O meu olhar. Estado de Emergência
Ponto de Vista

O meu olhar. Estado de Emergência

 
A declaração do estado de emergência é constitucional - ela é feita nos termos da Constituição, que estabelece os requisitos e os limites materiais da mesma -, mas é um ato grave, desde logo porque limita os direitos, as liberdades e as garantias dos cidadãos.
 
Trata-se de um momento de excepção, quando estão em causa a própria existência do Estado e/ou a sobrevivência da coletividade. Por isso, num Estado de Direito Democrático, o processo que conduz à declaração do estado de emergência está rodeado de especiais cuidados.
 
O Presidente da República, quem é competente para o efeito, deve, previamente, ouvir o Governo e ser autorizado pelo Parlamento (h) do n.1, do art.º 135 da CRCV).
 
Exige-se, pois, o envolvimento de todos os órgãos de soberania. No caso da autorização parlamentar, se a Assembleia Nacional não estiver reunida ou não for possível a sua reunião imediata, a Comissão Permanente pode dar a autorização, devendo a plenária ratificá-la na primeira reunião a seguir (n.4, art.º135 da CRCV).
 
A declaração deve ser fundamentada e indicar o âmbito territorial, os seus efeitos, os direitos, liberdades e garantias que ficam suspensos, bem como a sua duração, que, todavia, não poderá ser superior a 30 dias (em Portugal não pode ser superior a 15 dias e na África do Sul, a 21 dias) prorrogáveis por igual período (n.1, art.º272 da CRCV). Há, todavia, direitos que são intangíveis como “os direitos à vida, à integridade física, à identidade pessoal, à capacidade cicil e à cidadania, a não retroatividade da lei penal, de defesa do arguido e a liberdade de consciência e de religião” (art.º274 da CRCV).
 
 
«Face a ameaças como a do COVID 19, as pessoas, com medo e pânico, tendem a aceitar acriticamente todas as medidas das autoridades que na perspetiva delas afastam a ameaça e resolvem o problema, independentemente da sua natureza. O autoritarismo e o totalitarismo afirmam-se, muitas vezes com apoio popular, em situações de manifesta crise, de instabilidade política e de ingovernabilidade.»
 
 
Durante a vigência do estado de emergência, a Assembleia Nacional não pode ser dissolvida (Art.273.º da CRCV), nem as competências e o funcionamento dos restantes órgãos de soberania podem ser afetados (art.º275.º da CRCV).
 
Sendo embora uma situação de excepção, em que o Governo governa com menos limites, não se verifica, mesmo assim, nem a suspensão da constituição, nem a suspensão da democracia.
Perante a calamidade pública provocada pela pandemia do COVID 19, vários países vêm declarando o estado de emergência com conteúdos e interesses diferenciados. Há aqueles que restringem quase tudo, até mesmo o direito à liberdade de expressão, a pretexto de combate às fake news (caso da Hungria), e outros, com instituições mais consolidadas e uma cultura democrática mais arraigada, cujos governantes, face à necessidade do estado de emergência, demonstram cautelas, sentido de estado e manifesta autovigilância contra excessos, demagogia e populismo (caso de Portugal).
 
Em Cabo Verde, também, foi declarado o estado de emergência por causa do COVID 19. O processo especial previsto na Constituição da República foi integralmente cumprido, tendo o Presidente da Republica ouvido o Primeiro Ministro e obtido a autorização da Assembleia Nacional, através da sua Comissão Permanente. O Presidente ouviu ainda o Conselho da República, nos termos da Constituição (f), art.254 da CRCV), os partidos políticos, os sindicatos, o patronato, as confissões religiosas, e várias personalidades da sociedade civil.
 
Todos concordaram com a proposta do Presidente da República. A Comissão Permanente da Assembleia Nacional aprovou por unanimidade a Resolução que autoriza o Presidente a declarar o estado de emergência.
 
Face a ameaças como a do COVID 19, as pessoas, com medo e pânico, tendem a aceitar acriticamente todas as medidas das autoridades que na perspetiva delas afastam a ameaça e resolvem o problema, independentemente da sua natureza. O autoritarismo e o totalitarismo afirmam-se, muitas vezes com apoio popular, em situações de manifesta crise, de instabilidade política e de ingovernabilidade.
 
Nesses momentos, são precisos cautelas, espirito crítico e sentido de responsabilidade.
Acredito na lucidez, na liberdade de espírito, na cultura democrática e no sentido de estado do Presidente da República, do Parlamento, do Governo e dos líderes políticos. Confio em como este momento poderá funcionar como um teste às nossas instituições democráticas e atores políticos.
Cabe agora ao Governo a execução do Decreto Presidencial. Espera-se sobretudo contenção e proporcionalidade de todos os principais atores envolvidos. Os sinais dados recentemente, num comunicado do Governo, relativamente às fontes das noticias e a fake news sobre coronavírus não são muito encorajares no que se refere à liberdade de expressão e de imprensa. Ainda bem que a AJOC esteve atenta e reagiu imediatamente.
 
«Gostaria imensamente que o primeiro estado de emergência declarado em Cabo Verde fosse prévia e abertamente debatido na plenária do Parlamento, onde estão presentes as principais sensibilidades políticas. Por razões políticas e pedagógicas.»
 
Uma outra inquietação minha refere-se à suspensão dos trabalhos parlamentares durante este período. Perante uma situação de calamidade pública, de estado de emergência, nenhum órgão de soberania, máxime a Assembleia Nacional, pode claudicar. Não é por acaso que a Constituição proíbe a dissolução do Parlamento durante a vigência do estado de emergência e estabelece que este não pode afetar a competência e o funcionamento dos órgãos de soberania. A Assembleia Nacional tem especiais responsabilidades neste processo, designadamente a autorização ao Presidente da República para a declaração do estado de emergência, a fiscalização do seu cumprimento e a sua eventual prorrogação. Na África do Sul, por exemplo, o estado de emergência é declarado por um ato do Parlamento.
 
Na segunda sessão de Março, não se realizou o tradicional debate com o Primeiro Ministro, pelo que ouvi, com assentimento dos dois Grupos Parlamentares. A Assembleia estaria eventualmente reunida na próxima semana, mas foi a sessão adiada para meados de Abril, quando deverá ratificar a autorização para a declaração do estado de emergência, já no final do prazo da sua vigência.
 
Os Deputados, face à grave ameaça à segurança coletiva, não podem ser os primeiros a retirar-se do campo, enquanto os outros órgãos de soberania funcionam normalmente.
 
Que dizer, então, dos médicos, enfermeiros e restante pessoal da saúde, que estão na linha da frente do combate contra a pandemia? Que dizer das forças da segurança e ordem públicas? E dos jornalistas e outros grupos profissionais que terão que obrigatoriamente de trabalhar?
 
Gostaria imensamente que o primeiro estado de emergência declarado em Cabo Verde fosse prévia e abertamente debatido na plenária do Parlamento, onde estão presentes as principais sensibilidades políticas. Por razões políticas e pedagógicas. Teria o Parlamento apenas de tomar medidas de segurança face a propagação do coronovírus, como outros parlamentos pelo mundo fora. Veja-se o esforço que Ferro Rodrigues está a fazer para que o Parlamento continue a funcionar, embora com os naturais constrangimentos que a situação impõe.
 
É que, apesar da crise, apesar do estado de emergência, não se suspende a democracia nem a constituição.
 
Espero que consigamos ultrapassar este momento mais difícil, com o engajamento e o contributo de todas as caboverdianas e todos os caboverdianos.
 
* Ex-primeiro-ministro
Artigo originalmente publicado pelo autor na sua página no facebook

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