
Alícia Brito denuncia a ineficácia do Instituto Nacional de Previdência Social nas evacuações e o descaso com os beneficiários. Por lhe ser diagnosticado um grave problema de saúde que precisava de cuidados urgentes, Alícia teve que custear pessoalmente as despesas com a deslocação a Portugal, ainda não foi reembolsada e, em situação de baixa médica, continua sem receber os 70% do salário que lhe deveriam ser pagos pelo INPS.
“Tudo começou em junho deste ano, no dia 12, quando perdi os movimentos do lado esquerdo. Duas semanas antes eu estava com uma dor de cabeça que não passava. Consultava vários médicos, fiz um TAC [Tomografia Computorizada] e não deu em nada”, diz-nos Alícia Brito, rememorando os momentos de incerteza e ansiedade que então viveu, chegando a pensar que se tratava de um AVC, o que não se veio a confirmar.
Sem movimentos no lado esquerdo do corpo, incapacitada de se locomover pelos próprios meios, o marido de Alícia chamou uma ambulância. O destino foi o Centro de Saúde de Santa Maria, onde reside, mas, ali chegada, foi logo encaminhada para o Hospital do Sal, em Espargos.
Após passar pelo rastreio e vista pelos profissionais de saúde, dado o seu estado crítico e por escassez de meios de diagnóstico, foi enviada para o Hospital Baptista de Sousa, em São Vicente, tendo ela própria pago os custos do transporte aéreo, mais tarde reembolsados pelos INPS, o único reembolso que lhe foi pago até hoje.
Entre um falso diagnóstico e a esperança, passando pela burocracia
“Dei entrada no hospital, fizeram-me análises de sangue. Logo, no dia seguinte, marcaram uma ressonância magnética que mostrou uma mancha no cérebro”, é ainda Alícia que nos conta, acrescentando: “o primeiro diagnóstico que recebi em São Vicente foi de cancro. Foi um choque para mim, para a família e para todos”.
O passo seguinte foi ir a uma junta médica. Mas, como esta só reúne uma vez por mês, Alícia Brito teve de ficar cerca de duas semanas à espera.
A junta médica procedeu de acordo com o diagnóstico, através de um laudo médico solicitando a evacuação urgente para Portugal, por suspeita de cancro encefálico. Mas, o desespero da paciente ainda estava sem fim à vista, porque a burocracia se sobrepõe à necessidade e urgência de cuidados de saúde imediatos.
Havia ainda que aguardar pela homologação da evacuação pelo ministro da Saúde, que nunca chegou em tempo útil, precipitando a ida de Alícia para Portugal, mais uma vez, socorrendo-se dos seus próprios meios e do apoio de familiares.
Pelo meio, ficou duas semanas internada no Hospital Baptista de Sousa, aguardando os trâmites de uma burocracia que prevalece sobre os cuidados de saúde. E que, no seu caso, a confirmar-se o diagnóstico, poderia ter provocado a sua morte.
“Recebi alta hospitalar, mas não porque estava apta para voltar para casa, foi para não correr o risco de contrair outras doenças”, já que os hospitais são suscetíveis da contração de infeções.
“No dia 15 de julho, eu decidi, por conta própria, ir a Portugal”, diz Anícia. Isto é, um mês após ter ficado imobilizada do lado esquerdo do corpo.
“O hospital só dizia que devia aguardar, porque é um processo demorado”, levando Alícia a não esperar mais e decidir viajar para Lisboa. “Graças a Deus tenho nacionalidade portuguesa”, sublinha a beneficiária do INPS. Chegou a Portugal a 15 de julho, mas o marido, apenas com nacionalidade cabo-verdiana, só conseguiu juntar-se a ela a 27 para lhe dar assistência.
Chegada a Lisboa, o destino foi as urgências do Hospital de São José.
“Levei todos os exames, e lá, como a máquina de ressonância é mais potente, puderam detetar que não era cancro. Fiz punção lombar, fiz análise de sangue, fiz ressonância magnética e PET scan, tudo isso para verificar se era mesmo um cancro. E não era”, diz Alícia, não escondendo o alívio que, na ocasião, sentiu.
Ao alívio juntou-se a esperança. Tratava-se de uma inflamação cerebral. Também não era esclerose múltipla, antes uma lesão provocada pelo sistema imunitário, muito menos grave que a primeira e não degenerativa.
“É menos grave, porque a esclerose múltipla é degenerativa. Ou seja, cada vez que sentir um surto do tipo, a pessoa fica mais debilitada. Já no meu caso, não”, diz Alícia, significando que se pode obstar ao processo de desenvolvimento da doença através de medicação.
Desde 09 de outubro já na ilha do Sal, Alícia Brito prossegue o tratamento e a evolução tem sido muito positiva, embora ainda não esteja completamente recuperada.
O “calvário” de Alícia
“Felizmente, com a ajuda de familiares e amigos, consegui deslocar-me a Portugal por conta própria. Graças a isso, obtive o atendimento médico necessário e pude regressar viva à minha terra. Conheci, no entanto, pessoas que morreram na fila de espera, enquanto outras aguardam há anos pela tão necessária evacuação”, diz-nos, ainda, Alícia.
O traço central das queixas de Alícia Brito é a ineficácia do INPS: “Em Portugal, nomeadamente na CADE [Centro de Acolhimento de Doentes Evacuados de Cabo Verde, que funciona na embaixada], o serviço resume-se a um simples escritório, onde diariamente os cabo-verdianos comparecem para reclamar, sem que nada seja efetivamente resolvido”. Ou seja, “o INPS traduz-se, na prática, numa instituição que cobra dos trabalhadores, mas falha em garantir direitos básicos”, como o subsídio de doença.
“Vale destacar que, desde julho, tenho recebido apenas 30 porcento (%) do meu salário pela empregadora, sendo que os 70% restantes, que deveriam ser cobertos pelo INPS, não foram pagos até hoje, e já estamos em novembro. De que vale ter instituições representantes no exterior se estas não fazem valer os direitos dos cabo-verdianos”, interroga-se Alícia.
“Ao recorrer ao CADE, fui informada de que, por ter tomado a iniciativa de ir por conta própria, sem aguardar pelo sistema demorado e ineficaz, perderia todos os direitos garantidos pela evacuação oficial, nomeadamente, ajuda de custo, subsídio de alimentação, entre outros”, refere Anícia, acrescentando: “fui também informada de que existem 267 casos pendentes à minha frente, à espera da consulta marcada pela Direção Geral de Saúde”.
As informações recebidas na embaixada, bem como a conduta do INPS são casos evidentes de descaso pelos contribuintes, alternando entre informações imprecisas e incumprimentos financeiros.
O INPS tem-se escusado a pagar os retroativos a Alícia Brito, alegando que, agora, a responsabilidade é da Comissão de Verificação de Incapacidades (CVI), enredando, ainda mais, a beneficiária nas teias da burocracia, sem ver garantidos os seus direitos de contribuinte.
“O curioso é que, para descontar dinheiro dos trabalhadores, o processo é automático e mensal; mas, para garantir os direitos trabalhistas, demora meses e envolve muita burocracia”, refere por último, a nossa interlocutora.
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