implicava algum cuidado e investimento em termos de peças.
No dia 4 de Setembro, Luis Teixeira, PCA da EDEC, fez ‘mea culpa’ ao pedir desculpas públicas pela situação, prometendo, em conferência de imprensa, que a distribuição de energia elétrica seria regularizadas na semana seguinte, mas não deixando de apontar, nessa mesma sessão de perguntas com os jornalistas, para o elevado consumo devido à época de verão, devido ao excesso de calor, e a sempre criticada perda de energia por causa das ligações clandestinas, como factores a ter em conta - aliás, em 2022, a Electra celebrou um contrato com a IGAE para reforçar controlo ao roubo de energia, mas, pelos vistos...
Adiante. As tais peças necessárias vieram, enfim, com direito a filmagens e fotos depois postadas nas redes sociais como troféu. E nada. Mais e frequentes cortes rotativos, insatisfação generalizada em toda a ilha de Santiago. Pulo a parte da vinda de novos geradores e do aval de 600 mil contos para EDEC investir na manutenção e sustentabilidade, centrando na nova tese: sabotagem.
De início, parecia tratar-se de mera manobra de diversão dos internautas mais ferrenhos e radicais para desculpar o Governo, inepto e inconsequente, na matéria, e debitar as culpas numa hipotética malandricde política dos adversários. Mas eis que uma ideia banal ganhou força e os gestores da EPEC/EDEC e o ministro da tutela, que, por dignidade e apelo social, deveriam pedir demissão pelos transtornos que vêm causando à economia e às pessoas no seu dia a dia, decidiram, como propósito para adiarem a sua continuidade nos respectivos cargos, apostar no que, até prova em contrário, mais parece teoria de conspiração. E pimba: anunciam queixa na Polícia Judiciária por possível mão criminosa nos cortes constantes de energia, deitando por terra seu próprio diagnóstico do problema, que não viu (!?) possíveis adulterações, por acção humana, no funcionamento das máquinas.
A mim parece sim autossabotagem, que é quando a pessoa ou empresa age contra seus próprios objetivos e tarefas, prejudicando seu próprio progresso. É que esta táctica já é conhecida, o governo do PAICV fê-lo quando o país viveu semanas a fio em black out. Há pouco tempo, os europeus anti-Rússia usaram esse mesmo argumento para justificar o forte apagão que afectou vários países do Velho Continente, sobretudo Portugal e Espanha, apontando inicialmente o dedo a manobras diabólicas de Vladimir Putin. No fim se veio a descobrir que na origem do apagão estiveram “as desconexões de centrais elétricas no sudoeste de Espanha que começaram com uma primeira queda de um transformador em Granada seguida de mais duas perdas de produção de grande dimensão. Com a saída destas centrais, o sistema perde capacidade de absorver energia reativa que é crucial para o controlo do nível de tensão na rede. A origem de parte destas desconexões não é conhecida, embora os investigadores apontem para que tenha resultado da ativação automática das proteções dos equipamentos contra os altos níveis de tensão que se verificaram na rede”. Ou seja, embora se trate de fenómeno novo, tudo foi resultado de alguma negligência, falta de manutenção ou falhas no sistema de distribuição.
Ora a nossa velha Electra, empresa pública encarregue da eletricidade, tornou-se sinónimo de ineficiência e descredibilização. Mas culpar apenas a Electra é simplificar demasiado. O problema é estrutural e político. A empresa é, nesta altura, o espelho das fragilidades do Estado: má gestão, falta de investimento, ausência de planeamento e uma cultura de impunidade onde ninguém é responsabilizado.
A crise é tanto material quanto simbólica. Porque uma cidade sem luz é também uma cidade sem rumo. E quando os serviços essenciais colapsam, desmorona-se também o pacto de confiança entre governantes e governados. Cabo Verde não pode continuar a viver entre conferências internacionais sobre inovação e a realidade de baldes de água e velas acesas.
Nenhum país que se quer moderno pode aceitar que a sua capital viva em apagões constantes, sem responsabilização política. Não basta remendar cabos ou substituir transformadores. É urgente reformar de cima para baixo a lógica de gestão pública, profissionalizar as empresas estatais e romper com o ciclo vicioso de improviso e desculpas.
Mais grave ainda é a indiferença. As instituições calam-se, os responsáveis escudam-se em explicações técnicas e abstratas, e a população, exausta, vai-se adaptando, 'nguenhando' como der.
Enquanto os governantes continuam a prometer “energias renováveis” e “serviços inteligentes”, o cidadão comum só quer o básico — energia que não falhe, água que corra, internet que funcione. Parece pouco, mas é aí que começa a dignidade.
E até que isso aconteça, Cabo Verde continuará a ser o país do quase: quase moderno, quase digital, quase desenvolvido.
Duas medidas e dois pesos
Com o país à beira de entrar em convulsão e a população em uníssono a pedir a cabeça dos responsáveis técnicos e políticos da crise energética, o chefe do Governo enfia-se (de novo) debaixo da poltrona, deixando contudo a sola do sapato à mostra. Quer dizer, deixa transparecer com nitidez que não quer chmar o seu ministro e gestores da EPEC/EDEC a capítulo. Para não dar o braço a torcer, para não admitir falhas também no sector da energia.
Entretanto, por muito menos Ulisses Correia e Silva sacrificou outros gestores. Por exemplo, Policarpo Carvalho foi demitido de Presidente do Conselho de Administração da RTC por uma situação particular: suspeitas de VBG, um caso que veio, afinal, a acabar em nada já que a própria esposa explicou tratar-se de um equívoco. Mesmo assim, não foi poupado por UCS e também não mediu palavras na hora de sair.
Recentemente, o ministro dos Transportes anunciou mudanças na administração da TACV, com posterior confirmação pelo Primeiro-ministro, com a alegação de que a actual equipa gestora estava a ser ineficiente. Estranho, que esta mesma administração, a funcionar há apenas um ano, vem mostrando mais trabalho mesmo estando demissionária (assembleia geral da TACV de 21 de Outubro confirmará, ou não, um no CA) consegue, bem ou mal, obter resultados: trouxeram já três ATR´s, recuperaram o certificado da EASA para voos ao continente europeu, está para reaver o certificado ETOPS e anunciaram para Dezembro voos directos para os Estados Unidos.
Tirando os conflitos laborais com a classe dos pilotos e uma ou outra medida menos boa, custa entender como é penalizada, enquanto os mais odiados gestores do país no momento, os da EPEC/EDEC e o ministro da Energia, merecem confiança melhor confiança do Chefe do Governo. É muito desnivelado, sem discernimento, o critério de Ulisses. E isso não é bom nem para o seu partido, nem para o seu Executivo e muito menos para nós, que assistimos ao apagão lógico do PM, rogando por melhores dias.
Os comentários publicados são da inteira responsabilidade do utilizador que os escreve. Para garantir um espaço saudável e transparente, é necessário estar identificado.
O Santiago Magazine é de todos, mas cada um deve assumir a responsabilidade pelo que partilha. Dê a sua opinião, mas dê também a cara.
Inicie sessão ou registe-se para comentar.
Comentários