Refletir a Universidade de Cabo Verde: Governança (4ª Parte)
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Refletir a Universidade de Cabo Verde: Governança (4ª Parte)

Estou convicto de que o défice de financiamento público tem sido um dos maiores problemas da Uni-CV, com forte impacto negativo na valorização e desenvolvimento do seu pessoal e no acesso dos estudantes ao ensino superior. Anualmente, o Estado tem disponibilizado, diretamente para a Uni-CV, trezentos e tal mil contos, quando, por exemplo, o orçamento de funcionamento para o ano de 2025 ascende a 1.129.043 contos. Importa, contudo, observar que também, do meu ponto de vista, os sucessivos Reitores não têm sido capazes de desencadear uma liderança e um sistema de governança universitária à altura dos desafios da Universidade de Cabo Verde. Admito que a impreparação, ou o amadorismo, tem dificultado muito, pois governar uma Universidade não é uma tarefa simples! De resto, neste país, este não é um problema apenas da Uni-CV.

A Universidade de Cabo Verde (Uni-CV) vai a votos, no próximo dia 28 de janeiro, para a eleição do seu 5º Reitor. São vários os candidatos que se apresentam com o propósito de liderar a governança da maior instituição de ensino superior do país, num momento particularmente relevante para o futuro do país. Pessoalmente, tenho defendido que é preciso iniciarmos uma Nova Era para Cabo Verde, após 50 anos da Independência Nacional, e a Uni-CV deverá ter um papel de relevo.

Criada no ano académico de 2006/2007, a Uni-CV completou, recentemente, 19 anos de existência. Trata-se ainda de um período relativamente curto no processo de estruturação e afirmação de uma Universidade. Com efeito, uma Universidade, enquanto Escola, e à semelhança das demais Escolas (mesmo do ensino básico) não se constrói apenas com edifícios, equipamentos, alunos, docentes e funcionários. Do ponto de vista teórico-conceptual, uma Universidade é, sobretudo, um constructo social, resultante da interação e do compromisso das suas partes interessadas (stakeholders), internas e externas. Este é um processo complexo, exigente e contínuo, mas absolutamente fundamental para a edificação de uma Universidade relevante. Pela minha experiência pessoal, tenho dúvidas se esse processo de construção social tenha sido plenamente iniciado na Uni-CV.

É certo que a academia tem funcionado e conseguido alguma capacidade de atração, tanto a nível nacional como internacional. No plano internacional, essa atratividade manifesta-se, nomeadamente, na presença de estudantes estrangeiros em cursos de graduação e pós-graduação, oriundos de países como Angola, Guiné-Bissau, Nigéria e até do Brasil e Portugal, com particular incidência nos cursos avançados. Acresce que a Uni-CV é a única instituição do país a beneficiar do programa Erasmus, assegurando a mobilidade de estudantes, professores e funcionários para Universidades europeias e recebendo, igualmente, participantes dessas instituições. Este facto constitui um sinal inequívoco de ganhos no domínio da internacionalização, colocando a Uni-CV numa posição privilegiada para melhor servir Cabo Verde.

Sendo a maior instituição de ensino superior do país, a Uni-CV é também a mais bem posicionada para assegurar os três pilares fundamentais de uma Universidade: a docência, a investigação e a transferência de conhecimento. Ela destaca-se, nesse sentido, por concentrar: (i) o maior número de doutores, enquanto principais produtores de conhecimento; (ii) as maiores e melhores instalações físicas; (iii)  e as melhores condições, em termos de bibliotecas, laboratórios, espaços desportivos, residências estudantis, refeitórios, entre outros equipamentos essenciais.

A sua importância, no contexto nacional é, por isso, de valor estratégico. Torna-se fundamental que os candidatos ao cargo de Reitor tenham plena consciência dessa responsabilidade. Num país com a dimensão demográfica de Cabo Verde e no estádio de desenvolvimento económico, social e cultural em que nos encontramos, a existência de uma Universidade pública forte, que assuma plenamente o seu papel e desenvolva, com qualidade e relevância, os três pilares referidos, é de capital importância.

Na era em que o conhecimento se tornou a principal riqueza das nações, e sendo a Universidade, por essência, uma plataforma central de produção de conhecimento, é essencial que o futuro Reitor ou Reitora, bem como toda a academia e a sociedade cabo-verdiana, incluindo os políticos, vejam a Uni-CV como uma luz orientadora, da qual se pode e se deve esperar muito.

Os desafios do país continuam a ser enormes: o combate à pobreza, a elevação do nível de qualificação e cultural da população, a produção de conhecimento orientado para o progresso sustentável e a salvaguarda ambiental, são exigências incontornáveis! Enquanto Universidade pública, a Uni-CV deve encarar estes desafios com elevado sentido de responsabilidade, posicionando-se como uma verdadeira “UniverCidade”, na expressão de António Nóvoa, antigo Reitor da Universidade de Lisboa, ou como uma “Multidiversidade”, na aceção de Clark Kerr, antigo Presidente da Universidade da Califórnia.

O seu espaço de intervenção não deve limitar-se ao interior dos três campi (Praia, Mindelo e Assomada), mas alargar-se para todo o território nacional (não estou a defender a proliferação de estruturas pelas ilhas), abraçando os diversos sectores da vida do país e os seus desafios.

Recordo que, segundo dados do INE, apenas cerca de 9% da população adulta cabo-verdiana possui formação superior, quando a média nos países desenvolvidos ronda os 36%. Mais do que a atribuição de diplomas, o foco permanente da Uni-CV deve ser a resposta aos problemas sociais, económicos, culturais e ambientais, em suma, o progresso sustentado do país.

Enquanto instituição pública, cabe ao Estado criar, em primeiro lugar, as condições necessárias para que ela cumpra a sua missão, encarando-a (à semelhança do que defendia Napoleão Bonaparte relativamente às universidades francesas) como uma instituição que deve avançar sempre, mesmo quando o governo abranda. Há, aliás, especialistas que defendem que uma Universidade pública deve situar-se acima do próprio Estado.

O reforço do seu financiamento público é crucial para a libertá-la do crónico sufoco financeiro que a acompanha, desde o seu nascimento, constituindo-se num dos principais entraves à sua consolidação e desenvolvimento. Internacionalmente, os sistemas de ensino superior relevantes assentam-se, em regra, num modelo de financiamento composto por:

1.      Financiamento Base, destinado a assegurar o funcionamento regular da instituição; e

2.       O Financiamento de Desenvolvimento, geralmente, assegurado através de Contratos-programa orientados para programas, ou projetos, específicos nos domínios da docência, investigação e transferência de conhecimento.

Dada à natureza incremental desta segunda modalidade complementar, o Contrato-programa, também, é designado de Contrato de Desempenho e o Banco Mundial colabora com os países na sua implementação. Vários países africanos, mas também o Chile, têm procurado aceder a importantes recursos, junto desse organismo, para impulsionar o desenvolvimento das suas Universidades. Só assim, com financiamento adequado, se constrói uma Universidade capacitada e prestigiada, capaz de contribuir ativamente para a resolução dos problemas nacionais e de se projetar internacionalmente.

Estou convicto de que o défice de financiamento público tem sido um dos maiores problemas da Uni-CV, com forte impacto negativo na valorização e desenvolvimento do seu pessoal e no acesso dos estudantes ao ensino superior. Anualmente, o Estado tem disponibilizado, diretamente para a Uni-CV, trezentos e tal mil contos, quando, por exemplo, o orçamento de funcionamento para o ano de 2025 ascende a 1.129.043 contos. Importa, contudo, observar que também, do meu ponto de vista, os sucessivos Reitores não têm sido capazes de desencadear uma liderança e um sistema de governança universitária à altura dos desafios da Universidade de Cabo Verde.  Admito que a impreparação, ou o amadorismo, tem dificultado muito, pois governar uma Universidade não é uma tarefa simples! De resto, neste país, este não é um problema apenas da Uni-CV.

Por conta dessas situações, a Uni-CV se encontra a braços com problemas estruturais, desde logo, a questão financeira, mas também problemas organizacionais (de ponto vista institucional) e problemas ligados à progressão e reclassificação, no desenvolvimento da carreira do seu pessoal. Por exemplo, existem muitos professores que aguardam, há mais de oito anos, pela reclassificação, após a conclusão do exigente doutoramento. Em consequência, muitos acabam por se aposentar com rendimentos muito baixos, sendo colocados em situações de grande vulnerabilidade económica, numa fase da vida, frequentemente, marcada por problemas de saúde.

Todas essas situações “empecilhantes”, sendo parte da responsabilidade do Estado e parte da responsabilidade dos sucessivos Reitores, têm colocado a academia num estado de tensão permanente com os seus profissionais e, também, com os seus estudantes, quando sabemos que a questão da dívida dos estudantes é um problema muito sério na Uni-CV, bem como em todas as Instituições do ensino superior do país.

Posto isso, aos candidatos, desejo sucesso e que vença aquele que melhor convencer a academia. Contudo, enquanto especialista em Governança Universitária, deixo um alerta claro: a escolha deve ser feita com elevado sentido de responsabilidade. Como disse antes, governar uma Universidade não é tarefa simples! Para muitos especialistas em Teoria Geral da Administração, uma Universidade pública é, entre todas as organizações públicas, uma das mais difíceis de governar. Tal é compreensível, pois é nela que se concentra o maior número de doutores do país, profissionais com elevado grau de autonomia de pensamento e ação, decorrente do elevado grau de especialização deles em múltiplos domínios do saber, incluindo a própria Administração e Governação Universitária.

 

[i] Doutor em Administração e Política Educacional – vertente Governança Universitária. Professor e Presidente do Conselho para a Qualidade na Uni-CV

 

 

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