O discurso do ódio só é legítimo em democracia
Ponto de Vista

O discurso do ódio só é legítimo em democracia

...só em democracia o discurso de ódio é legítimo — não por ser bom, mas porque é na liberdade que ele pode ser combatido. Em regimes autoritários, o ódio é censurado ou, pior, transformado em doutrina de Estado. Em democracia, ele é desafiado. É confrontado pela palavra, pela crítica e pela inteligência coletiva. A coragem democrática é, pois, a coragem da confiança: confiar que os cidadãos saberão distinguir o insulto da verdade, o fanatismo da razão, a fúria da justiça. A liberdade de expressão não é uma concessão: é a fundação da própria democracia. E se queremos que Cabo Verde — e o mundo — permaneça livre, então devemos ter a coragem de enfrentar o ódio com aquilo que ele mais teme: a luz da palavra livre. A liberdade de expressão, com todos os seus riscos, permanece assim o fundamento inabalável de uma república verdadeiramente democrática, onde a resposta ao discurso de ódio deve ser sempre mais discurso, mais educação e mais argumentação – jamais o silêncio imposto.

Só a democracia pode suportar o peso da liberdade total. A censura, mesmo quando bem-intencionada, é o primeiro passo para o autoritarismo.

Embora o conceito da legitimidade aqui possa suscitar posições contrárias, mas também legítimas, o certo é que é preciso tocar na ferida ainda que ela sangre, porque obriga-nos a pensar o que, muitas vezes, vivenciamos e assistimos ao lado, mas preferimos não admitir o que está a dois palmo dos nossos olhos. A democracia não é um espaço de conforto nem de vitimização — é um campo de combate. E é nesse combate que se mede a força da liberdade.

E sobre a liberdade, ainda que também haja vozes discordante, o facto é, os Estados Unidos carrega até os dias de hoje o célebre título do “exemplo da democracia no mundo”, talvez seja e por isso, que a Primeira Emenda da sua Constituição estabelece de forma taxativa uma proteção quase que absoluta à liberdade de expressão: “O Congresso não fará nenhuma lei que restrinja a liberdade de expressão”. Provavelmente a frase mais poderosa já escrita em nome da liberdade individual. E também a mais controversa. Graças a ela, manifestações racistas, discursos extremistas e opiniões moralmente repugnantes continuam protegidos — não por serem bons, mas porque o Estado não deve decidir o que é “bom” dizer. Daí emergem várias interrogações sobre os limites dessa proteção face a discursos que possam incitar ao ódio.

Por exemplo, em Portugal, o crescimento do partido Chega e a normalização de uma retórica agressiva colocaram a questão de forma urgente: deve a democracia tolerar vozes que a desafiam? E, sobretudo, até onde vai o dever de ouvir o intolerante?

Cabo Verde, o teste da maturidade

Por aqui, esta discussão começa a emergir com a naturalidade de quem vive numa democracia consolidada e reconhecida internacionalmente. Cabo Verde construiu, em poucas décadas, um sistema político plural, pacífico e institucionalmente respeitado — uma raridade no contexto africano e motivo de legítimo orgulho nacional. Essa conquista, porém, não imuniza o país contra os novos desafios da era digital, onde a liberdade de expressão se expande ao mesmo tempo que as fronteiras entre opinião e agressão se tornam difusas.

O debate político cabo-verdiano habituou-se, até há pouco tempo, a uma cultura de civilidade e respeito, mesmo entre adversários. Contudo, o surgimento das redes sociais e da comunicação digital em massa trouxe consigo uma nova linguagem pública — imediata, emotiva, fragmentada — que tem enfraquecido o espaço da reflexão e ampliado o território da ofensa. A agressividade verbal, o tribalismo político e a desinformação tornaram-se sintomas de um tempo em que todos têm voz, mas nem todos têm consciência da responsabilidade que essa voz implica. É um pouco o saldo “positivo” da excessiva polarização. Também é o preço da liberdade no século XXI: a possibilidade de falar vem acompanhada do risco de ferir, manipular e distorcer. A tentação é responder com censura, com leis que bloqueiam, proíbem e punem. Mas isso seria um erro fatal — e, sobretudo, um erro antidemocrático.

O aparecimento de discursos de ódio, por mais desagradáveis ou violentos que sejam, não é sinal de fraqueza da democracia, mas sim um teste à sua robustez moral e institucional. É nas horas de desconforto que a liberdade prova o seu valor. Democracia que não suporta o dissenso — mesmo o dissenso hostil — é democracia apenas de aparência.

Reprimir a palavra não elimina o ódio; apenas o empurra para a sombra, onde se alimenta do ressentimento e se transforma em força política. A história é clara: o que não se pode dizer em voz alta, mais tarde se grita nas urnas. Foi assim na Europa entre as guerras, foi assim nos Estados Unidos com o avanço de movimentos extremistas marginalizados e, em menor escala, tem sido assim também em democracias lusófonas. A censura é sempre o adubo do extremismo.

Para nós, o desafio não é silenciar o ódio, mas educar para o seu confronto público. É permitir que a sociedade encare de frente as suas próprias contradições — de classe, de gênero, de identidade e de poder — e as resolva dentro das regras do debate cívico e democrático. Só assim o país poderá continuar a ser um exemplo: uma democracia pequena em dimensão, mas grande na coragem de acreditar que a liberdade, quando bem cultivada, é mais forte do que o medo.

A função política do desconforto

O discurso de ódio é uma chaga, sim. Mas também é um termômetro social. Mostra-nos onde doem as feridas do país, onde há ressentimento, onde a exclusão se transforma em raiva. Por isso, silenciar o ódio é silenciar o sintoma — e uma sociedade que não quer ver as suas feridas acaba por deixar que apodreçam.

As democracias não precisam ser frágeis diante do ódio; precisam de ser corajosas. E coragem, aqui, significa enfrentar com palavras. Significa acreditar que a razão e o debate são mais fortes do que o medo e a proibição. A Suprema Corte dos EUA, no célebre caso Brandenburg v. Ohio (1969), estabeleceu um precedente essencial: só se pode punir o discurso quando este incita diretamente à ação ilegal iminente. Tudo o resto, por mais repugnante, é protegido. Essa lógica assusta, mas protege um princípio maior: a confiança no discernimento do cidadão.

O princípio fundamental que se defende é que a verdadeira medida de uma democracia reside na sua capacidade de canalizar o conflito ideológico, não de o suprimir. A legitimidade do discurso de ódio, neste contexto, deriva do seu papel de "teste de stress" às instituições e aos valores societais. Em Cabo Verde, a circulação de ideias, mesmo as mais tóxicas — desde que enquadradas pelos limites legais —, atesta a vitalidade do espaço público. Num regime autoritário, tais ideias seriam proibidas ou, de forma mais perversa, convertidas em doutrina de Estado, sem qualquer possibilidade de contestação.

O contraste com as autocracias

Por consequência, o que é apresentado como “combate ao discurso de ódio” é, na verdade, um instrumento de silenciamento político. A China, por exemplo, censura milhões de publicações diariamente sob o pretexto de “proteger a harmonia social”. Mas o que se esconde por trás dessa retórica é o controlo absoluto da narrativa pública: quem critica o Estado é rotulado de “propagador de ódio” e eliminado digitalmente se não for fisicamente.

Na Coreia do Norte, o ódio não é apenas reprimido — é monopolizado. Só o regime pode odiar, só o regime pode apontar inimigos. O cidadão comum vive numa censura total, onde até o silêncio é perigoso. Na Rússia, o “combate ao extremismo” tornou-se um código para perseguir opositores políticos, jornalistas e ativistas. A lei que criminaliza “discurso extremista” serve menos para proteger a convivência civil e mais para aniquilar o dissenso.

Mesmo em alguns países de língua portuguesa, como Angola e Guiné-Bissau, observam-se práticas semelhantes: jornalistas perseguidos, cidadãos detidos por publicações críticas e o uso seletivo da legislação sobre discurso de ódio para intimidar a oposição. O que em democracias é liberdade de expressão, ali é tratado como crime. Esses exemplos mostram que a censura não combate o ódio — apenas o substitui pela hipocrisia. O silêncio forçado gera obediência aparente, mas nunca reconciliação verdadeira. Só em liberdade o ódio pode ser identificado, discutido e, finalmente, desarmado.

Quando a política se rende ao povo

Um dos grandes erros das democracias modernas é confundir representação com submissão. Muitos políticos já não lideram; apenas seguem o que dizem as redes sociais. Procuram não desagradar, preferem o aplauso à coerência. E é aí que o discurso de ódio se torna eficaz — quando a política perde a coragem de contradizer o povo. O papel do político democrático não é repetir o que as massas pensam, mas confrontar o pensamento coletivo quando este ameaça os valores que sustentam a própria liberdade. A democracia morre não quando surgem ideias perigosas, mas quando as ideias perigosas deixam de ser combatidas. Voltando novamente para Portugal, o Chega é exemplo disso: cresceu não por ter “razão”, mas porque encontrou um espaço vazio — o da coragem moral e política dos outros. O mesmo pode acontecer em qualquer parte do mundo, inclusive em Cabo Verde, se a política preferir o conforto do populismo à responsabilidade da liderança.

Mais liberdade, não menos

Por isso mesmo, a resposta ao discurso de ódio não pode ser o silêncio imposto nem a vitimização — é mais discurso. É abrir o espaço público, não o fechar. É a educação cívica que ensina a pensar antes de reagir, é pensamento crítico que substitui o instinto pela razão, é jornalismo livre que investiga em vez de amplificar ruído. É cidadania ativa, capaz de distinguir entre a liberdade de expressão e a irresponsabilidade moral.

Quando uma sociedade cala o ódio, arrisca-se a esquecer que o antídoto da ignorância é a palavra, e não o medo. O silêncio, mesmo quando bem-intencionado, não elimina o veneno: apenas o faz circular em segredo, ganhando força nas sombras. O ódio reprimido transforma-se em ressentimento social, em discurso disfarçado, em raiva política acumulada — e quando emerge novamente, já não se manifesta em palavras, mas em ações.

Tolerar o intolerável não é aceitá-lo — é desarmá-lo à luz do dia, com argumentos, com humor, com a força tranquila da democracia. A resposta ao potencial crescimento de discursos de ódio não deve passar pelo fechamento do espaço cívico, mas pelo seu reforço. A "legitimidade" destes discursos, entendida no seu sentido estritamente funcional, só é anulada através de mais e melhor democracia. Isto implica um investimento continuado na educação cívica, no fortalecimento de um jornalismo independente e crítico, e na promoção de uma cidadania ativa e informada. A presença eventual do discurso de ódio é o preço inevitável de uma sociedade livre; a sua derrota no campo das ideias é a prova definitiva da maturidade dessa mesma sociedade.

O discurso de ódio como espelho social

Sendo assim, o discurso de ódio não é apenas um desvio — é também um espelho das falhas sociais. Ele reflete desigualdades, frustrações e medos coletivos que a política, muitas vezes, prefere ignorar. Quando uma sociedade tenta silenciar essas vozes sem compreender o que as alimenta, o resultado é o fortalecimento subterrâneo do ressentimento. O ódio só é eficaz quando a sociedade se cala — e só é neutralizado quando é desafiado pela razão e pela ética.

Existe, em quase todas as sociedades, um ódio reprimido, silencioso, quase instintivo. Uma vontade de gritar, humilhar, ofender ou discriminar — sentimentos que raramente se assumem publicamente, mas que se manifestam em momentos de frustração coletiva, crise económica, medo ou perda de referências. E Cabo Verde, precisa assumir que existe esse ódio reprimido, que é preciso enfrentar, combater democraticamente e nunca ignorá-lo ou silenciá-lo.

O discurso de ódio, quando emerge, não cria o ódio: apenas o revela. É o sintoma visível de uma doença antiga. Por isso, tentar erradicá-lo pela força é como tentar curar uma febre quebrando o termômetro. A democracia, ao contrário dos regimes autoritários, não reprime o sintoma — expõe-no. Essa exposição é dolorosa, mas também necessária: cada manifestação de intolerância é simultaneamente um perigo e uma oportunidade. Perigo, porque testa os limites da convivência civil. Oportunidade, porque oferece à sociedade o momento exato para se olhar ao espelho e decidir o que fazer com o que vê.

O espaço público democrático deve funcionar como uma arena moral e racional onde essas pulsões sejam trazidas à luz, não para serem legitimadas, mas para serem desarmadas — pelo debate, pela razão e pela educação. É neste sentido que o discurso de ódio, paradoxalmente, pode fortalecer a democracia: ao obrigá-la a confrontar os seus próprios fantasmas e a reafirmar, com convicção, os valores que a definem.

A coragem da liberdade

Portanto, só em democracia o discurso de ódio é legítimo — não por ser bom, mas porque é na liberdade que ele pode ser combatido. Em regimes autoritários, o ódio é censurado ou, pior, transformado em doutrina de Estado. Em democracia, ele é desafiado. É confrontado pela palavra, pela crítica e pela inteligência coletiva. A coragem democrática é, pois, a coragem da confiança: confiar que os cidadãos saberão distinguir o insulto da verdade, o fanatismo da razão, a fúria da justiça. A liberdade de expressão não é uma concessão: é a fundação da própria democracia. E se queremos que Cabo Verde — e o mundo — permaneça livre, então devemos ter a coragem de enfrentar o ódio com aquilo que ele mais teme: a luz da palavra livre. A liberdade de expressão, com todos os seus riscos, permanece assim o fundamento inabalável de uma república verdadeiramente democrática, onde a resposta ao discurso de ódio deve ser sempre mais discurso, mais educação e mais argumentação – jamais o silêncio imposto.

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