Perigosos sinais de Doxocracia. E Ulisses deve estar a gostar disso
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Perigosos sinais de Doxocracia. E Ulisses deve estar a gostar disso

Hoje há muito mais liberdade e espaço para qualquer cidadão opinar. Certo. Mas nunca a livre opinião feriu tão profundamente a própria democracia como acontece nos tempos hodiernos, em que tudo está atrelado aos avanços tecnológicos e à tirania das redes sociais, onde a velocidade dos boatos e da desinformação encontrou terreno fértil. A opinião, antes privilégio de elites intelectuais, académicas e políticas, tornou-se uma mercadoria vulgar, distribuída à velocidade de um clique e consumida sem qualquer mediação crítica.

A politóloga italiana Nadia Urbinati, professora na Universidade Columbia, Nova Iorque, cunhou este neologismo (doxocracia, do grego ‘doxa’, que significa opinião, e cracia, que vem de ‘kratos’, poder) para definir o que chama de “monopólio da nossa mente” ou “controlo da mente”, um novo “regime político” em que quem está no poder manipula a opinião dos cidadãos.

Estamos a viver uma fase em que as pessoas sentem necessidade de, literalmente, gritar que é deste ou desse lado. Fazem-no porque são vítimas das redes sociais, onde o debate (político) virou histeria e ódio, nada de discussão de ideias. Sim, as redes sociais fazem com que as pessoas convivam apenas com quem pense igual. Resultado: ficam cada vez mais fanáticas, porque falam para serem aplaudidas pelo seu núcleo restrito e selecto, uma espécie de afago ao ego, um orgasmo mastúrbico. E isso se repete dia após dia. A política com elevação vai morrendo indigentemente, porque o que conta é o assassinato de caráter do adversário (de parte a parte) sem o mínimo pudor. Não há pedagogia, apenas demagogia.

Ora bem, no passado a opinião tinha peso porque era construída sobre o tripé do conhecimento, da responsabilidade e da reputação. Hoje, a doxocracia — o governo da opinião — está a substituir a meritocracia do argumento por uma espécie de plebiscito permanente, em que vale mais quem grita mais alto, quem insinua com mais maldade, quem viraliza com mais eficácia. A verdade, essa, tornou-se um detalhe inconveniente.

Assisto, atónito, à pseudo-polémica em torno da foto de Francisco Carvalho, presidente do PAICV (julgo que estava nesse evento da FIC enquanto presidente da Câmara Municipal da Praia), com trabalhadores da RTC, que as redes sociais não pouparam nas críticas, não insinuando, e sim afirmando da sua suposta influência na linha editorial da estação pública de rádio e TV. Já era patética a interpretação feita por causa dessa fotografia, tornou-se estúpida quando também foi mostrado o Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro, Lourenço Lopes, que tutela a pasta da Comunicação Social, em pose idêntica, com os mesmos ou se calhar outros funcionários da RTC.

Não vou gastar tempo aqui tentando sanar este ou aquele, ou então condenar essoutro e aqueloutro, que quiseram ser apenas empáticos com quem lhes pediu uma foto de recordação. Meu foco é na utilização maldosa e maliciosa da imagem feita do caso por cidadãos com certa responsabilidade política, que, acho eu, até gostariam de carinho semelhante e assim posar na foto para exibir o quanto serão queridos. Efectivamente, quando, além de perfis falsos e internautas desinformados que lançam especulações que outros dão por certo, são deputados municipais, como Manuela Brito, e nacionais, Alcides de Pina, a propagarem ideias manipuladoras da consciência social, com demagógico fito de tirar proveito político de uma interpretação errónea e subjectiva, a verdade sobre si tomba. E pode fazer também ruir o seu partido – por ausência de credibilidade – e o actual Governo, cujo PM e líder partidário, Ulisses Correia e Silva, qual monge tibetano votado ao silêncio, não educa seus bajuladores a conter certas intervenções.

São estes posicionamentos de personalidades políticas que galvanizam comportamentos extremistas e, em muitos casos, fundamentalistas dos seus seguidores a propagar boatos. Nas redes sociais o impacto é tremendo, porque rápido e expansivo, embora fugaz. Só que tem força, a força da opinião numa sociedade alienada por falta de convicção, numa geração de cabeça baixa, com o rosto na tela do celular sem ver o seu redor. E são eles que emitem opiniões de temas que não dominam, mas com um poder de convencimento terrível junto dos seus.

A doxocracia, insisto, não será apenas um ambiente ruidoso: é um sistema que transforma qualquer ignorância em certeza absoluta ou qualquer mentira em convicção, imune à verificação. É indesmentível, que se criou uma cultura de opinião desinformada, onde se confunde “eu acho” com “eu sei” e onde o “direito a opinar” se converteu num salvo-conduto para a irresponsabilidade.

O resultado é devastador, meus caros. A erosão das instituições, a descrença na imprensa, o ataque constante à ciência, a substituição do debate pelo insulto, a política transformada num reality show permanente. A doxocracia mina silenciosamente a democracia porque desloca o centro da vida pública: já não se discute o que é verdadeiro, mas apenas o que é conveniente. Já não importa o que é racional, mas o que é popular, não interessa o que é justo, mas o que viraliza.

A isto somam-se dois fenómenos particularmente perigosos:

Primeiro, o que hoje em dia se cunhou como a “economia da atenção”, que, trocado por miúdos, significa premiar o sensacionalismo, o extremismo e o escândalo, empurrando o debate público para os extremos.

Segundo, a “democratização sem filtros da palavra” tema debatido até à exaustão na era digital. Explico: garantir a total liberdade para cada cidadão falar o que lhe der na gana seria uma conquista nobre se viesse acompanhada da democratização do conhecimento e da responsabilidade. Mas não veio. E assim, qualquer impostor digital veste o manto do especialista. Qualquer rumor se apresenta como “verdade alternativa”.

E como estava a dizer, é neste ambiente tóxico que florescem os populismos, o revisionismo histórico, a agressividade política e a perseguição pessoal. O perigo não está apenas na opinião errada — isso sempre existiu. O perigo está na convicção arrogante e inabalável de quem desconhece, mas proclama com fervor missionário. A doxocracia produz seguidores, não cidadãos; produz certezas, não dúvidas; produz julgamentos repentinos e sumários, não o necessário debate público.

Se a democracia continuar refém da doxocracia o que nos espera não é mais liberdade, mas sim mais ruído, mais polarização e mais fragilidade institucional. E uma democracia frágil, mesmo que barulhenta, está sempre à beira de deixar de ser democracia. Simples assim.

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SOBRE O AUTOR

Hermínio Silves

Jornalista, repórter, diretor de Santiago Magazine

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