Esta crónica é um tributo, não à glória vazia, mas à resistência silenciosa. A luta de Shabaka é a de todos aqueles que se recusam a aceitar o status quo, que mantêm viva a esperança de uma África melhor, mesmo quando o mundo parece ter desistido dessa ideia. Ele é, talvez, o último grande cabralista. E, enquanto houver homens como ele, a chama da revolução cabralista jamais se apagará. Contudo, que fique claro, eu não sou cabralista, mas respeitador de Cabral e admirador de Lumumba Hamilcar Shabaka.
Importa clarificar, desde o início, que esta crónica não versa sobre Amílcar Cabral, mas sobre um cabralista — uma figura cujas ações e ideais transcendem a mera menção ao nome de Cabral, por mais recorrente que este seja nos discursos, nas praças e nos altares da memória coletiva. Cabral, esse vulto que se elevou a ideia, a emblema imortal da luta africana, não se encontra mais na unidade que outrora encarnou. Ele é, sem dúvida, uma figura de reverência global, mas a sua presença física, a sua potencialidade enquanto símbolo unificador, foi diluída por aqueles que reclamaram o seu legado, monopolizando-o como propriedade de um só partido. E, assim, o Cabral político, o Cabral partidário, persiste apenas como uma pálida reminiscência, curvado sob o peso das ideologias que não souberam continuar a sua obra.
E, no entanto, há aqueles que, apesar da erosão dos tempos, se mantêm firmes nos princípios cabralistas — que defendem a justiça, a unidade e a autodeterminação com a mesma tenacidade de outrora. É neste contexto que surge Lumumba Hamilcar Shabaka, talvez o último grande cabralista do continente africano. Ele não é apenas um seguidor, mas um herdeiro espiritual, um portador dos valores que Cabral preconizou e que, hoje, parecem desvanecer-se nas brumas do oportunismo político.
Como bem afirmou o poeta, “o lobo do cabo-verdiano é manso e mora num lugar calmo da consciência”. E, recentemente, o meu vizinho, com a perspicácia que só a vida concede, comentou que o grande mal desta terra é termos um só herói declarado, um herói cuja memória só é celebrada se as autoridades políticas o permitirem. Mesmo nesses momentos, a celebração assemelha-se mais a um ritual formal, onde os adeptos do partido se reúnem, enquanto o resto do povo observa de longe, alienado da efusão patriótica.
O que acontece a uma nação que só celebra o óbvio? Que ignora as camadas mais profundas da sua história e se satisfaz com a superfície dos acontecimentos? Desde a independência, fomos ensinados a não questionar, a não despertar do sono profundo que impede a verdadeira justiça de se instaurar. Como dizia o próprio Cabral, “tornar-se-á impossível para o colonialismo, em qualquer parte do mundo, sobreviver diante da luta armada consciente e organizada dos povos”. Mas, questiono-me, sobrevivemos realmente ao colonialismo, ou apenas trocamos uma elite por outra, que agora perpetua as mesmas injustiças sob novas bandeiras?
Lumumba Hamilcar Shabaka nasceu em Santiago, com raízes profundamente fincadas no solo árido e indomável desta terra. Reivindica com orgulho a sua identidade santiaguense e badiu. Embora o português continue a ser uma língua em aprendizagem, o crioulo é o seu elo com a terra, a voz ancestral que repercute desde Arribada, a sua aldeia progenitora, associada a uma vivência juvenil na cidade da Praia, onde a luta pela sobrevivência era extremamente difícil para as famílias numa época marcada pela emergência política para a conquista da soberania do país e da dignidade nacional.
Como muitos outros antes dele, partiu jovem para a América, onde as vicissitudes da vida o moldaram. Foi em meio às lutas e aos desafios da comunidade negra que encontrou na educação o caminho para Amílcar Cabral. Foi nos livros, nos textos revolucionários e nas teorias libertárias, que compreendeu a necessidade de unidade entre os povos africanos e a transformação radical das suas realidades. Formou-se, licenciou-se e obteve um mestrado, com uma bolsa que o levou de volta ao continente africano, onde pesquisou sobre a escravatura em Cabo Verde para o seu doutoramento. Além disso, a sua tese de mestrado, um estudo minucioso sobre Pedro Pires, ex-presidente da República, foi recentemente entregue ao Arquivo Histórico de Cabo Verde, como uma contribuição inestimável para a memória nacional.
Há quase dez anos, Shabaka deixou os Estados Unidos sem olhar para trás, decidido a contribuir para o seu país. Chegou com um doutoramento em História Africana e uma vasta experiência académica, mas a nação que encontrou estava muito distante das suas expectativas idealistas. O meio académico cabo-verdiano, enredado em vícios de poder e influências políticas, revelou-se árido e hostil para quem trazia uma visão transformadora. Como dizia Cabral, “a libertação nacional é o resultado da ação consciente de uma classe oprimida, contra a classe opressora”. Shabaka, tal como muitos outros, percebeu que a opressão agora tomava formas mais subtis, mas igualmente devastadoras.
Ainda assim, ele não desistiu. Engajou-se em grupos de jovens, percorreu bairros periféricos, teve um papel preponderante na criação de algumas organizações, levando consigo a visão de uma África unida e restaurada, tendo sido um dos pioneiros na defesa de uma Renascença Africana. A sua missão era despertar nas mentes jovens a consciência crítica, incutir-lhes o desejo de mudança. E, apesar de todos os obstáculos, sentiu que cumpria o seu papel.
Ao longo da sua trajetória, Shabaka também lecionou numa universidade do continente africano, onde o seu conhecimento foi valorizado e onde pôde destacar-se como académico que sempre desejou ser. No entanto, a chegada da pandemia interrompeu os seus planos. De regresso a Cabo Verde em 2020, encontrou-se desempregado, como tantos outros filhos da terra. Contudo, persistiu nas suas pesquisas sobre a escravatura em Cabo Verde, dedicando-se a escrever um livro que acredita será uma contribuição significativa para a história do arquipélago.
Lumumba Hamilcar Shabaka é, sem dúvida, um homem à frente do seu tempo, ou talvez fora dele. Ele é um cabralista num mundo onde o cabralismo foi relegado a uma lembrança vaga, ou a um slogan vazio. Ele é um homem que vive na prática os princípios que Cabral pregou: a luta pela dignidade do ser africano, a necessidade de uma consciência política e o compromisso inabalável com a verdade e a justiça.
Outros, como ele, enfrentaram trajetórias semelhantes: Patrice Lumumba, o líder congolês que, tal como Cabral, foi vítima do imperialismo e da traição dos seus próprios compatriotas; Thomas Sankara, o visionário burquinabé que ousou desafiar a ordem mundial em nome da verdadeira independência africana, silenciado por aqueles que se beneficiavam da subserviência. E agora, Lumumba Hamilcar Shabaka, um homem que talvez nunca receba os louros ou as estátuas que celebram outros heróis, mas cuja luta diária transmite o espírito dos grandes líderes que vieram antes dele.
Esta crónica é um tributo, não à glória vazia, mas à resistência silenciosa. A luta de Shabaka é a de todos aqueles que se recusam a aceitar o status quo, que mantêm viva a esperança de uma África melhor, mesmo quando o mundo parece ter desistido dessa ideia. Ele é, talvez, o último grande cabralista. E, enquanto houver homens como ele, a chama da revolução cabralista jamais se apagará. Contudo, que fique claro, eu não sou cabralista, mas respeitador de Cabral e admirador de Lumumba Hamilcar Shabaka.
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