
Não há democracia saudável onde o escrutínio escolhe alvos conforme a geografia, a conveniência política ou o ruído mediático do momento. A exigência não pode ser sazonal, nem alternar conforme o calendário festivo, a pressão das redes sociais ou o cansaço da opinião pública. Ou é para todos, ou deixa de ser credível. O problema não está na investigação em si, nem na cultura, nem nas festas populares. O problema está na ausência de um critério uniforme de responsabilidade pública. Está no facto de uma câmara ser colocada sob lupa permanente enquanto outra navega entre tragédias, promessas e anúncios festivos sem prestar contas de forma clara, acessível e continuada. Quando a fiscalização se torna espectáculo num lado e silêncio no outro, o Estado perde autoridade moral.
Crónica desta semana está a sair quase a ferros. Ainda questionei não publicar. A minha indignação face aos acontecimentos deste fim-de-semana está a deixar-me num vazio intelectual enorme. Assim, o que escrevo aqui hoje é o objecto de uma mente e de um coração cansado do dápadoidismo institucionalizado na nôs terra.
A austeridade que muda conforme o calendário
Há momentos em que o país parece medir-se com duas réguas distintas. O que aconteceu este fim de semana na Câmara Municipal da Praia e a forma como, em contraste, se tem lidado com a actuação da Câmara Municipal de São Vicente expõem uma desigualdade de tratamento que já não pode continuar a ser ignorada. Não está em causa a filiação partidária de quem governa, nem a legitimidade e autonomia das instituições, mas a coerência do Estado, a responsabilidade na gestão pública e o respeito devido aos cidadãos.
Na Praia, diligências judiciais em curso desencadearam um alarme imediato, amplificado por leituras precipitadas e por um ambiente de suspeição generalizada. Uma investigação, ainda em fase de averiguações, foi rapidamente transformada em narrativa pública de condenação antecipada.
Em São Vicente, o cenário é outro, e talvez por isso ainda mais inquietante. Após a tempestade Erin, a ilha foi alvo de uma mobilização solidária ampla, envolvendo apoios financeiros, donativos materiais, campanhas da diáspora e contributos institucionais. Solidariedade genuína, transversal, sem cálculo partidário. Mas passada a emergência, instalaram-se o silêncio e a dispersão.
O Governo declarou situação de calamidade pública em São Vicente após a passagem da tempestade Erin, uma declaração com duração inicial de seis meses, destinada a permitir a mobilização de recursos excepcionais e a resposta às necessidades urgentes de recuperação. A lei não proíbe, de forma automática, a realização de despesas públicas correntes durante esse período, incluindo eventos culturais ou festivos. No entanto, em contexto de calamidade, impõe-se um princípio elementar de responsabilidade pública, as prioridades de despesa devem ser claras, hierarquizadas e transparentes, e a afectação de recursos deve ser explicada aos cidadãos, sobretudo quando subsistem necessidades básicas por resolver.
E de repente, é anunciado 5 dias de festa na passagem do ano…
Afinal???
O estado de emergência e calamidade era real ou apenas circunstancial?
As prioridades mudaram?
Os esgotos a céu aberto já foram resolvidos?
Houve prestação de contas da ajuda recebida após a tempestade antes de se anunciar uma nova despesa pública em festividades?
Com base em que critérios se passa, num curto espaço de tempo, do apelo ao sacrifício para a abundância excessiva celebratória?
Quando a controvérsia envolve a Praia, tudo se transforma em investigação, buscas, paralisação de serviços e um rosário de interrogações judiciais. Quando envolve São Vicente, a narrativa oscila entre a “resiliência” e a “normalização”, sem um escrutínio público equivalente que explique onde e como foram aplicados os recursos, sejam eles municipais, governamentais ou provenientes da solidariedade nacional e da diáspora.
Quando a exigência é selectiva, a democracia adoece
Não há democracia saudável onde o escrutínio escolhe alvos conforme a geografia, a conveniência política ou o ruído mediático do momento. A exigência não pode ser sazonal, nem alternar conforme o calendário festivo, a pressão das redes sociais ou o cansaço da opinião pública. Ou é para todos, ou deixa de ser credível.
O problema não está na investigação em si, nem na cultura, nem nas festas populares. O problema está na ausência de um critério uniforme de responsabilidade pública. Está no facto de uma câmara ser colocada sob lupa permanente enquanto outra navega entre tragédias, promessas e anúncios festivos sem prestar contas de forma clara, acessível e continuada.
Quando a fiscalização se torna espectáculo num lado e silêncio no outro, o Estado perde autoridade moral.
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