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Caso Amadeu Oliveira. José António dos Reis destrói “olimpicamente” Acórdão do Tribunal da Relação e coloca pressão sobre o STJ
Sociedade

Caso Amadeu Oliveira. José António dos Reis destrói “olimpicamente” Acórdão do Tribunal da Relação e coloca pressão sobre o STJ

Artigo crítico e apurado do antigo governante e analista político, publicado no Expresso das Ilhas de 29 de Dezembro, vai obrigar o Supremo Tribunal de Justiça a reflectir duas vezes antes de decidir sobre o recurso da defesa de Amadeu Oliveira ao acórdão do Tribunal da Relação de Barlavento que condenou o mediático advogado a sete anos de prisão por, alegadamente, cometer crime de atentado contra o Estado de Direito e na qualidade de deputado da Nação (crime de responsabilidade), tese que José António dos Reis rebate e esmaga com categoria e ciência no seu texto.

A poucos dias de o STJ decidir sobre o recurso interposto pela defesa de Amadeu Oliveira ao acórdão do Tribunal da Relação de Barlavento que condenou o advogado santantonense a sete anos de prisão por atentado contra o Estado de Direito, chega um bem sustentado  e “olímpico” artigo do ex-governante e analista político José António dos Reis a tornar rasa toda a argumentação dessa instância judicial para condenar Oliveira.

O texto, intitulado A Supremacia da Constituição e Ética da e na Justiça avalia todos os pontos do Acórdão do TRB para concluir, após exausta apuração, que “não existe base legal para imputação ao arguido do crime de responsabilidade”. José António dos Reis teve o cuidado de esmiuçar cada alínea do referido acórdão e confrontá-la, ponto a ponto, com a Constituição da República e posições doutrinárias ensinadas por académicos de reputação internacional.

O articulista abre a sua explanação apontando para a ética na decisão judicial. “A decisão judicial deve buscar a justiça. Contudo, como a noção de justo é relativa, o magistrado deve, sobretudo, adotar uma postura ética na elaboração das decisões judiciais. A ética tem o condão de penetrar na seara mais íntima do indivíduo e concitá-lo a agir correto de acordo com a consciência jurídica geral, e não a partir de suas convicções íntimas e pré-compreensões, como aventa a hermenêutica filosófica. A ética faz do magistrado um legítimo juiz, na mais lídima acepção jurídica do vocábulo”, escreve Reis, citando o professor José Ricardo Alvarez Vianna.

Ética

“E por que comecei esta reflexão assim, trazendo a ética à colação? O meu questionamento decorre de inquietações, para não dizer preocupações, ao ler o acórdão do Tribunal da Relação de Barlavento que condena o Amadeu de Oliveira a pena de 7 anos de prisão. Confesso que tinha uma grande expectativa em conhecer o conteúdo desse acórdão, conhecer a sua fundamentação teórica e doutrinária e, sobretudo, verificar a sua submissão aos ditames das normas e orientações constitucionais. Sabia que não era fácil, face às acusações de que vinha acusado o Amadeu Oliveira, o Tribunal encontrar elementos objectivos para, à luz da Constituição e da doutrina, o condenar de crime de responsabilidade”, escreve JAR.

No seu entender, “o tribunal para condenar como condenou o deputado Amadeu de Oliveira de crime de responsabilidade teria de decidir, de forma clara e com uma fundamentação coerente e convincente, sobre as seguintes questões essenciais: 1) Se se trata crime de responsabilidade, e qual ou quais foram os atos ou omissões cometidos pelo arguido; 2) Se o crime foi cometido no exercício de funções ou por causa delas, e quais os nexos de causalidade objetivamente identificados; 3) Ou, ainda, se foi respeitado o procedimento legal para detenção do deputado fora de flagrante delito de acordo com o estipulado na Constituição de Cabo Verde”.

Para Reis, a tese do Tribunal da Relação de Barlavento (crime cometido em exercício de funções de deputado) não deixa de ser curiosa, “por entrar em confronto flagrante com disposto no artigo 169º da CRCV que diz expressamente que os deveres dos deputados são os definidos na própria Constituição, no Estatuto dos Deputados e no Regimento da Assembleia Nacional”.

O que diz o Estatuto do deputado

“O Tribunal da Relação ao socorrer-se do nº 1 do artigo 124º da CRCV, no qual enuncia que os titulares de cargos políticos estão sujeitos aos deveres estabelecidos na Constituição e na lei, visando refutar a posição da defesa, esqueceu-se que o enunciado do artigo 124º é concretizado pelo artigo 169º da CRCV em sede constitucional do Estatuto de Deputados em que definiu expressamente quais são os deveres dos deputados e as leis onde devem constar os demais deveres. Para os deputados, enquanto titulares de cargo político, não existem outros deveres para além daqueles definidos na Constituição, no Estatuto de Deputados e no Regimento da Assembleia Nacional conforme estatui o artigo 169º. Para além disso, o Tribunal não conseguiu fazer a necessária diferenciação entre estar investido do mandato parlamentar e do estar em exercício de funções. Quando não, em certos momentos, os confundiu, tratando as duas figuras, como se fossem a mesma coisa”.

Acrescenta o analista que a tese do Tribunal de que o arguido estava “em pleno exercício das suas funções, pois que não tinha o seu mandato suspenso” inquieta e amedronta. “Como não deixa de ser preocupante a ideia veiculada pelo tribunal de que ‘O arguido agiu, igualmente, no exercício das suas funções de Deputado e por causa delas, pois os atos praticados foram também no âmbito dessa sua esfera de atuação’”.

“Argumentos e fundamentação onde se confunde deliberadamente(?) exercício de funções com o mandato, sabendo o tribunal como todos sabem que um deputado pode deter o mandato e não estar a exercer as funções, e o exemplo mais comezinho que se pode utilizar no caso presente foi o facto do deputado Amadeu Oliveira ter estado preso por vários meses, sem que o seu mandato tivesse sido suspenso, e, por força dessa situação, esteve sem poder exercer as funções de deputado, caso ímpar que o parlamento certamente, tirados os devidos ensinamentos, não deixará de analisar e tratar para acautelar situações semelhantes no futuro”, observa citando mais à frente o constitucionalista e professor Jorge Miranda, ao definir que “o exercício de funções deve ser entendido como ‘a prática de quaisquer actos tanto no local onde funciona a Assembleia - seja no plenário, seja nas comissões - como no seu exterior, em comissões de inquérito, em deputações ou missões ao serviço da Assembleia, junto de serviços da Administração pública ou em contacto com os cidadãos eleitores”, diferenciando, claro está, os crimes cometidos fora do exercício das funções, por titulares de cargos políticos, porque continuam a ser cidadãos como quaisquer outros, dos crimes praticados no exercício de funções. 

Prisão ilegal

Parece claro e evidente que para haver crime de responsabilidade de um titular de cargo político, decorrente do exercício das funções, terá de haver um nexo direto e evidente de causalidade entre as funções e os poderes estabelecidos expressamente pela Constituição ao cargo e ao acto ou omissão praticado”, insiste JAR, procurando em Maurício Zanotelli mais suporte doutoral e argumentativo: “Para melhor elucidar se o Deputado está cumprindo com a função institucional de parlamentar, tem-se que traçar uma relação do acto praticado com as funções de parlamentar expressamente elencadas pela Constituição da República”.

“É preciso estabelecer uma relação linear, lógica e coerente entre o ato ou omissão praticado, exercício de funções e o crime atribuído, requisitos esses que o Tribunal da Relação não conseguiu preencher, não fazendo a necessária e imprescindível demonstração. Aliás, é o próprio Tribunal que admite, contraditoriamente, em vários momentos que o acto, eventualmente, incriminatório atribuído ao Deputado Amadeu Oliveira não tem nada a ver com o exercício de funções parlamentares quando na página 106 do acórdão se diz expressamente que ‘Embora o arguido não tenha praticado nenhum ato formalmente típico das suas funções parlamentares, os elementos, dos autos, não tinham o condão de afastar a determinação que ele agiu e praticou ações enquanto estava no exercício das suas funções e vinculado ao estatuto de deputado’… para mais adiante se acrescentar que ‘Mesmo não tratando dum ato típico do exercício do mandato de Deputado, que se traduza na prática de poderes formais, trata-se, neste caso, dum exercício mais amplo do mandato, que inclui relação do membro da Assembleia Nacional com os eleitores e também com as demais instituições da República’.

Conclui Reis: “Ora, estas passagens do acórdão se afiguram, em condições normais, como a afirmação pelo Tribunal de uma absolvição do Deputado Amadeu de Oliveira do crime de responsabilidade. Afinal, o tribunal “reconheceu” que o acto praticado pelo deputado não tem relação com o exercício do mandato, relação essa que, no entanto, para incriminar um titular de cargo político, imperativamente terá de existir, por força do disposto na constituição (nº 1 do art. 123º). Assim, não poderia concluir diversamente o Tribunal quanto à inexistência do crime de responsabilidade quando é o próprio que afirma que o Deputado não praticou actos típicos das funções parlamentares que, seguindo a lógica racional, haveria apenas uma conclusão a chegar: não existe base legal para imputação ao arguido do crime de responsabilidade. Aceitar, com toda a humildade, que não cometeu crime de responsabilidade não significa afirmar que Amadeu Oliveira não cometeu crime. Simplesmente o que se quer demonstrar é que aqueles crimes que lhe são imputados, muito embora ele fosse deputado, não tem literalmente nada a ver com funções de deputado, isto bem na linha do que ensina o Prof. Jorge Miranda de que “o exercício de funções se prende com atos praticados que tenham relação com poderes funcionais”, e não com outra coisa qualquer”.

Contradições do Tribunal da Relação

“Suportado pela doutrina e pelas próprias conclusões do tribunal, se pode afirmar de forma enfática que o Deputado Amadeu de Oliveira não cometeu crime de responsabilidade, tal como definido no artigo 123º da CRCV”, afirma, com ciência, José António dos Reis, lembrando que o próprio Acórdão do TRB evidencia explicitamente em diversos pontos que Amadeu Oliveira agiu, antes e depois de ser eleito deputado, como defensor oficioso de um arguido.

“Esses elementos, embora constantes do processo, não foram valorados pelo tribunal que os ‘ignorou olimpicamente’, porque se quis de qualquer jeito imputar ao arguido o crime de responsabilidade, ainda que o ato praticado por ele, que o próprio tribunal admite e reconhece, não tenha nada a ver com o exercício de funções. O tribunal ao admitir que Amadeu de Oliveira não praticou “nenhum ato formalmente típico das suas funções parlamentares”,que é condição para haver crime de responsabilidade, foi, no entanto, deitar mão às disposições legais, algumas anteriores à constituição de 1992, para fundamentar e justificar o cometimento de crime de responsabilidade. Pois, a invocação pelo Tribunal da Lei n.º 85/III/90 que aprovou Estatuto dos Titulares de Cargos Políticos,mais concretamente o artigo 12º, que trata dos deveres desses agentes, para, à partir dessa norma, condenar o Amadeu de Oliveira, é sintomático. O tribunal não deu ao trabalho de analisar se essa norma da primeira república estava em vigor e se teria ou não sido derrogada pelo artigo 169º da CRCV de 1992 que além de tipificar os deveres de deputados, se refere expressamente aos demais deveres “constantes do Regimento da Assembleia Nacional e do Estatuto dos Deputados”. 

“Disso resulta uma conclusão lógica e intransponível: Não existem outros deveres de deputados senão aqueles estabelecidos na CRCV, no Estatuto dos Deputados e no Regimento”, continua o analista político, para quem “o Tribunal da Relação de Barlavento tinha um propósito inabalável: condenar de crime de responsabilidade o Amadeu Oliveira custe o que custasse. Pois assim se percebe a tese exposta no acórdão, misturado com citações doutrinárias que não têm nada a ver com a nossa realidade, segundo a qual os crimes comuns praticados pelos titulares de cargos políticos podem ser transformados em crimes de responsabilidade”.

E Reis cita a passagem do acórdão a esse respeito: “certos crimes comuns, quando cometidos por titulares de cargos políticos, com flagrante desvio ou abuso de função ou com grave violação dos deveres inerentes, convertem-se em crimes de responsabilidades”.  

Isso configura uma confissão pública do Tribunal de que não encontrou crimes de responsabilidade para imputar ao arguido, e portanto a solução é procurar um crime comum e o transformar em crime especial ou de responsabilidade. Ou seja: de um crime de auxílio a evasão converte-se em crime de responsabilidade só porque quem o cometeu é titular de cargo político”.

Seguindo essa lógica do Tribunal da Relação de Barlavento, os titulares de cargos políticos que tiverem conflito familiar e cometerem crime VBG, este crime, por ter sido praticado por um titular de cargo político, pode converter-se doravante em crime de responsabilidade. E é isso mesmo que é o entendimento dum órgão que tem a responsabilidade de realizar a justiça? E onde fica o postulado constitucional expresso no artigo 123º?”, interroga JAR, antes de observar que se está “perante um Tribunal que parece não ser amiga da CRCV e que ignora deliberadamente(?) a supremacia da constituição. É preciso que se entenda inequivocamente que nem a Lei n.º 85/III/90 e nem a Lei 85/VI/2005 podem impor outros deveres aos deputados que não os definidos na CRCV”.

“Reza o acórdão do Tribunal da Relação de Barlavento que ‘Ora, atento ao conteúdo do disposto nos nº 1 e alínea a) do nº 5 do artigo 148º da CR, resulta que a Comissão Permanente também tem competência para autorizar a detenção de um Deputado – aliás, as demais competências confiadas a esse órgão nos parecem ser de grandeza tal (dada a importância e grau elevado de responsabilidade das mesmas) que não espanta o poder que lhe é confiado para autorizar a detenção de um Deputado, no âmbito das referidas disposições legais’. Porém, as considerações do tribunal não ficam apenas pela relevância dada às competências da Comissão Permanente. No acórdão proferido vai-se mais longe quando se diz que ‘a tese do arguido, veiculada no decorrer da audiência de discussão e julgamento, segundo a qual não competiria à Comissão Permanente da Assembleia Nacional deliberar no sentido de autorizar a sua detenção, não tem base legal, pois que a Constituição da República confere a esse órgão tal poder”. 

Analisando este ponto, JAR mostra que a CRCV, no nº 1 do artigo 148º, consagra que “a Comissão Permanente funciona durante o período em que se encontrar dissolvida a Assembleia Nacional, nos intervalos das sessões legislativas e nos demais casos e termos previstos na Constituição”.

“A CRCV tipificou claramente as situações em que a Comissão Permanente pode substituir a Assembleia Nacional, desempenhando as competências próprias que a constituição e a lei lhe conferiu. Para além do estabelecido no artigo 148º, a CRCV prevê no nº 2 do artigo 273º uma outra situação em que a Comissão Permanente pode substituir a Assembleia Nacional como é no caso “de ter terminado a legislatura na data da declaração de estado de sítio ou de emergência, as suas competências serão assumidas pela Comissão Permanente”.

Falha da Comissão Permanente

Importa clarificar os conceitos parlamentares seguintes: sessões legislativas; sessões plenárias. “A sessão legislativa em Cabo Verde tem a duração de um ano, e o período de funcionamento efetivo da Assembleia Nacional decorre de 1 de outubro a 31 de julho, como resulta do estatuído nos nºs 1 e 2 do artigo 93º do Regimento da Assembleia Nacional, sendo que de 1 de agosto a 30 de setembro acontecem as férias parlamentares; Já as sessões plenárias realizam-se, entre nós, na segunda e quarta semanas de cada mês, de acordo com o nº 2 do artigo 98º do Regimento da Assembleia Nacional”.

“Parece claro que parte do nº 1 do artigo 43º do Regimento da Assembleia Nacional que fala da Comissão Permanente funcionar nos intervalos de sessões plenárias da Assembleia Nacional parece manifestamente inconstitucional por violar o disposto no nº 1 do artigo 148º da CRCV”, explica JAR. 

“Ora, partindo do que a CRCV estabelece, não cabia à Comissão Permanente, no dia 12 de julho de 2021, por não estar investida de legitimidade e nem de amparo legal para o fazer, autorizar a detenção fora de flagrante delito do deputado Amadeu de Oliveira, isto, tendo em devida conta o disposto no nº 1 do artigo 148º da CRCV. Trata-se de uma violação flagrante e grave da CRCV que se não for devidamente equacionada, nos termos que a constituição determina, poderá constituir-se, aqui sim, num verdadeiro ATENTADO CONTRA O ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO”.

“A resolução nº 3/X/2021, aprovada a 12 de julho, invoca o nº 1 do artigo 12º do Estatuto dos Deputados para autorizar a detenção do deputado Amadeu de Oliveira. No entanto, se a expressão “quando esta (Assembleia Nacional) não estiver em funcionamento efetivo” for entendida como intervalo das sessões plenárias, essa parte do nº 1 do artigo 12º briga com o disposto no nº 1 do artigo 148º da CRCV, logo não estando conforme à constituição, de acordo com a doutrina da supremacia da constituição, deve prevalecer a norma inscrita na CRCV”.

“Para além da determinação constitucional que define períodos específicos para que a Comissão Permanente possa funcionar em substituição da Assembleia Nacional, neste caso preciso do Deputado Amadeu Oliveira, a Comissão Permanente não respeitou o disposto na alínea c) do artigo 135º do Regimento da Assembleia Nacional que estabelece que as “deliberações sobre matérias respeitantes ao mandato e à imunidade do Deputado” estão sujeitas ao escrutínio secreto. Convém, no entanto, sublinhar que quando se fala em escrutínio secreto significa que cada deputado terá de colocar um boletim de voto numa urna, não havendo lugar, nessa situação, para votos por delegação”, entende Reis, adicionando que “no caso vertente, a Comissão Permanente aprovou a resolução 3/X/2021 sem nenhuma fundamentação, ficando o parlamento sem nenhum meio de verificação à posteriori”.

O artigo de José António dos Reis, na íntegra: https://expressodasilhas.cv/opiniao/2022/12/29/a-supremacia-da-constituicao-e-a-etica-da-e-na-justica/83676

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