
As empresas públicas de comunicação social são, em um Estado de Direito Democrático, entidades que gozam de um tratamento e de um regime especial que as comuns empresas, ainda que públicas, não dispõem, e estão, simultaneamente, sujeitas a um rigoroso escrutínio que deriva de determinações constitucionais. Ressalta deste caso, que deveres alegadamente violados e que serviram de base para responsabilizar disciplinarmente a Diretora da TCV, materialmente põem em causa a Constituição no que concerne à independência dos jornalistas e contrariam a autonomia editorial e o Estatuto dos Jornalistas.
Quem administra as empresas públicas de comunicação deve conhecer bem as especificidades dessa área, bem como as dinâmicas que derivam da especial relação entre a gestão empresarial e a editorial, por forma a evitar equívocos e conflitos, muitas vezes, desnecessários, senão mesmo, dispensáveis.
O nº 5 do artigo 60º da Constituição da República de Cabo Verde (CRCV) estabelece que cumpre ao Estado, por um lado, garantir “a isenção dos meios de comunicação do sector público”, e, por outro, o dever de assegurar “a independência dos seus jornalistas perante o Governo, a Administração e os demais poderes públicos”.
O que significa a independência dos jornalistas?
Transparece desta formulação, que o trabalho dos jornalistas apenas está vinculado às leis e à sua consciência. No entanto, a CRCV admitindo que os jornalistas pudessem cometer desvios no cumprimento das suas obrigações, atribuiu a uma entidade independente, a ARC, a responsabilidade de os fiscalizar e sancionar, tal como decorre do artigo 27º do Estatuto dos Jornalistas.
Do mesmo modo, a CRCV impôs ao Estado a obrigação de preservar a independência dos jornalistas perante os poderes públicos no geral, e essa imposição decorre da necessidade de se assegurar a isenção e o pluralismo nos meios de comunicação públicos, pedra de toque de qualquer regime que se quer democrático.
Dessa orientação constitucional em garantir a independência dos jornalistas, o artigo 23º da Lei n° 56/V/98, alterada pela Lei nº 70/VII/2010, a chamada lei da comunicação social, estabeleceu uma norma que atribuiu aos jornalistas “um estatuto especial”, onde se prevê “os seus direitos e deveres e as incompatibilidades, os requisitos para o exercício da profissão, atribuição do título profissional e as sanções pelas infrações”.
A lei que consagrou o Estatuto dos Jornalistas e que definiu um conjunto de direitos e deveres aos jornalistas, não remeteu para qualquer outra legislação normas aplicáveis aos direitos e deveres de jornalistas, e essa não remissão deve ser tida em devida conta quando se vai buscar outras disposições na legislação geral para aplicar aos jornalistas.
Jornalistas não são comuns trabalhadores
A lei, ao consagrar um “estatuto especial” aos jornalistas quis, sem dúvida, retirá-los da condição de simples e comum trabalhador, integrando-os em um grupo restrito de categorias profissionais, cujas atividades são reguladas por lei específica.
Exemplos de estatutos especiais abundam: temos os casos dos deputados, dos magistrados, dos professores, entre outras categorias, cujos atividades, direitos, deveres, regalias e privilégios são reguladas nos seus respetivos estatutos.
No caso dos jornalistas, a Lei nº 72/VII/2010, que aprovou o Estatuto dos Jornalistas, define no seu artigo 4º quem é jornalista profissional e as funções que exerce, tendo estabelecido na sua alínea b) que o exercício do cargo de direção é também de natureza jornalística.
Assim, de acordo com a lei vigente, o diretor de um órgão de comunicação social é jornalista e, como tal, a atividade que desenvolve é jornalística, logo coberta pelo estatuto dos jornalistas.
O nº 1 do artigo 24° da Lei n° 56/V/98, alterada pela Lei nº 70/VII/2010, determina que órgãos, como a radio, televisão e publicações periódicas, devam ter um Diretor, cuja missão é a de definir a orientação e de determinar o conteúdo dos órgãos de comunicação social sob a sua direção.
A lei confere ainda ao Diretor poderes nomeadamente os de (i) elaborar o estatuto editorial (ii) designar os jornalistas com funções de chefia e coordenação (iii) presidir ao Conselho de Redação.
Mais ainda: a lei para além de conferir poderes ao Diretor, lhe atribui também direitos, nomeadamente: (i) o de ser “ouvido pela entidade proprietária em tudo o que disser respeito à gestão do meio de comunicação social na parte respeitante à atividade de comunicação social” e (ii) o de ser “informado sobre a situação económica e financeira da entidade proprietária e sobre a sua estratégia em termos editoriais” (Artigo 24° Lei n° 56/V/98, alterada pela Lei nº 70/VII/2010).
Logo se pode facilmente observar que o Diretor de um órgão público de comunicação social não é um simples trabalhador ou um assalariado ou contratado, ao qual se aplica, sem mais, a lei laboral. O Diretor de um órgão de comunicação social tem um estatuto e um regime especial a regular a sua atividade.
A legislação laboral, uma lei geral, só é aplicável aos jornalistas naquilo que não contrariar o seu estatuto!
Parece que não foi essa a interpretação que se fez no caso RTC/TCV.
Ora, no diferendo que opõe a Administração da empresa à Diretora da TCV, e que resultou na aplicação de um processo disciplinar e subsequente suspensão por 45 dias da Diretora da estação, há um conjunto de situações que carece de análise para que se perceba melhor a natureza e os contornos da discórdia. E, para isso, impõe-se que se conheça o conteúdo da acusação que fundamentou a decisão punitiva do Conselho de Administração.
Nota de Culpa colide com Constituição e briga com o Estatuto dos Jornalistas
Analisando a Nota de Culpa e, em especial, a imputação de responsabilidades disciplinares decorrentes de normas violadas, verifica-se que a Administração da RTC se socorreu do artigo 128º do Código Laboral, que trata dos “deveres gerais” dos trabalhadores, para invocar incumprimento de deveres por parte da Diretora da TCV, porquanto, no entender do Conselho de Administração, se tratar de uma simples trabalhadora da empresa.
De forma resumida, transcreve-se, na parte que interessa, a acusação:
“12. O comportamento da arguida indicia, nomeadamente, a violação dos seguintes deveres laborais a que estava obrigada, nos termos das alíneas c), d) e), f) e l) do nº 1 do art.º 128º do Código laboral:
· Obedecer a entidade empregadora em tudo o que respeita à execução e a disciplina do trabalho, salvo na medida em que as ordens e instruções daquela se mostrarem contrárias aos direitos e garantias;
· Guardar lealdade à entidade empregadora, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ela, nem divulgando informações referentes à organização, métodos de produção ou negócios;
· Exercer com diligência e zelo as tarefas de que for incumbido pelo empregador dentro dos limites da lei e do contrato;
· Contribuir de modo efetivo para o aumento da produtividade na empresa;
· Cumprir todas as demais obrigações emergentes da lei, de instrumentos de regulamentação coletiva ou do próprio contrato”.
13. Ora, os factos imputados à trabalhadora-arguida configura-se na violação dos deveres supracitados, podendo consubstanciar a transgressão frontal à lei laboral e a relação profissional com a RTC, enquanto Diretora da televisão”.
Analisando a Nota de Culpa, ressalta logo a dúvida se essas normas invocadas do Código Laboral são aplicáveis a um jornalista profissional, cujos deveres estão estabelecidos no seu estatuto.
Embora o artigo 42º dos estatutos da RTC preveja que “as relações entre a RTC, S.A. e os trabalhadores a ela subordinados regem-se pelo regime do contrato individual de trabalho” (Decreto-lei nº 49/2019), isso não significa que esta norma tenha suspendido o Estatuto dos Jornalistas, até porque um decreto-lei do governo tem uma força normativa inferior a uma lei do parlamento e, outrossim, uma lei especial e específica - Estatuto dos Jornalistas - deve prevalecer sobre uma lei geral - Código Laboral -, havendo colisão normativa.
A suposta violação dos deveres, constantes na nota de acusação, segundo a qual, a Diretora deve (i)“obedecer a entidade empregadora em tudo o que respeita à execução e a disciplina do trabalho” (ii) “guardar lealdade à entidade empregadora” (iii) “exercer com diligência e zelo as tarefas de que for incumbido pelo empregador” (iv) “contribuir de modo efetivo para o aumento da produtividade”, contraria o disposto na CRCV, relativamente à independência dos jornalistas, e briga frontalmente com o disposto no artigo 17º do Estatuto dos Jornalistas.
Segundo os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira “A primeira exigência do regime constitucional dos órgãos públicos de comunicação social é a sua independência […] perante o Governo, a Administração e os demais poderes públicos, ou seja, perante toda e qualquer autoridade pública, a começar por aquela que é proprietária do órgão de comunicação social” (Canotilho e Moreira, in Constituição Portuguesa Anotada).
Sublinhe-se: a independência perante a entidade proprietária.
Pode parecer estranha, mas é esta a opção que se fez.
Os deveres de obediência, de lealdade ou de zelar pelo cumprimento de ordens superiores não são compagináveis com a determinação constitucional de independência dos órgãos e dos jornalistas.
Aos jornalistas, nos termos da Constituição e da lei, cabe, nomeadamente:
a) Obedecer à linha editorial do órgão de comunicação social;
b) Lealdade para com os utentes do serviço público, fornecendo informação verdadeira, isenta e objetiva;
c) Cumprir com as leis e com o seu código deontológico.
Ademais, o nº 1 do artigo 17º do Estatuto dos Jornalistas prescreve – considerando que este define o cargo de direção como jornalista – que o “jornalista não pode ser constrangido a exprimir opinião ou a executar atos profissionais contrários à sua consciência, nem pode ser alvo de medida disciplinar em caso de recusa”.
Estatuto dos Jornalistas é inconciliável com os deveres inscritos na acusação
Este normativo, plasmado no Estatuto dos Jornalistas, é inconciliável com os deveres inscritos na acusação, porquanto esse dispositivo assegura aos jornalistas quase o estatuto de “objetor de consciência”. A garantia constitucional da independência conduz, necessariamente, a que as ordens do “chefe” que forem contrárias ao que o jornalista conscientemente pensa, este poderá recusar as acatar, e a lei, em nome da sagrada independência, determina que não haja nenhuma ação disciplinar em resultado dessa recusa.
Os eminentes constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira doutrinam que “a independência exige, designadamente, um estatuto de autonomia de orientação e de suficiência financeira dos órgãos de comunicação social públicos, bem como um regime específico dos respetivos diretores e responsáveis (não sendo compaginável com o principio da Independência o poder de livre nomeação e exoneração deles).
No entender desses constitucionalistas, o poder de livremente nomear e exonerar o Diretor de órgão público fere o principio da independência dos órgãos, daí, no caso de Cabo Verde, se ter previsto a intervenção da ARC e dos Conselhos de Redação no processo de nomeação e demissão do diretor do órgão de comunicação social.
Assim, o jornalística/diretor dispõe da garantia constitucional e legal de independência, tem o dever de obedecer à linha editorial definida e está, ainda, obrigado ao cumprimento do código deontológico profissional, não podendo lhe ser impostos deveres semelhantes aos formulados na acusação, por interferirem com a garantia constitucional da independência do jornalista.
Não se pode tratar os jornalistas, enquanto detentores de um estatuto especial, como se fossem trabalhadores de qualquer fábrica de “enchidos”, a que se possa impor obediência, lealdade e zelo.
O mais importante neste artigo 17º é o direito que concede aos jornalistas de não executarem “ORDENS CONTRÁRIOS À SUA CONSCIÊNCIA” e, sobretudo, de esse ato de recusa estar protegido de procedimentos disciplinares. Este é o ponto mais relevante da garantia de independência.
Ainda dentro da linha de independência dos órgãos públicos da comunicação social e da independência da atividade jornalística impostas pela CRCV, a Lei da Televisão, Lei nº 90/VIII/2015, bem como o próprio o estatuto da RTC, S.A., Decreto-lei nº 49/2019, vieram densificar os dispositivos de proteção e garantias de independência dos órgãos de comunicação social.
O nº 6 do artigo 40º da Lei da Televisão estabelece expressamente que os “cargos de direção ou de chefia na área da informação são exercidos com autonomia editorial, estando vedado ao operador de televisão interferir na produção dos conteúdos de natureza informativa, bem como na forma da sua apresentação”. A lei confere, ainda, ao responsável pela orientação e supervisão dos conteúdos - no caso, o Diretor - poderes de interpretar e executar o estatuto editorial, dirigir e coordenar o serviço de programas televisivos e assegurar a sua programação e edição” (nº 8 do artigo 40º da Lei nº 90/VIII/2015).
O Decreto-lei nº 49/2019 que aprova os estatutos da RTC, S.A. vai na mesma direção quando estabelece no nº 1 do artigo 5º que a “responsabilidade pelos conteúdos dos diferentes serviços de programas da RTC, S.A. pertence aos respetivos diretores”.
Mais ainda, com uma clareza cristalina, o nº 3 do artigo 5º refere que as orientações de gestão cometidas ao Conselho de Administração da RTC “não incidem sobre matérias que envolvam autonomia e responsabilidade editorial pela informação dos serviços de programas da RTC, S.A. a qual pertence, direta e exclusivamente, ao diretor do órgão”.
Esse normativo aponta no sentido de que o Conselho de Administração da RTC não tem prerrogativas para dar ordens, nem exigir obediência e lealdade em matéria editorial, como, por exemplo, integrar ou retirar programas na grelha de programação, que é da exclusiva responsabilidade da direção do órgão.
Quais são as implicações que resultam da aplicação da pena disciplinar de suspensão por 45 dias à Diretora da TCV?
A lei da Comunicação Social estabelece no nº 4 artigo 24º que a “nomeação e demissão do Diretor dos órgãos públicos ou concessionárias de serviço público da Comunicação Social são da competência da entidade proprietária, ouvidos a ARC e o Conselho de Redação do órgão”.
Do mesmo modo, o estatuto da RTC dispõe que compete ao Conselho de Administração “designar, de entre os candidatos aprovados em concurso público interno, os responsáveis pela seleção e pelos conteúdos dos diferentes serviços de programas da RTC, S.A., mormente dos diretores e dos chefes dos departamentos de informação e de programação” (alínea e) do artigo 27º do Decreto-lei nº 49/2019).
No entanto, esse decreto-lei que aprova os estatutos da RTC não faz menção que esses poderes do Conselho de Administração não são de livre aplicação, e que o seu exercício está condicionado por força do disposto no nº 4 do artigo 24º da lei da comunicação social.
Por outro lado, a figura jurídica de suspensão do diretor do órgão não existe no quadro jurídico da comunicação social cabo-verdiana, não tendo a lei previsto a situação de um órgão de comunicação social funcionar sem o respetivo diretor e nem estabelecido um regime de transição no caso de tal acontecer.
TCV está a funcionar “fora da lei”
Ninguém cogitou a possibilidade que um conselho de administração tivesse a ousadia de suspender um diretor da estação, com base na violação dos deveres gerais do trabalhador, criando um vazio incompatível com o Estatuto da Televisão.
Assim, o nº 1 do artigo 40º da Lei da Televisão que determina que os “serviços de programas televisivos devem ter um responsável pela orientação e supervisão do conteúdo das suas emissões” está a ser violado, já que a televisão pública está a funcionar sem o diretor.
Estando a TCV a funcionar “fora da lei”, a ARC, enquanto entidade reguladora da comunicação social, é demandada a entrar novamente em ação, tendo em conta que desde o dia 31 de outubro, a televisão pública de Cabo Verde passou a funcionar em regime de “sem comando”.
Em conclusão:
1. O diretor de órgão de comunicação é, por força da lei, jornalista e a função que exerce é jornalística;
2. Os jornalistas são uma categoria profissional, cujos direitos e deveres e as incompatibilidades, os requisitos para o exercício da profissão, atribuição do título profissional e as sanções pelas infrações são regulados em diploma próprio, o Estatuto dos Jornalistas;
3. A Lei Laboral aplica-se aos jornalistas naquilo que não contraria o Estatuto dos Jornalistas. Em caso de disposições normativas conflituantes, entre a Lei Laboral e o estatuto dos jornalistas, prevalecem as constantes do Estatuto dos Jornalistas;
4. Os deveres alegadamente violados e que serviram de base para responsabilizar disciplinarmente a Diretora da TCV, materialmente põem em causa a CRCV no que concerne à independência dos jornalistas e contrariam a autonomia editorial e o Estatuto dos Jornalistas;
5. A pena de suspensão de 45 dias à Diretora de TCV pode não ter cobertura legal, uma vez que não se vislumbra um normativo que conceda esse poder ao Conselho de Administração. A lei apenas confere poderes ao Conselho de Administração de nomear e demitir, ouvidos a ARC e o Conselho de Redação da TCV;
6. A suspensão da Diretora da TCV cria um vazio na televisão, não havendo quem se responsabilize pela direção e coordenação do serviço de programas televisivos e que assegure a sua programação e edição, facto que poderá configurar a violação do disposto no nº 1 do artigo 40º da Lei da Televisão;
7. Finalmente, deve-se procurar encontrar uma solução amigável, a contento de todos, que vise terminar com o diferendo que, infelizmente, se baseou em equívocos e mal-entendidos, contribuindo para que a paz e a tranquilidade voltem a reinar na RTC, S.A.
O país agradece.
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