Quando a água volta a cair, e o país volta a revelar-se
Colunista

Quando a água volta a cair, e o país volta a revelar-se

A responsabilidade tem de ser permanente, a prestação de contas tem de ser pública, a solidariedade tem de ser real e não apenas simbólica. Não podemos continuar a viver entre tragédias repetidas e relatórios que ninguém lê. Não podemos continuar a medir o sofrimento conforme a conveniência política. E não podemos continuar a tratar o povo como espectador das suas próprias perdas. Se Cabo Verde quiser ser um país que respeita as suas ilhas, a sua diáspora e a sua gente, terá de começar por uma verdade simples, a água pode cair onde quiser, mas a solidariedade e a responsabilidade têm de ser iguais para todos.

As cheias que atingiram algumas zonas da ilha de Santiago, especialmente no concelho do Tarrafal, voltaram a recordar ao país aquilo que tentamos sempre esquecer, a fragilidade das nossas infra-estruturas, a falta recorrente de prevenção e a eterna repetição das mesmas tragédias.

A água entrou pelas casas, arrastou bens, bloqueou estradas e subtraiu uma vida. Nada disto precisa de dramatização, a realidade fala por si.

O que surpreende, embora já não devesse, é a rapidez com que a tragédia abre espaço ao oportunismo. Bastou a água baixar para surgirem nas redes sociais, comparações absurdas entre a dor de Santiago e a dor de São Vicente, aquela tragédia de Agosto em que se registaram 192,3 mm de chuva em poucas horas, resultando em vários mortos, centenas de casas destruídas e pessoas temporariamente deslocadas ou afectadas.

A insinuação, por vezes disfarçada, de que o sofrimento de uma ilha deslegitima o sofrimento de outra não só é perigosa, como é profundamente anti-cabo-verdiana.

O povo é só um, tanto nas vitórias, como nas dificuldades.

Não existe uma ilha com mais direito ao luto do que outra, não existe um município autorizado a chorar mais alto.

O povo de São Vicente reergueu a ilha quase sem ajuda da Camara Municipal. Durante semanas assistimos a um “Djunta Mon” da população, na limpeza das casas e estradas, bem como à entrega de refeições quentes e cestas básicas àqueles que ficaram mais vulneráveis.

Outro fenómeno inquietante reapareceu com a mesma rapidez da chuva, o querer canalizar as ajudas destinadas originalmente à reconstrução pós-cheias de São Vicente, para a situação em Santiago. A ideia circula como sendo bom senso, mas a verdade é mais incómoda: as ajudas recolhidas após a tragédia de Agosto ainda não foram total e claramente justificadas, ainda não se apresentou um relatório de aplicação, ainda não houve uma prestação de contas transparente.

Há quem tenha contribuído, dentro e fora do país, que continua sem saber o destino desses fundos que foram anunciados com tanto destaque. E num país onde a confiança é um bem precioso, qualquer silêncio prolongado transforma-se em dúvida.
É precisamente essa dúvida que hoje se alastra. A descrença nas angariações de fundos não nasceu da “riola” do povo, nasceu da repetição de práticas pouco claras. A diáspora, que é a primeira a responder, já pergunta para onde vai o dinheiro, quem gere, quem fiscaliza, quem garante que os recursos chegam às famílias afectadas e não se perdem pelo caminho.

A população dentro do país faz a mesma pergunta, porque na memória recente existem demasiadas arrecadações anunciadas, demasiadas promessas de reconstrução, demasiadas operações mediáticas e poucos resultados visíveis no terreno.

Enquanto isso, relatórios internacionais, como o elaborado pelo Banco Mundial sobre a exposição de Cabo Verde a cheias rápidas, alertam há anos para a urgência de intervenções estruturais, limpezas de ribeiras, reforço de drenagens e criação de sistemas de resposta eficaz. Os dados existem, as recomendações existem, mas a acção concreta continua a chegar tarde demais. E quando chega, chega após a destruição e nunca antes.

A cada nova chuva forte, o país assiste ao mesmo ciclo: a água entra, o povo perde, o governo aparece, declara emergência ou calamidade, garante operações de socorro e promete medidas. Depois disso, vem o silêncio.

As ilhas esperam, as obras atrasam-se, os relatórios não são publicados, e os fundos evaporam-se.

O problema não está na chuva, está na incapacidade de preparação. O clima pode ser imprevisível, o descaso já não é.

Não basta pedir união quando a água cai, é preciso praticá-la quando o país seca novamente e cada ilha volta ao seu abandono cíclico.

O povo cabo-verdiano sempre foi um, e será sempre um, independentemente da ilha em que vive ou da ilha onde nasceu.

A dor do Tarrafal não é menor que a dor de Rbera Bote, a perda de um emigrante em Santiago não vale nem mais nem menos, que a perda de 11 pessoas (entre elas três crianças), em Agosto.

Se o Estado não tratar esta verdade como base de governação, continuará a empurrar a nação para a divisão e a descrença.

Quando a água voltar a cair, como inevitavelmente cairá, o país precisa de estar preparado. E para isso é urgente romper com o ciclo de promessas, silêncios e improvisações.

A responsabilidade tem de ser permanente, a prestação de contas tem de ser pública, a solidariedade tem de ser real e não apenas simbólica.

Não podemos continuar a viver entre tragédias repetidas e relatórios que ninguém lê.

Não podemos continuar a medir o sofrimento conforme a conveniência política.

E não podemos continuar a tratar o povo como espectador das suas próprias perdas.

Se Cabo Verde quiser ser um país que respeita as suas ilhas, a sua diáspora e a sua gente, terá de começar por uma verdade simples, a água pode cair onde quiser, mas a solidariedade e a responsabilidade têm de ser iguais para todos.

FORTE APLAUSO

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