Efeito-Mindelo   
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 Efeito-Mindelo  

Num contexto cultural difícil, onde as instituições enfrentam graves dificuldades de afirmação, o CNAD pode ser a alternativa viável para dar eco a projetos mais ambiciosos, criando condições para a eclosão de novos territórios, novas conexões sociais e até novas formas de expressão artística. Deve o CNAD, assim como outras instituições similares, procurar estabelecer redes de conexão e partilha de sinergias. Pois, é de todo inconcebível que, ante o deficitário e carente panorama cultural cabo-verdiano, continuemos a assistir ao silêncio e à ausência de diálogo, entre os diversos centros e atores culturais, dentro e fora do país.

Nos últimos anos, a cidade de Mindelo tem assistido a um exponencial aumento de infraestruturas e equipamentos ligados ao setor económico do turismo e lazer. Novos hotéis, de grandes dimensões, elevam-se em locais de grande impacto urbano; novos festivais temáticos, de entretenimento e variedades, preenchem o calendário dos eventos anuais da cidade; fortes campanhas de propaganda e promoção turística, marcam presença em certames e feiras internacionais; resorts all include em expansão; remodelação do cais de ancoragem, para acolher grandes cruzeiros, são alguns dos inúmeros investimentos em marcha, mobilizados com o ambicioso objetivo de competir com outros destinos turísticos de prestígio internacional.

De facto, em Cabo Verde, nesta área de negócio, experiência é o que não falta aos investidores. Vejam-se os exemplos da cidade de Santa Maria, na ilha do Sal e de Sal Rei, na ilha da Boavista.

Terá, por fim, chegado o momento de concretizar o “sonho” da conversão da cidade de Mindelo em (mais um) paraíso turístico. Mas, para que as fantasias se possam efectivar, o senhor Primeiro Ministro Ulisses Correia (em declarações à imprensa), considera que a “cidade precisa de ser mais atrativa".

A criação de condições, para que a cidade seja mais sedutora, tem levado muitos gestores políticos e outros tantos investidores a recorrerem aos serviços dos obedientes artistas, alinhados com o sistema, com o objetivo de, juntos, produzirem eficazes narrativas de entretenimento, por forma a evitar que o turista-consumidor se aborreça durante a sua estadia na cidade.

Porém, este ardiloso processo de embelezamento das cidades, assente na requalificação económica e social do espaço urbano, por intermédio da arte e da cultura, não é inédito nem singular. É, tão só, uma réplica do modelo da cidade atrativa, genericamente denominada pelos especialistas de “Efeito-Bilbao”.

Explicando, resumidamente - a cidade de Bilbao, antes da conversão, era deprimida e suja, pós-industrial e em declínio, economicamente falida e a encolher demograficamente.

A construção do museu de arte contemporânea Guggenheim (iniciada em 1992), de autoria do arquiteto Frank Gehry, deu início ao processo de embelezamento, criando um efeito estrondoso na cidade de Bilbao, transformando e reanimando o tecido urbano. No entanto, se por um lado, com esse processo se reverteu a tendência de definhamento económico e social da cidade, por outro, a reconversão artística da cidade deu lugar à antítese, provocando graves assimetrias sociais, que ainda hoje estão por sanar.

O novo Centro Cultural de Artesanato, Arte e Design (CNAD), da autoria do gabinete de arquitetos Ramos Castellano, é um projeto de arquitetura fruto da consciência critica dos seus autores que, num olhar critico e apurado sobre a cidade, perceberam a necessidade de construir um centro cultural, capaz de acolher e dignificar as artes e os seus criadores.

Esta obra de arquitetura contemporânea, mais do que um mero exercício estético e funcional, é uma escultura viva e habitável, localizada bem no coração da cidade. É uma obra preeminente, é certo, mas não chega a ser sobranceira porque, com elegância, deixa “respirar” o espaço urbanizado em seu redor.

Quando este edifício, ainda em projecto, foi apresentado aos governantes de imediato terá sido aprovado. Pois, todos eles terão sentido que esta obra aumentaria a atração da cidade, pelo que, poderia ser o “gatilho” perfeito para alavancar Mindelo. Uma espécie de casamento perfeito entre o setor do turismo e a famigerada industria cultural, uma convergência entre os investidores e as aclamadas políticas culturais.

Hoje, com a necessária distância temporal, percebemos que esse matrimónio nasceu manco. Os conjugues, desde os primeiros instantes, foram revelando sinais de que não viam o projeto de arquitetura do CNAD com os mesmos olhos. De um lado, a visão fundacional dos arquitectos sobre o que deve ser um centro cultural, digno de representar a cultura cabo- verdiana, um espaço independente e livre, criado por todos e para todos, sem muros ou empenas, nem lugares proibidos ou enquistados. Os arquitetos Eloísa Ramos e Moreno Castellano conceberam uma obra “provocadora”, que se apropria dos objectos e resignifica o seu simbolismo. É disso exemplo o recurso às tampas dos bidões metálicos, com as quais criaram a fachada do edifício. Tampas essas, marca indelével da realidade das periferias e da vida trans-quotidiana das ilhas. Do outro lado, a visão mercantilista das famigeradas indústrias criativas, que concebem a arte e o artesanato como ativos lucrativos e transacionáveis; a cultura, nessa concepção, funciona como semente fértil e negociável, capaz de, direta ou indiretamente, alimentar a voracidade dos investidores, na procura de investimentos com o rápido e elevado retorno.

Divergências à parte, o edifício do CNAD é, felizmente, uma realidade e, consequentemente, todos são chamados a contribuir para o futuro da instituição, decidindo quando e como habitar este novo espaço cultural da cidade. Nesse sentido, eis algumas proposições que devem ser acauteladas na gestão deste espaço cultural, para evitar que se converta num mero ativo transacionável:

O renovado CNAD é inequivocamente, um espaço único e inovador no contexto internacional.

Todos artistas, artesãos e designers, que representem a genuína cultura cabo-verdiana, devem ter no coração do CNAD o seu espaço privilegiado de diálogo.

O CNAD é uma casa de cultura que se projeta para o futuro através de novas possibilidades criativas, afirmando, sempre que possível, a sua ousadia fundadora e herança identitária.

Num pais multicultural, o CNAD deve assumir-se com uma genuína casa de encontro entre diferentes culturas, sem preconceitos nem objeções políticas e (ou) sociais.

Num contexto cultural difícil, onde as instituições enfrentam graves dificuldades de afirmação, o CNAD pode ser a alternativa viável para dar eco a projetos mais ambiciosos, criando condições para a eclosão de novos territórios, novas conexões sociais e até novas formas de expressão artística.

Deve o CNAD, assim como outras instituições similares, procurar estabelecer redes de conexão e partilha de sinergias. Pois, é de todo inconcebível que, ante o deficitário e carente panorama cultural cabo-verdiano, continuemos a assistir ao silêncio e à ausência de diálogo, entre os diversos centros e atores culturais, dentro e fora do país.

Se, num futuro próximo, as práticas institucionais se aproximarem da validação destas proposições e orientações, poderemos afirmar que o CNAD terá reunido condições para se afirmar como um espaço de autonomia e liberdade criativa. Livre das pressões dos mercados e avesso às pressões dos poderes ocultos que, eventualmente, possam depreciar, controlar, vedar a vontade e a criatividade dos artistas, artesãos e designers.

Caso esse princípios sejam assegurados, o novo edifício do CNAD poderá contribuir de forma relevante para o crescimento sustentável da cidade. Recriando e redefinindo um novo território cultural, em constante diálogo entre a morada e as periferias. Poderá, assim, ter início um novo efeito, desta vez Mindelo.

 

Pedro Brito, outubro de 2022

 

 

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