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­O Peso da Régua
Colunista

­O Peso da Régua

O combate “radicalizado” e não-violento mobiliza afetos. O confronto a que assistimos no Peso da Régua foi disso exemplo: um palco rodeado de vales, separados por um espelho de água, preenchido por personagens horrivelmente belas e radicalizadas. Esse pequeno e simbólico grupo de cidadãos teve, tão-somente, a ousadia de mobilizar os afetos para radicalizar a democracia.

Às vezes até os velhos instrumentos falham

Para a psiquiatria evolutiva, as crises de ansiedade dos animais são provocadas por estímulos externos, esses episódios, interpretados como alertas, podem pôr em causa a sobrevivência do organismo.

Com as devidas distâncias evolutivas, tem sido muito frequente percecionarmos os efeitos dessas graves crises de ansiedade provocadas ora por natural senescência, ora por ameaças externas, oriundas de múltiplas interações sociais, no desempenho certos indivíduos/comentadores afetados (muitos deles do tempo das saudosas ondas hertzianas), que ocupam a cena mediática.

Notórios exemplos, desses abundantes surtos psíquicos, provocados por crises de ansiedade, foram dados a observar nas inúmeras intervenções de políticos, comentadores, influentes “opinadores” que, durante várias semanas, desfilaram nos meios de comunicação social, tecendo considerações a (des)propósito das comemorações do 10 de junho, em Peso da Régua.

A generalidade dos comentadores arregimentados, no decurso dessas intervenções mediáticas, apresentaram-se com uma linguagem corporal agitada e um arfar hiperventilado, enquanto proferiam uma série de impropérios desarticulados, destituídos de conexão com a realidade dos factos que tiveram lugar nesse histórico dia. As suas condutas afetadas denunciaram, entre muitas outras coisas, que estes guardiões se sentiram particularmente ameaçados pelos acontecimentos desse “fatídico” 10 de junho.

Mas, que ameaça terá sido essa que tanto atemorizou os pobres coitados, levando-os a desvincularem-se da realidade?

Para compreender o temor registado, será essencial aludir ao guião a que estão subordinados estes guardiões dos órgãos de comunicação social, para construírem as suas narrativas opinativas. Numa primeira fase, recebem as instruções dos assessores partidários, em seguida auscultam os parceiros de profissão mais próximos e concertam estratégias com os diretores de redação, por fim, replicam ad nauseum a opinião arregimentada, urdida no entretanto.

É-lhes mais fácil e útil criar uma cortina que separa a realidade da ficção, do que procurar as fontes e indagar acerca dos factos. Pois, dessa forma, ainda que agindo com uma confrangedora desonestidade intelectual, não correm o risco de perder a “credibilidade” analítica e as posições mediáticas que mantêm há anos.

Os inesperados eventos, que se registaram nas celebrações oficiais dia 10 de junho na Régua, surpreenderam até os guardiões mais veteranos. Num ápice, o famigerado guião estratégico de comunicação revelou-se desajustado, incapaz de dar resposta à vertigem dos acontecimentos, pelo que, entregues à sua (in)capacidade analítica, os opinadores viram a sua sobrevivência mediática ameaçada e, perante a ameaça… reagiram, recorrendo à ansiedade dramatizada!

A agitação social, que marcou o dia 10 de junho no Douro, não foi planeada, nem encabeçada por grupos institucionalizados, nem por aqueles que sustentam o sistema com as suas ações meticulosamente alinhadas. A agitação social, desse histórico dia, foi protagonizada por profissionais de educação, oriundos de diversos pontos do país que, espontaneamente, decidiram rumar ao Peso da Régua para na rua, sem violência, apresentarem ao país o seu profundo descontentamento com o deplorável estado da Educação em Portugal.

Esta manifestação emancipada, livre de chancelas e condicionalismos institucionais, provocou um sobressalto cívico generalizado, que apanhou de surpresa os guardiões do sistema. Em estado de alerta e com uma respiração ofegante, esses inopinados fazedores de opinião, reagiram em uníssono e clamaram a uma só voz - É preciso respeitar a democracia, proteger o bem-estar social… liberdade de expressão, sim! mas controlada, livre de populistas e isentas de grotescas figuras que não dignificam os “nossos” governantes eleitos.”

Curiosos consensos de circunstância, não há limites para o absurdo quando em causa está a salvação da moral e dos bons costumes que garante lugares de influência. Até as divergências ideológicas se convertem em aproximações estratégicas assim que surge a necessidade de aniquilar as altercações com potencial para abalar o sistema, que a todos alimenta. Talvez seja de utilidade pública dissecar o corpo dos bons costumes, para evitar que os insidiosos preceitos se convertam num código de conduta moral.

RESPEITINHO

Eis a célebre derivação de má memória, tão desgraçadamente portuguesa - o respeitinho! Sejamos justos, efetivamente não estaremos a falar do respeitinho que fazia despertar a sineta dos censores do antigo regime. Porém, o respeitinho, na sua formulação atual, reproduz certos vícios desse tempo recuado; o mesmo respeitinho da reverência e da sujeição às figuras notáveis e intocáveis; o indispensável respeitinho pelas comemorações oficiais do dia 10 de junho, ainda que a maioria dos portugueses ignore o que representa; o nostálgico respeitinho pelos doutos padroeiros da pós-verdade e da pós-democracia. Neologismos perigosos, recorrentemente utilizados pelos comentadores, quando pretendem descredibilizar adversários políticos, críticos e outros oponentes.

LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Nenhum comentador ousou pôr em causa a liberdade de expressão e manifestação dos professores. No entanto, os tiques de linguagem e as indisfarçáveis inflexões, acerca do exercício desses inalienáveis direitos, marcaram o discurso de quase todos.

As infundadas apreciações e os descabidos comentários de Pacheco Pereira (PP), quando se referiu aos cartazes que os manifestantes empunharam no referido evento na Régua, permitiram ilustrar a forma como estes avençados, protetores das democracias, concebem o direto à liberdade de expressão.

(…) “Cartazes com representações do Primeiro-ministro, António Costa, com nariz de porco e aquilo que são os seus traços reveladores de ascendência indiana acentuados. (…) Liberdade de expressão sim, mas sempre num exercício do necessário respeitinho, sem patetices!”

Quem assistiu às declarações de PP, conhecido professor, historiador e colecionador de despojos da memória coletiva, proferidas em direto, num programa de televisão de grande audiência, terá percecionado a ansiedade do comentador ao tentar justificar, de forma atabalhoada, a sua leitura dos eventos, baseada numa grave falha de “acuidade visual”:  

“(…) aquilo, num primeiro instante, pareciam balas. Balas a furar os olhos! Depois concluí serem lápis o que é a mesma coisa!” 

Felizmente, a sineta dos censores está arquivada na garagem da Ephemera.

Pelo que, a liberdade de expressão é também um direito de PP, ainda que os comentários que teceu, acerca da participação dos professores nas celebrações do Peso da Régua, tenham sido ofensivos, absurdos, patéticos, desproporcionados e lamentavelmente ridículos. 

Na história deste professor / historiador certamente inscrever-se-á este momento confrangedor, que podia ter sido evitado, caso PP tivesse arriscado sair da sua fortaleza opinativa, para recolher com objetividade e precisão factos do que efetivamente sucedeu nesse dia.

RADICALISMOS EXCESSIVOS

No pico da crise de ansiedade transmitida em direto PP, voltando à carga, em tom jocoso, disse:

“(…) aquilo é um grupo de professores radicalizados que devem achar imensa graça em andar com aquele cartaz do primeiro-ministro com nariz de porco.”

Lamentavelmente, foi com este teor e nestes termos que a generalidade dos comentadores veteranos classificou as ações e os intervenientes na manifestação do Peso da Régua. 

Outros comentadores, que adotaram uma conduta semelhante, procuraram isolar o acontecimento de rua, através de insinuações infundadas, classificando os intervenientes de “radicais, mal-educados e representativos de uma certa sarjeta moral que tem vingado na vida pública em Portugal.” Este comentário, proferido por Sérgio Sousa Pinto, demonstra a gravidade do miserável estado de ansiedade de que padecem estes comentadores arregimentados, condição que nem a psiquiatria evolutiva conseguirá explicar.

Lamentavelmente, o que estes supostos protetores dos direitos e liberdades evitaram referir, porque estão submetidos às agendas partidárias, foi que os processos de radicalização constituem legítimas formas não-violentas de combate político e de confronto democrático. Quem insinua que a radicalização é prejudicial à democracia, quem confunde propositadamente o significado de confronto com conflito, é intelectualmente desonesto. Que credibilidades têm estes protetores, quando defendem que as manifestações com este caráter desalinhado devem ser severamente controladas e decretados limites? 

De facto, o “radicalismo” do 10 de junho, demonstrou que o confronto não desafia nem põe em causa a democracia, bem pelo contrário, legitima-a, enriquece-a e coloca-a sob um participado escrutínio que se exerce na rua, através de um entusiasmado combate político entre o povo e os governantes. Este salutar antagonismo tem sido mobilizador, nos últimos meses milhares de profissionais da educação têm tomado a rua em diversas cidades do país. 

O combate “radicalizado” e não-violento mobiliza afetos. O confronto a que assistimos no Peso da Régua foi disso exemplo: um palco rodeado de vales, separados por um espelho de água, preenchido por personagens horrivelmente belas e radicalizadas. Esse pequeno e simbólico grupo de cidadãos teve, tão-somente, a ousadia de mobilizar os afetos para radicalizar a democracia.

Comentário especial merece a declaração que o Presidente da República elaborou sobre o (…) “grupo muito pequeno de professores radicais” que protagonizaram os eventos desse histórico dia.

Com os necessários ajustes semânticos e lexicais, devolvemos ao Presidente da República o que disse:

- Não se radicaliza quem quer, mas sim quem pode!

 Sabe bem de que fala Marcelo pois, num passado recente que a memória preserva, não pôde e quando quis, o partido que ajudou a fundar, não o terá deixado.

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