Vou correr um risco, pois sei que este assunto, para ser popular, deve ser abordado sempre num certo sentido ou com luvas de seda ou ainda – o que é pior – com a velha técnica de uma no cravo outra na ferradura. Creio, no entanto, que vale sempre a pena quando procuramos diferentes perspetivas de análise de assuntos que desencadeiam quase sempre fortes emoções, não raras vezes até condicionados por convicções políticas ou filosóficas, ou até por alinhamentos com certas categorias de teses histórico-culturais. O risco é ainda maior porque não é propriamente da ortodoxia da profissão de diplomata abalançar-se em matérias de certas índoles, especialmente quando geradoras de intensas polémicas na sociedade.
Minimizando desde logo o risco, digo com convicção despida de quaisquer calculismos, que existe um espaço inequívoco de melhoria significativa de atendimento e desembaraços consulares nos processos de pedidos de visto para Portugal em Cabo Verde.
É, creio, reconhecida a falta de capacidade de resposta em tempo útil aos pedidos. Mais do que a recusa do visto, o que causa mais desconforto e tensão é o tempo excessivo de espera para o atendimento e, em segunda linha, de espera da resposta que resulta do exame do pedido. A situação de espera angustiada dos estudantes por um visto durante meses é um problema sério, mas que seguramente tem também preocupado as autoridades portuguesas, com várias propostas de solução, mas que até à data não têm sido muito eficazes, podendo ter, contudo, no quadro das soluções careadas pelo Acordo de Mobilidade, resposta mais consistente a curto prazo. Também se admite que é possível e muito desejável até a melhoria do ambiente do atendimento, um maior cuidado e acrescida sensibilidade na forma de atendimento, ao mesmo tempo que se aumenta a capacidade de triagem dos processos pendentes. A organização de meios para atender e responder em tempo útil é fundamental, pois só a boa vontade não é suficiente.
Estou em crer - é minha convicção – que existe um empenho e comprometimento sérios por parte dos agentes com autoridade nesses processos de vistos, mas que o contexto no qual prestam tal serviço não permite uma resposta alinhada com as necessidades dos cabo-verdianos nessa matéria.
Obviamente que não falo de situações em concreto que à luz das maiores exigências alguém distanciado do processo sempre diria com relativa facilidade que o visto deveria ser concedido sem se pestanejar. Já aconteceu com muitos (e comigo também) fazer esse juízo e até ficar revoltado com a recusa, mesmo não conhecendo em detalhe o processo e a argumentação aduzida.
O certo, porém, é que não existe nenhum país no mundo que concede a cidadãos cabo-verdianos metade das facilidades em matéria de mobilidade concedidas por Portugal (aqui corro um sério risco). De 2016 a esta parte, no meio de tantas dificuldades, foram atribuídos mais de 10.000 (dez mil) vistos de estudos. Com muitos atrasos? Sim! Num espaço de poucos meses (Agosto a Outubro e às vezes um pouco mais tarde) são requeridos mais de 3.500 vistos anuais para estudantes. E simultaneamente são concedidos anualmente cerca de 250 vistos para doentes evacuados e seus acompanhantes (estão cerca de 1.300 permanentemente em PT) e milhares de vistos para estadias de curta duração no quando da EU.
Um simples exame do que era em 2016 mostra claramente que no quadro da CPLP não tem sido apenas conversa para boi dormir. Em 2016 foram concedidos 708 vistos para estudantes, em 2018 foram 1521, em 2019 foram 2266 e em 2020 foram cerca de 3.000 estudantes. Um aumento superior a 400% em 4 anos! Hoje, diferentemente do que acontecia em 2016, o estudante não precisa de fazer prova de capacidade de auto-sustento em Portugal; hoje o filho de um residente cabo-verdiano que nasce em Portugal tem em regra nacionalidade portuguesa, sem necessidade de qualquer tipo de procedimento especial; hoje, por lei, as expulsões, mesmo em caso de cometimento de crimes, estão muito restringidas.
Neste preciso momento temos efetivamente a frequentar estabelecimentos de ensino superior 5.024 estudantes cabo-verdianos, com 841 em Cursos de Mestrado e 64 em Doutoramentos! Obviamente que isso não representa só vantagens para Cabo Verde, mas também para Portugal, de forma inequívoca.
Informações credíveis dizem que em Cabo Verde foram emitidos em 2019 (período relevante porque antes de pandemia) 18.750 vistos Schengen no Centro Comum de Vistos, gerido por Portugal! Pelo número anual de vistos europeus emitidos se pode concluir que é enorme a procura em CV. Ainda assim está demonstrada a falta de capacidade instalada nos postos consulares para responder à procura, que é consideravelmente maior. Este fluxo enorme e intenso diz-nos também que a esmagadora maioria regressa a CV, de contrário o país estaria quase deserto. Trata-se, pois, essencialmente de vistos de turismo. E é bom para as transportadoras, bom para as empresas portuguesas, bom para Cabo Verde e muito bom para a economia portuguesa. Sejam estadias de curta duração ou para residência. Os números não mentem e as contas da segurança social portuguesa mostram as enormes vantagens que os imigrantes representam para a saúde financeira do sistema.
Tem que se reconhecer que Portugal tem melhorado de forma significativa a sua legislação interna para facilitar a entrada e permanência de estrangeiros no seu território. Mas também para facilitar a residência e a aquisição da nacionalidade. É verdade que nem sempre a alteração legislativa é acompanhada imediatamente de condições materiais e humanas que permitem a sua aplicação integral!
Mas nenhum país da Europa concede na sua legislação interna maiores facilidades! E não existe nenhum país no mundo que consinta em maiores facilidades de entrada e estadia legais no seu território, seja ele europeu, americano ou africano. Existem muito provavelmente mais de 260.000 cabo-verdianos em Portugal, mas só cerca de 37.000 possuem apenas a nacionalidade portuguesa. Em 2018, 127.950 estrangeiros adquiriram a nacionalidade portuguesa. Em 2019 foram 121.087. E nesse ano de 2019 adquiram a nacionalidade portuguesa 4.380 cabo-verdianos. Entre 2015 e 2019 adquiriram a nacionalidade portuguesa 533.595 estrangeiros. Em primeiro lugar estão os brasileiros e em segundo lugar os cabo-verdianos, tanto na residência como na aquisição da nacionalidade portuguesa.
Hoje a residência ilegal de cabo-verdianos é escassa, pois que a legislação portuguesa é a mais liberal da Europa em matéria de imigração. Realço, mais uma vez, que a fragilidade muitas vezes se encontra na falta de condições materiais e técnicas para se aplicar imediata e inteiramente a lei, mas também é certo que é muito grande a procura e a resposta administrativa não se mostrou com elasticidade suficiente.
Esta facilidade só se justifica pelos laços históricos entre os dois países. São esses laços também que permitem que um cabo-verdiano possa entrar em Angola, São Tomé e Príncipe, Moçambique, Guiné-Bissau e Timor-Leste sem visto prévio.
E isto é ... CPLP. Não é bluff e nem palavra oca! O Acordo foi aprovado e ratificado por todos e os Estados estão a adaptar a sua lei interna para acolher as normas aprovadas em Luanda, sob proposta de Cabo Verde. Obviamente que não se espera que a publicação da lei no Boletim Oficial tenha a virtualidade de operacionalizar as normas no dia seguinte, ganhando velocidade de cruzeiro! A implementação de uma lei dessa natureza é também um processo, por implicar circuitos e procedimentos desconhecidos e até sujeitos a imprevisibilidades. É também o que tem acontecido com a legislação no quadro da CEDEAO e acontece com qualquer tipo de acordo internacional, vinculando os Estados a processos complexos em matérias sensíveis. Só hoje, dia 30 de Setembro, foi publicada regulamentação da lei portuguesa de estrangeiros que acolheu o Acordo de Mobilidade. Hoje!
A lei portuguesa de estrangeiros que decorre do Acordo de Mobilidade na CPLP (e hoje regulamentada) é ousada e dá um tratamento muito favorável aos cidadãos dessa comunidade, quase que impondo o visto obrigatório caso o requerente não constitua uma ameaça à segurança. As facilidades consentidas na lei são óbvias e de tal sorte que tem já desencadeado várias iniciativas de mobilidade com impacto em vários setores, mas é preciso ainda dar tempo ao tempo para se poder avaliar com maior segurança e propriedade as vantagens e eventualmente as soluções que devam ser retificadas. Tais facilidades só existem com esse vigor e intensidade apenas no quadro da CPLP! Mas também é certo que enquanto existirem fronteiras no mundo haverá sempre constrangimentos de entrada em territórios estrangeiros, pelo que se deve moderar em alguma medida as exigências. Cabo Verde também impõe limites: a entrada de curta duração está facilitada (para certos países), mas já não é tão fácil a obtenção do estatuto de residente!
Também já foi anunciado que Cabo Verde vai alterar a sua lei de estrangeiros com o fito de acolher o Acordo de Mobilidade na CPLP. Estes processos não são simples e requerem a criação de condições técnicas e materiais que permitam também o cumprimento da lei, atingindo-se o mais rapidamente possível a velocidade de cruzeiro no prazo de resposta que a lei pressupõe. Infelizmente, a realidade é quase sempre mais comedida que a solução que o nosso desejo projeta!
O facto de Portugal ser inquestionavelmente o país que de longe concede maiores facilidades na mobilidade aos cabo-verdianos e mesmo assim ser o país mais duramente atingido pelas críticas na demora ou recusa do visto, só se compreende pela circunstância, legitimada pela história e pelas declarações políticas, de ser muito elevada a expetativa de soluções rápidas e desembaraçadas que desperta no espírito dos cabo-verdianos. E é bom que assim seja e estou certo que em vez de causar ainda maior retração na resposta, constituirá um fator de motivação acrescida para se encontrar soluções cada vez mais alinhadas com as expetativas dos cabo-verdianos e as necessidades em concreto de Portugal. E precisa-se, efetivamente.
* Embaixador de Cabo Verde em Portugal
Texto originalmente publicado pelo autor na sua página do Facebook
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