Peixeirada no Quintal
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Peixeirada no Quintal

O Quintal das Artes é uma riqueza cultural, económica e simbólica. As peixeiras são trabalhadoras que sustentam famílias e merecem condições adequadas para fazê-lo. Estas duas realidades não são incompatíveis, pelo contrário, poderiam coexistir, se houvesse visão. Mas visão exige respeito, auscultação e responsabilidade. São Vicente não precisa de mais ruído político nem de conflitos desnecessários. Precisa de políticas culturais pensadas com seriedade e de decisões públicas que coloquem as pessoas, e não a conveniência, no centro.

Visitei o Quintal das Artes pela primeira vez há cinco anos. O encanto foi imediato. Um espaço virado para o mar, onde a criatividade respira e a identidade cultural de São Vicente ganha corpo. Imaginei ali um “LX-Factory” mindelense, um polo vivo de arte, formação, inovação e economia criativa. Não era uma utopia: o potencial estava E ESTÁ, à vista.

O Quintal das Artes tornou-se, ao longo de mais de duas décadas, um espaço de criação, produção e sustento digno para dezenas de artesãos. Não é apenas um sítio para expor peças; é oficina, fonte de rendimento, laboratório cultural e lugar de pertença.

Representa uma forma de resistência criativa numa ilha cuja cultura é, muitas vezes, utilizada como cartão-de-visita, mas raramente tratada com o respeito e investimento que merece.

Por isso, o que está a acontecer nos últimos dias não pode ser reduzido a uma polémica circunstancial. É sintomático de um padrão mais profundo, onde a cultura e quem vive dela continua a ser empurrado para o fim da fila nas decisões públicas.

Depois da tempestade Erin, que no dia 11 de Agosto devastou São Vicente, o Quintal das Artes sofreu prejuízos severos. Perdas materiais, peças destruídas, e ateliês danificados. Quem conhecia o espaço percebeu a dimensão do estrago. Seria natural esperar que a Câmara Municipal apoiasse a recuperação e protegesse um dos poucos núcleos culturais que, apesar de todas as dificuldades, gera trabalho, turismo, visibilidade e identidade para a ilha.

Em vez disso, foram os próprios artesãos que limparam, reconstruíram e devolveram vida ao Quintal, sem esperar por milagres do “Santo Augusto”.

Foi neste contexto que surgiu a decisão da Câmara de instalar provisoriamente no Quintal das Artes as peixeiras que aguardam há dois anos, a conclusão das obras no Mercado do Peixe. A necessidade das peixeiras é legítima e urgente, e ninguém contesta que merecem um mercado digno, limpo e funcional. São mulheres que carregam diariamente um sector vital da economia informal, e têm esperado demasiado tempo por condições de trabalho humanas.

O problema não está nas peixeiras, mas na forma como a solução foi imposta. Não houve diálogo transparente, consulta real, nem respeito pelos que ocupam o espaço. A decisão chegou pronta e os artesãos deveriam apenas aceitar.

Quando quiseram começar as obras de adaptação, o portão fechou-se. Não por capricho, mas porque quem lá trabalha sentiu que foi ignorado.

Importa clarificar que não existe conflito entre peixeiras e artesãos. Não é essa a narrativa verdadeira, embora alguns tenham tentado puxar a discussão para esse terreno perigoso e divisório.

O que existe é um choque entre uma má decisão política e dois grupos de trabalhadores que merecem respeito. Ambos representam trabalho, tradição e sustento. Ambos fazem parte da cultura viva da ilha.

O Quintal das Artes não é um espaço vago à espera de função. É um organismo cultural, com memória, com rotinas criativas e com impacto económico e social.

Descaracterizá-lo com soluções improvisadas é um erro grave de governação cultural. E a cultura, quando tratada como descartável, perde-se e com ela, perde-se uma parte da identidade de São Vicente.

A reacção da sociedade civil e a mobilização de vozes activas expuseram um sentimento que há muito circula na ilha que é de exaustão perante decisões tomadas de cima para baixo, comunicadas tarde e mal justificadas.

Falta planeamento, falta visão cultural, falta entender que cultura não se gere com improviso e remendos.

São Vicente tem acumulado episódios que reforçam a percepção de que os sectores culturais e informais são tratados como peças que se podem mover conforme a conveniência do momento. E quando a população começa a perder a paciência, não é apenas pelas decisões em si, mas pelo padrão que elas revelam: ausência de escuta, ausência de participação e ausência de responsabilidade pública.

As peixeiras precisam de um espaço digno, é um dever do município garanti-lo. Mas os artesãos têm direito a preservar o Quintal das Artes, que reconstruíram com as próprias mãos, e que representa um património imaterial que não se pode substituir.

A solução não passa por sacrificar um sector para remediar a negligência noutro. Esta troca forçada não resolve nada; apenas cria mais um problema.

Resolver este impasse exige diálogo verdadeiro e não imposição; exige planeamento estruturado e não ajustes à pressa; exige assumir responsabilidades e não empurrar justificações.

A cultura é demasiado valiosa para continuar a ser tratada como um “espaço disponível” para tapar buracos de má gestão noutras áreas.

O Quintal das Artes é uma riqueza cultural, económica e simbólica.

As peixeiras são trabalhadoras que sustentam famílias e merecem condições adequadas para fazê-lo.

Estas duas realidades não são incompatíveis, pelo contrário, poderiam coexistir, se houvesse visão. Mas visão exige respeito, auscultação e responsabilidade.

São Vicente não precisa de mais ruído político nem de conflitos desnecessários. Precisa de políticas culturais pensadas com seriedade e de decisões públicas que coloquem as pessoas, e não a conveniência, no centro.

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