A título de desassombrado e descomplexado balanço, pode-se pois dizer que o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde se demonstrou, historicamente, como o mais eficaz instrumento de catarse cultural e de libertação política do povo caboverdiano, para depois se desvanecer definitivamente e ao correlativo projecto de pátria africana bi-nacional nos horizontes geograficamente longínquos do “reajustamento” de João Bernardo (Nino) Vieira. Reajustamento, cujos fautores eram, tal “os bárbaros” do poema de Kavafis, muito aguardados, ainda que esconjurados como implicados numa odiosa “segunda morte” de Amílcar Cabral, de que “esses outros”, “os suspeitos de costume”, seriam os responsáveis directos.
SEXTA PARTE
VI
O COLAPSO E A FALÊNCIA PÓS-COLONIAIS DO PRINCÍPIO DA UNIDADE GUINÉ-CABO VERDE E DO PROJECTO DE UNIÃO ORGÂNICA ENTRE AS REPÚBLICAS IRMÃS DA GUINÉ-BISSAU E DE CABO VERDE
1. Tornadas (quase) insanáveis as fissuras provocadas especialmente pelas circunstâncias etnicamente marcadas do assassinato de Amílcar Cabral, está-se em crer que a não completa cicatrização das feridas provocadas pelo trágico e infausto acontecimento radicasse na pouca (senão nula) crença que alguns dos seus principais defensores públicos integrados no PAIGC passaram a depositar na pertinência pós-colonial do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e na viabilidade do projecto dele decorrente da união orgânica pós-colonial entre os dois países. Na verdade, é crível que esses dirigentes tivessem pensado que estariam esgotadas as potencialidades emancipatórias do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e, nessa sequência, do projecto da união orgânica dos dois países, paradoxalmente devido ao pleno sucesso da operacionalização no terreno da luta político-militar e diplomática do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e da união orgânica das forças patrióticas e nacionalistas dos dois países no seio do movimento de libertação bi-nacional denominado PAIGC, tendo-se, assim, conseguido levar as lutas político-miltar, diplomática, política clandestina e legal e de massas ao pleno sucesso e logrado a conquista das soberanias nacionais e a concomitante emergência dos dois povos nos palcos da história na busca da sua afirmação nacional e da resolução de problemas e conflitos internos, próprios a cada uma das respectivas sociedades. Deste modo, tornou-se quase inevitável o ulterior bloqueio pós-colonial do processo de união orgânica entre as Repúblicas irmãs da Guiné-Bissau e de Cabo Verde ou, pelo menos, a desaceleração do entusiasmo mobilizador que o princípio pan-africanista da unidade Guiné-Cabo Verde suscitara em prol da luta anti-colonial galvanizando importantes sectores das duas sociedades e engendrando a unidade suficiente para a sua emancipação política e especialmente marcada em Cabo Verde pela catarse cultural contra o assimilacionismo colonial e o correlativo resgate da margem e da dimensão africanas e das vertentes afro-crioulas da identidade cultural caboverdiana .
Parecendo que não e apesar das cautelas postas na implementação prática pós-colonial do princípio da unidade Guiné/Cabo Verde e do correlativo projecto da pátria africana una, progressista e solidária que deveria resultar da união orgânica entre os dois Estados independentes e soberanos, a marcha fúnebre por esse mesmo princípio e o requiem pela pátria africana bi-nacional sonhada por Amílcar Cabral e da qual ele próprio foi o principal defensor e a vítima mais ilustre e mais chorada, terão sido entoados com a tristeza e a consternação devidas à morte de um ente muito querido, mas igualmente com o alívio que se deve ao óbito daqueles que em vida vegetam mais do que vivem, sofrem atrozmente calados mais do que sobrevivem em condições mínimas de dignidade. De natureza e efeitos mortíferos para o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e para o projecto pós-colonial de paulatina implementação da união orgânica entre os dois países, o golpe de Estado perpetrado por João Bernardo (Nino) Vieira, mais do que um assassinato, que seria o segundo de Amílcar Cabral, na óptica dos detractores, dos sacrificados e dos alvos dos eventos de 14 de Novembro de 1980, representou, por assim dizer, uma espécie de acto de eutanásia. Por isso, foi amplamente tolerado, senão incensado, por quase todos aqueles que o interpretaram como significativo de um novo começo para os que puderam sobreviver ao que se tinha tornado um silente cancro político susceptível de gangrenar o corpo dos dois Estados-nação emergentes, especialmente do Estado-nação bissau-guineense, e de impedir a cabal reconciliação nacional do povo das ilhas e diásporas, isto é, da sociedade caboverdiana no seu todo global e diaspórico, com a sua multissecular e singular História de povo afro-atlântico e os seus protagonistas de diferentes gerações e em etapas diversificadas da sua formação como nação crioula.
A tal compreensão, por demais tolerante, terão quiçá escapado os poucos responsáveis e militantes políticos e cidadãos caboverdianos das ilhas que, depois da independência de Cabo Verde, permaneceram na Guiné-Bissau e aqueloutros pan-africanistas de extracção paigcista que, mesmo depois da evidência da irreversibilidade da afirmação das soberanias nacionais dos dois países, continuaram a apostar, e até às suas derradeiras consequências, na manutenção do sonho cabraliano da unidade Guiné-Cabo Verde e no concomitante projecto pós-colonial de união orgânica dos dois pequenos Estados soberanos oeste-africanos. Tal aposta poderia ter tido como motivações tanto uma genuína convicção e a crença inabalável no princípio e no projecto unitaristas a que se vem fazendo referência, como também a vontade de prestação de uma incondicional homenagem póstuma ao seu doravante imortal criador festejado como Herói do Povo, Militante Nº 1 da Causa das Independências Bi-Nacionais, Fundador de Duas Nacionalidades e o maior Morto Imortal da Guiné e de Cabo Verde. Mais pragmaticamente, a defesa persistente e intransigente do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e do projecto pós-colonial de união orgânica dos dois países poderá ter tido como motivação a sua compreensão enquanto fonte de legitimação do poder que alguns efectivamente exerciam, certos deles considerando-se eles próprios, na sua dupla pertença nacional e identitária, como encarnando a ideia de uma unidade bicéfala e bi-corporal (no sentido de bi-nacional) amiúde cantada e consubstanciada como axioma de mobilização política dos tempos imediatamente pré e pós-coloniais na expressão Guiné ku Kabu Verdi - dos korpu, un kurason (Guiné e Cabo Verde - dois corpos, um coração), isto é, significando os dois países como sendo quase dois irmãos siameses unidos pelo coração. A esses seres só restaria pois uma das duas alternativas: a) perecer na operação cirúrgica que quisesse jungir e fundir os seus corpos num único corpo servido por um único coração; b) manterem-se vivos com dois corpos ainda que servidos por um único coração que seria o partido/movimento de libertação bi-nacional, até que sobreviesse o perecimento desse mesmo coração e consequentemente da parcial e indecisa união dos dois corpos. Em todos os dois hipotéticos casos acima referidos, parecia tornar-se cada vez mais quimérica e utópica a pátria africana una, progressista e solidária sonhada e desejada por Amílcar Cabral. É essa crença/convicção guardada a sete chaves como o mais precioso dos segredos pelos mais directamente interessados na matéria que eram os altos dirigentes do PAIGC nos dois países que explica o facto de, nos tempos pós-coloniais, o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde se ter tornado em si mesmo cada vez mais inócuo na sua radicação complementar nas potencialidades libertárias e desenvolvimentistas dos dois países.
Sublinha Humberto Cardoso no livro acima referenciado, que, em reacção ao golpe de Estado protagonizado por João Bernardo (Nino) Vieira, as estratégias de renovação da legitimidade histórica por parte dos antigos dirigentes caboverdianos do PAIGC conheceram uma inequívoca, visível e inédita deriva nacionalista e soberanista, divergente do mais lato patriotismo de teor pan-africanista ínsito no princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e no projecto de união orgânica nele baseado e alicerçado, dantes abraçado com muito entusiasmo, indesmentível generosidade e imensos sacrifícios no terreno da luta político-militar e diplomática no chão das duas Guinés e nas agruras da arriscada luta política clandestina e da galvanizante luta legal e abertamente de massas no chão arquipelágico de Cabo Verde. Até porque os dirigentes bissau-guineenses, ora golpistas, não mereceriam a grandeza e a generosidade de tal projecto, primacialmente dedicado à venerável memória de Amílcar Cabral, da sua ingente obra político-ideológica materializada na existência de dois Estados africanos independentes e soberanos e do seu sonho de construção de uma vida de liberdade, democracia, paz, justiça, progresso social e prosperidade para os povos e para todos os filhos da Guiné e de Cabo Verde. É essa deriva nacionalista que teria levado os dirigentes caboverdianos reunidos de emergência em Conselho Nacional a apressar o fim do PAIGC bi-nacional, condenando imediatamente o golpe de Estado como método censurável e condenável a todos os títulos e, por isso, inapropriado e inaceitável para a resolução de conflitos intra-partidários, onerando e responsabilizando pela exacerbação dos problemas ocorridos na Guiné-Bissau todos os dirigentes bissau-guineenses (tanto os auto-considerados e auto-proclamados como “guineenses autênticos” ou “guineenses de gema” porque originários de grupos étnicos negro-africanos radicados no actual território da Guiné-Bissau como os chamados “burmedjos” porque de origem caboverdiana ou de outro modo mestiços, isto é, enquanto filhos ou descendentes de caboverdianos vindos das ilhas meso-atlânticas ou de outra parcial ou total proveniência alienígena à actual territorial da Guiné-Bissau. Deste modo, tanto Aristides Pereira como o Conselho Nacional de Cabo Verde do PAIGC incluíram Luís Cabral e Nino Vieira no conjunto dos dirigentes partidários bissau-guineenses responsáveis por todas e quaisquer questões atinentes à governação do país irmão, pois que esses mesmos dirigentes teriam alegadamente à sua disposição as instâncias nacionais do ramo bissau-guineense e, em última instância, os órgãos supra-nacionais do partido para arbitrar, dirimir e resolver os seus diferendos, sendo que, ademais, eram ambos os mais altos dirigentes não só do ramo bissau-guineense do PAIGC, o primeiro como Secretário-Geral Adjunto do partido único residente no país-irmão e o segundo como Presidente do seu Conselho Nacional (isto é, da Direcção nacional do ramo continental-insular do PAIGC), como também do Estado bissau-guineense, o primeiro como Presidente do Conselho de Estado - equiparado a Presidente da República, o segundo como Comissário Principal - equiparado a Primeiro-Ministro. Com esse argumentário, os dirigentes caboverdianos do PAIGC e do seu ramo nacional islenho rejeitaram todas as responsabilidades imputadas pelo Conselho da Revolução emanado do golpe de Estado de Nino Vieira aos dirigentes caboverdianos integrantes dos órgãos supra-nacionais do partido, mas residentes em Cabo Verde, bem como quaisquer compromissos com os dirigentes do Conselho da Revolução. Nessa sequência, o mesmo Conselho da Revoluçao bissau-guineense foi considerado como sendo golpista com sucesso e, por, isso, interlocutor ilegítimo para tratar de questões partidárias bi- e supra-nacionais, mas autoridade política e órgão soberano bissau-guineense, doravante considerados legítimos para os efeitos do encetamento e da prossecução das relações entre os Estados independentes e soberanos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.
2. Paradigmático desse posicionamento é a atitude de Aristides Pereira no período imediatamente posterior ao golpe de Estado de Bissau, de 14 de Novembro de 1980: na correspondência trocada com Nino Vieira, o Secretário-Geral do PAIGC começa por adoptar o comportamento de líder máximo desse partido supra-nacional e de paternal e, por isso, severa repreensão do método golpista adoptado por aquele que, com ele, tinha tido a responsabilidade político-militar bicéfala de uma das Frentes de Luta guineense (a Frente Sul); a partir da circunstância de João Bernardo Vieira considerar a destituição de Luís Cabral como irreversível e, por isso, como facto absolutamente consumado, Aristides Pereira passa a adoptar a postura de Chefe de Estado caboverdiano e, como tal, estrangeiro em relação à Guiné-Bissau. Por isso e em coerência com esse estatuto, Aristides Pereira, como, aliás, os membros do Conselho Nacional de Cabo Verde do ainda subsistente ainda que agónico PAIGC, como já referido, entretanto reunido em sessão de emergência, recusaram-se a interferir nos assuntos internos da Guiné-Bissau para tão-somente indagar e preocupar-se com o destino dos cidadãos caboverdianos, seus compatriotas, residentes no doravante considerado ex-país irmão, e a exigir a libertação imediata e o tratamento com dignidade de todos os dirigentes do PAIGC, entretanto encarcerados e presumivelmente torturados. Relembre-se neste contexto que, como é sabido, Luís Cabral permaneceria por treze meses em prisão decretada pelas novas autoridades bissau-guineenses sem qualquer julgamento judicial, antes de se exilar em Cuba e, depois, em Portugal, tendo tido uma curta passagem de meses por Cabo Verde, depois do seu exílio cubano. À sua pretensão de permanecer em Cabo Verde com residência, não na cidade do Mindelo, onde foi colocado, mas na capital do país, a cidade da Praia, opuseram-se os mais altos dirigentes políticos caboverdianos, com destaque para o Presidente da República Aristides Pereira, certamente com receio que Luís Cabral retomasse a sua vida política, em dois possíveis e ponderados cenários: i. No quadro do PAICV e do Estado caboverdiano, o que seria de todo impensável e inviável, em razão da sua reiterada identificação como bissau-guineense e do seu antigo estatuto de Chefe de Estado da Guiné-Bissau e Secretário-Geral Adjunto do defunto PAIGC, em representação pessoal ao mais alto nível orgânico do ramo bissau-guineense do mesmo partido binacional. ii. Como opositor político ao regime de Nino Vieira que o destituiu, possibilidade assaz inconveniente para os efeitos da manutenção da normalidade nas relações entre os vizinhos Estados independentes e soberanos oeste-africanos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde e entre os Cinco Países afro-lusófonos. De todo o modo, quando pôde finalmente regressar à Guiné-Bissau, o que somente foi possível depois do bárbaro e atroz assassinato de Nino Vieira, evento macabro que ocorreu depois da sua destituição pelo General Ansumane Mané na sequência da guerra civil de 1998/1999 e do seu postrior regresso à chefia do Estado bissau-guineense como Presidente da República democraticamente eleito, Luís Cabral afirmou não querer desempenhar qualquer papel na vida política do seu país natal, de que foi o primeiro Chefe de Estado. O golpe de Estado de Nino Vieira custou a vida a algumas vítimas, de entre as quais se contam altos dirigentes do PAIGC, com destaque para Otto Schacht, o qual resistiu ao golpe de Estado e, ao que parece, foi executado na sua residência, Constantino Teixeira (Tchutcho Axon) e André Gomes, alegadamente falecidos (suicidados) na prisão, bem como de altos dirigentes da polícia política e da segurança do Estado, com destaque para Buscardini. Foi a essa polícia política/segurança do Estado, aos seus chefes e responsáveis e, em geral, ao doravante vituperado e execrado “regime de Luís Cabral”, que foram especialmente imputadas as graves violações dos direitos humanos alegadamente cometidas depois da entrada do PAIGC em Bissau e em outros centros urbanos bissau-guineenses, como, entre outras, torturas, execuções sumárias e desaparecimentos de um sem número de cidadãos, e que teriam justificado o golpe de Estado de Nino Vieira, o qual se quis por isso eximir a ele e aos seus cúmplices reunidos no Conselho da Revolução de todas e quaisquer responsabilidades nessas e noutras matérias, como, por exemplo, a execução sumária dos Comandos Africanos, especialmente em Março/Abril de 1975, operação alegadamente securitária e militar levada a cabo em Bisau em tempos de paz e quando o mesmo Nino Vieira era Comissário de Estado (equiparado a Ministro) da Defesa da Guiné-Bissau e à revelia do sentido e da letra dos acordos assinados com as autoridades coloniais e militares portuguesas na sequência e para a implementação do Acordo de Lisboa de reconhecimento de jure da República da Guiné-Bissau por parte de Portugal, bem como de inúmeros régulos, autoridades e potentados tradicionais avessos ao partido libertador.
3. Já não eram os Estatutos do partido bi-nacional nem sequer as normas do Direito Constitucional e do Direito Penal bissau-guineenses, e a sua eventual violação, nem sequer as funções de Secretário-Geral do PAIGC que exercera Aristides Pereira, por um lado, e, por outro lado, de Membro da Comissão Permanente do PAIGC (a mais alta instância executiva do PAIGC, de composição paritária bi-nacional, se bem que com uma maioria de membros de naturalidade bissau-guineense, por alturas do desferimento do demolidor golpe de estado) e de Presidente do Conselho Nacional da Guiné-Bissau do mesmo partido, a presidir à interlocução entre Aristides Pereira e João Bernardo Vieira, mas as normas de Direito Internacional Público incidentes nas relações entre Estados independentes e soberanos que doravante estão presentes nas palavras trocadas entre o Presidente da República de Cabo Verde e o Presidente do Conselho da Revolução da Guiné-Bissau.
Rejeitando, de início, qualquer solução que não implicasse a reconstituição do status quo anterior ao reajustamento ninista, isto é, a libertação e a reposição de Luís Cabral nas suas funções de Secretário-Geral Adjunto do PAIGC e de Presidente do Conselho de Estado (equiparado a Presidente da República) bissau-guineense, já claramente impossível de concretizar, bem como qualquer saída à crise que pudesse significar a superação da alegada unidade entre cavalo e cavaleiro, isto é, a recomposição, a favor dos chamados “bissau-guineenses autênticos” ou “bissau-guineenses de gema”, da correlação de forças ao mais alto nível bi-nacional e nacional-guineense do comatoso PAIGC, os dirigentes caboverdianos do mesmo partido optaram pela transformação do ramo caboverdiano desse partido em partido nacional autónomo, o PAICV, culminando, assim, o que desde há muito (pelo menos, desde o assassinato do “caboverdiano” Amílcar Cabral) se adivinhava, ainda que por indícios contraditórios.
À inicial estupefacção face ao desmoronamento de um princípio largamente propagandeado como intocável e assente em bases inquebrantáveis seguiram-se a revolta e a respiração aliviada dos caboverdianos em face da previsibilidade e da razoabilidade de um cenário político vindouro com total recentragem do Partido Africano da Independência sobre as problemáticas específicas da sociedade e da terra caboverdianas. Tais reacções foram justificadas, em certa medida, pelo ramo caboverdiano do PAIGC em face das pesadas acusações e da responsabilização por parte dos golpistas de Bissau imputadas aos dirigentes políticos caboverdianos (neles incluindo i. tanto aqueles exercendo funções político-partidárias nas estruturas supra-nacionais e nas estruturas nacionais da Guiné-Bissau do partido único e das FARP como os regressados às ilhas depois do 25 de Abril de 1974; ii. quer os ainda radicados no território da Guiné-Bissau, tanto os que inequivocamente se identificavam como caboverdianos como também os que se identificavam como guineenses ou, que, a partir do seu regresso, já adultos, à terra natal e da sua inserção na saga libertadora do PAIGC, passaram a identificar-se como tal) por má gestão do país, abusos de poder, graves e flagrantes violações de direitos humanos e outros malefícios totalitários pós-coloniais ocorridos, de forma recorrente e sistemática, na sociedade bissau-guineense, destacando-se a execução extra-judicial e em massa dos ex-Comandos Africanos, de régulos e autoridades tradicionais hostis ao ideário independentista, bi-nacionalista e/ou socializante do PAIGC e de outros denominados inimigos do partido, do povo, da luta, da independência nacional e da pátria bi-nacional, tendo as valas comuns onde teriam sido enterrados os seus corpos sido ostensivamente apresentadas à imprensa bissau-guineense e à imprensa internacional, tendo nessa ocasião o novo poder político emergente na Guiné-Bissau representado por Joseph Turpin afirmado que esses desgraçados “alvos do regime de Luís Cabral” mais não teriam sido do que “vítimas da unidade Guiné-Cabo Verde”. Nessa hora aziaga de exibição de todas as provas disponíveis dos alegados “malefícios totalitários do regime de Luís Cabral” e de todas as justificações possíveis do golpe de força militar perpetrado por Nino Vieira ocupou ademais o projecto de revisão da Constituição bissau-guineense de 1973 um lugar muito especial. Segundo os golpistas, com essa revisão constitucional pretender-se-ia fundamentalmente reforçar os poderes presidenciais do “caboverdiano” Luís Cabral, acrescendo-se a isso a intenção de manter na legislação vigente a pena de morte, alegadamente em nítido contraponto a Cabo Verde, onde o exercício do cargo de Presidente da República era reservado a cidadãos caboverdianos de origem.
Argumentos todavia por demais estranhos e notoriamente falaciosos pois que: a) A pena de morte deixou de existir e de ser aplicada em Cabo Verde desde a época colonial pós-escravocrata, maxime, desde a extensão ao Ultramar português da aplicação do Código Penal português de 1887, não tendo ademais sido reintroduzida, nem no período colonial, nem no período pós-colonial, não podendo, por isso, ser aplicada mesmo em casos excepcionais previstos no mesmo Código Penal e/ou em legislação avulsa do Estado Português ou do PAIGC em estado de guerra, pois que em Cabo Verde não houve lugar à guerra colonial/guerra de libertação nacional. b) Para além de ter nascido no território da antiga Guiné portuguesa e ser assim possível aplicar ao seu caso o princípio do jus soli para efeitos da sua consideração como cidadão originário da Guiné-Bissau, Luís Cabral foi um dos pais-fundadores do Estado soberano e independente da Guiné-Bissau, tal como, aliás, João Bernardo Vieira por cuja voz, enquanto Presidente da Assembleia Nacional Popular, se proclamou unilateralmente a existência desse mesmo Estado). Na verdade, Luís Cabral detém a indesmentível e inalienável condição de um dos mais importantes dirigentes da luta político-militar para a independência conduzida pelo PAIGC enquanto co-fundador e um dos seis membros com assento no Conselho de Guerra e, depois da morte do meio-irmão Amílcar Cabral, como Secretário-Geral Adjunto do PAIGC.
Relembre-se neste concreto contexto que a Guiné-Bissau é o país com o qual Luís Cabral passou a identificar-se inteiramente enquanto guineense filho de pai caboverdiano e mãe portuguesa (por vezes chegando o mesmo Luís Cabral a apresentar o meio-irmão maiis velho Amílcar Cabral, como, por exmplo, no documentário da RTP A Guerra Colonial/Ultramarina/de Libertação Nacional, de Joaquim Furtado, somente como bissau-guineense e não como guineense e caboverdiano, como prefere dizer de forma sistemática o historiador Julião Soares Sousa, ou ainda caboverdiano e guineense como é da minha pesssoal predilecção), apesar de o mesmo Luís Cabral ter praticamente passado e vivenciado a infância e a adolescência nas ilhas de Cabo Verde, onde chegara vindo da Guiné dita portuguesa com apenas um ano de idade. São essa infância e essa adolescência vividas nas ilhas de Cabo Verde (em especial no concelho de Santa Catarina e na cidade da Praia, na ilha de Santiago, e na cidade do Mindelo, na ilha de São Vicente) que lhe enformaram a personalidade e a identidade culturais. Situação em (quase) tudo semelhante à do próprio Amílcar Cabral, que, segundo o raciocínio tribalista e racista de pureza étnico-racial acima referida e defendida por alguns “bissau-guineenses de gema”, com destaque para os golpistas do 14 de Novembro de 1980, nunca poderia almejar ser algum dia Presidente da República da Guiné-Bissau. Raciocínio tribalista e racista que, teria, aliás, consagração constitucional, já durante o consulado de Nino Vieira (tanto no seu período ditatorial, como no seu período pluripartidário) e com continuidade até aos dias de hoje, ao se estipular na Lei Magna desse país africano, naquela que ainda vigora depois de algumas revisões constitucionais, que só podem candidatar-se e almejar ascender ao cargo de Presidente da República os cidadãos guineenses de origem filhos de pais guineenses de origem, isto é, que, por sua vez, deviam ser também de ascendência guineense.
Anote-se ainda que o exercício do mais alto cargo do Estado por parte de Luís Cabral e a sua alegada intenção de reforçar os seus poderes presidenciais com correlativo enfraquecimento dos poderes do Primeiro-Ministro Nino Vieira foram apontados pelos golpistas como o exemplo mais acabado e flagrante da pretensão de continuidade da hegemonia caboverdiana na condução dos destinos da Guiné-Bissau, hegemonia essa que remontaria aos tempos da luta de libertação bi-nacional quando os mais elevados cargos político-militares no partido combatente bi-nacional, designadamente os de Secretário-Geral e de Secretário-Geral-Adjunto e, depois, de Membros da Comissão Permanente do Comité Executivo da Luta (criada em 1970), foram desempenhados pelos “caboverdianos” Amílcar Cabral, Aristides Pereira e Luís Cabral (como se depreende, entendendo-se aqui por caboverdianos tanto os nascidos e provenientes das ilhas, como no caso de Aristides Pereira, como também os filhos de pais caboverdianos criados nas ilhas, mesmo quando nascidos na Guiné, como os irmãos Cabral). Pouca relevância se atribui ao facto de esses “caboverdianos” (por via do jus soli, do jus sanguinius ou da identidade cultural) terem partilhado com os “guineenses de gema” Osvaldo Vieira, João Bernardo (Nino) Vieira e Francisco Mendes (Chico Té) as funções de membros do Conselho de Guerra (a mais alta instância militar do PAIGC, desde a sua instituição no Congresso de Cassacá de 1964) vindo a Comissão Permanente a ser integrada, depois da morte de Amílcar Cabral, em Janeiro de 1973 e por resolução do II Congresso do PAIGC, de Junho de 1973, por Aristides Pereira, Luís Cabral, Francisco Mendes (Chico Té) e João Bernardo Vieira (Nino Vieira) e, por determinação do III Congresso, de Novembro de 1977, por Aristides Pereira, Luís Cabral, Francisco Mendes (Chico Té), Pedro Pires, João Bernardo Vieira (Nino Vieira), Abílio Duarte, Constantino Teixeira (Tchutcho Axon) e Umaró Djaló), cabendo a maioria inicial ao ramo nacional da Guiné-Bissau do PAIGC e aos naturais do actual território do país continental-insular, mas de composição étnico-nacional inicialmente paritária e, depois, de composição étnico-nacional e/ou entre naturais de Cabo Verde e naturais da Guiné-Bissau paritária após a morte de Chico Té em 1978, e, depois da morte do primeiro Comissário Principal (equiparado a Primeiro-Ministro) da Guiné-Bissau, maioritariamente caboverdiana, se nos ativermos meramente à sua composição étnico-cultural segundo o raciocínio que considerava Luís Cabral como caboverdiano, mesmo se, filho de pai caboverdiano e mãe portuguesa, nascido na Guiné e se assumindo perentoriamente como bissau-guineense.
Alegou-se outrossim e com alguma veemência que essa suposta hegemonia caboverdiana vinha alimentando e agravando os tradicionais ressentimentos anti-caboverdianos herdados dos tempos das guerras coloniais de pacificação e da edificação da administração colonial na Guiné dita portuguesa, nas quais, com é sabido, os caboverdianos desempenharam papel de grande destaque, e politicamente exacerbados e extremados pelo governador e comandante-chefe da Guiné Portuguesa, o General António de Spínola, na sua dIta política da Guiné Melhor, de construção e melhoria das infra-estruturas nos mais vários domínios e áreas de actividade alegadamente para a promoção dos guinéus (designação colonial para se referir aos chamados “guineenses de gema”) visando a substituição dos caboverdianos na administração pública colonial e na vida social da Guiné dita portuguesa.
Alguns incidentes, ocorridos particularmente nos dois meses que se seguiram ao golpe de Estado militar de 14 de Novembro de 1980, são, no entanto, de molde a testemunhar os sentimentos dos futuros dirigentes do PAICV, reforçados com outros dirigentes caboverdianos históricos (como José Araújo, Júlio de Carvalho e Honório Chantre), chegados do ambiente repressivo e politicamente esquizofrénico da Guiné-Bissau e imediatamente colocados nas mais altas instâncias da nomenclatura dominante nos poderes partidário e governamental (ao contrário dos seus companheiros e camaradas bissau-guineenses, designadamente o Comandante de Brigada Umaro Djaló e os Primeiros Comandantes Lúcio Soares e Bobo Keita, que, estando em Cabo Verde, tal como os dirigentes caboverdianos radicados na Guiné-Bissau, acima referidos, para participar numa reunião da Comissão de Defesa e Segurança do PAIGC, também se pronunciaram contra o golpe de Estado ninista de 14 de Novembro de 1980). Está-se em crer que os dirigentes supra-nacionais do ramo caboverdiano do PAIGC se sentiam politicamente acossados por parte daqueles que eram doravante desqualificados como autores de um segundo assassinato de Amílcar Cabral, do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde por ele concebido, professado e acerrimamente defendido e do correlativo projecto pós-colonial de união orgânica entre os dois países irmãos oeste-africanos, além de invectivados como aliados dos mentores e dos apaniguados da reacção e da contra-revolução internas tanto na Guiné-Bissau como em Cabo Verde, alegadamente saudosistas do período colonial e inseridas numa contra-ofensiva geral do neo-colonialismo em África. Por isso, o claro e inegável fito de demonstração de força, experimentada politicamente com muito sucesso em face dos acontecimentos de Bissau, mas também na irrupção repressiva dos eventos da (contra) reforma agrária em Santo Antão de 31 de Agosto de 1981 e na reacção estridente e, por vezes, histérica contra algumas denúncias de alegadas violações de direitos humanos ocorridas nessa altura e em tempo imediatamente seguinte feitas por alguns dirigentes do IPAJ (Instituto de Assistência e Patrocínio Judiciários), na altura dirigido por Carlos Veiga, bem como por uma Comissão Cabo-Verdiana de Direitos Humanos sediada em Portugal e integrada por opositores ao regime político monopartidário caboverdiano, como os juristas António Caldeira Marques e Felisberto Vieira Lopes, e antigos dissidentes do partido único bi-nacional, como Eugénio Inocêncio, Helena Lopes da Silva e Jorge Carlos Fonseca, todos ligados a um grupúsculo de extrema esquerda de obediência trotskista denominado GRIS (Grupo Revolucionário de Intervenção Socialista), vindo Jorge Carlos Fonseca a desempenhar um papel preponderante na dinamização dos denominados Círculos Cabo-Verdianos para a Democracia (CCPD), integrados maioritariamente por estudantes universitários caboverdianos radicados em Portugal. O certo é que todas as acima referidas denúncias foram consideradas pelo regime de democracia nacional-revolucionária vigente em Cabo Verde como absolutamente extemporâneas e por ele severamente repudiadas e condenadas.
4. Relembre-se neste contexto que todos os esforços posteriores no sentido de expurgar a sigla e a denominação oficial do ramo bissau-guineense do antigo PAIGC da letra C e da expressão Cabo Verde resultaram completamente infrutíferos. Com efeito, os líderes do Conselho da Revolução saído do golpe de Estado militar de 14 de Novembro de 1980, também mentores do sobrevivente ramo bissau-guineense do PAIGC, posicionaram-se contra a fundação do PAICV, tendo até procedido o Congresso do seu ramo nacional, reunido depois do golpe de força militar de Nino Vieira e da fundação do PAICV, à expulsão sumária das fileiras do PAIGC (certamente em gesticulação e com intuitos meramente simbólicos) de Luís Cabral e de outros dirigentes bissau-guineenses do PAIGC que não compactuaram com o golpe de Estado ou foram alvos do mesmo, mas também (pasmem-se!) de Aristides Pereira, Pedro Pires, Abílio Duarte e outros altos dirigentes caboverdianos considerados implicados na transmutação do ramo arquipelágico-caboverdiano do PAIGC em PAICV, na sua insana e abstrusa pretensão de transferir para Cabo Verde e para o ramo caboverdiano do PAIGC os resultados político-institucionais consumados do golpe de Estado militar ninista, assumida e/ou alegadamente dirigido, como já referido, contra uma suposta hegemonia caboverdiana no ramo bissau-guineense do partido único bi-nacional e no próprio Estado da Guiné-Bissau, bem como no PAIGC no seu todo supra e bi-nacional. Por isso, esses mesmos dirigentes e mentores bissau-guineenses do golpe de Estado militar de Nino Vieira, com especial destaque para Fidélis Cabral de Almada (curiosamente, o mesmo jurista e alto dirigente partidário que, no II Congresso do PAIGC, de Julho de 1973, tinha proposto Nino Vieira para ser o sucessor de Amílcar Cabral como Secretário-Geral do PAIGC e, assim, como Presidente da Comissão Permanente, o mais importante órgão executivo do PAIGC na direcção da luta na Guiné e em Cabo Verde, bem como de Presidente do Conselho de Guerra, o mais importante órgão executivo na condução da luta armada na Guiné dita portuguesa e, depois, na Guiné-Bissau) insistiam na manutenção da sigla e da denominação bi-nacional do seu ramo nacional do antigo PAIGC supra e bi-nacional com argumentos alegadamente de teor histórico e socio-demográfico, nomeadamente i. que o partido foi fundado em Bissau, cidade em que teve a sua sede informal durante a fase inicial da sua existência e a sua primordial base de mobilização política durante toda a fase clandestina do desenvolvimento das suas actividades na chamada Zona Zero e, depois, durante todo o período pós-colonial; ii. que a luta armada de libertação bi-nacional tinha sido conduzida no território da Guiné dita portuguesa e, depois, da República da Guiné-Bissau parcialmente ocupada pelas tropas portuguesas agressoras, graças à obra gloriosa e aos incomensuráveis sacrifícios consentidos pelos combatentes e pelas populações bissau-guineenses, disso tudo resultando a independência política dos dois países irmãos e, finalmente iii. que a maioria esmagadora dos militantes do PAIGC eram bissau-guineenses.
Sendo parcialmente compreensível e justificável sobretudo no que se refere ao papel da luta político-militar conduzida pelo PAIGC no território da actual República da Guiné-Bissau e pelos combatentes bissau-guineensees e pelas martirizadas populações das chamadas zonas libertadas para o paulatino colapso do colonial-fascismo português, para a gradual consciencialização política anti-colonial e anti-fascista dos militares portugueses que viriam a constituir o Movimento das Forças Armadas (MFA) e, assim, para a correlativa eclosão do golpe de Estado militar e da Revolução do 25 de Abril de 1974 e para a consequente e desconcertante aceleração dos processos históricos que conduziram às por vezes atribuladas independências políticas não só de Cabo Verde, mas também de todas as antigas colónias/províncias ultramarinas portuguesas (incluindo Timor-Leste), o argumentário partidário bissau-guineense pareceu todavia ignorar alguns factos de grande relevância histórica, política e jurídica, quais sejam i. que o PAI (denominação original do futuro PAIGC) foi fundado por caboverdianos radicados na Guiné dita portuguesa, ainda que dois dos fundadores, designadamente os irmãos Amílcar e Luís Cabral, tivessem nascido na mesma Guiné dita portuguesa, sendo que o nome de Elisée Turpin teria sido posteriormente agregado aos nomes dos fundadores para obtenção de efeitos política e sociologicamente relevantes para a mobilização do povo da Guiné dita portuguesa para a luta da independência política ao se emprestar uma conotação irrecusavelmente bi-nacional caboverdiano e guineense ao restrito leque dos fundadores do partido que, desde o início, também se fez conhecer como União dos Povos da Guiné e de Cabo Verde. ii. Que a grande maioria dos membros dos órgãos executivos e deliberativos superiores do PAIGC (Comité Central e Bureau Político, até 1970, e Conselho Superior da Luta -CSL- e Comité Executivo da Luta -CEL-, a partir de 1970) era constituída pelos chamados “guineenses de gema”, isto é, “não visivelmente contaminados por sangue caboverdiano”, como diriam os bissau-guineenses mais chauvinistas, tribalistas e racistas , tendo-se chegado, aliás e à semelhança do Conselho de Guerra, à paridade étnico-nacional (“caboverdianos étnicos” versus “guineenses de gema”) na Comissão Permanente do Comité Executivo da Luta (CEL) do PAIGC, a partir do II Congresso do mesmo partido de luta; iii. que a parte final GC (Guiné Cabo Verde) da sigla e da denominação partidária bi-pátrida somente faria sentido para um partido efectivamente bi-nacional no sentido da sua agregação de dois povos distintos e tendo ademais a sua jurisdição sobre dois territórios igualmente distintos. Nesta óptica, o PAIGC ter-se-ia definitivamente claudicado enquanto partido bi-nacional ao ter sucumbido ao golpe de Estado de Nino Vieira, de 14 de Novembro de 1980, perpetrado na Guiné-Bissau e com resultados políticos, institucionais e jurídico-constitucionais tangíveis pronta e severamente restringidos ao território da Guiné-Bissau; iv. Foi o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 a causa político-institucional imediata e inevitável da declaração de independência do ramo caboverdiano do PAIGC e da sua transformação em partido nacional caboverdiano, tendo ademais a resolução política de fundação do PAICV sido decidida pelos órgãos do partido estatutariamente competentes, designadamente a Conferência Nacional de Cabo Verde do PAIGC, a qual consabidamente se erigiu em Congresso Constitutivo do novo partido político caboverdiano. Outrossim, argumentaram os mentores e teóricos partidários caboverdianos que era sumamente inadmissível, à luz das normas do Direito aplicável às relações entre países e Estados independentes e soberanos e os respectivos partidos (tenham eles o estatuto de partidos únicos ou não), manter o nome de um país e de um Estado independente e soberano na sigla e na denominação de um partido (único ou não) de um país e de um Estado estrangeiros, como efectivamente e doravante era a Guiné-Bissau em relação a Cabo Verde. Com a normalização das relações entre os dois Estados afro-lusófonos lograda na Cimeira de Maputo dos Cinco Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e consubstanciada no estabelecimento de relações diplomáticas a nível de embaixadores não residentes, a questão da sigla e da denominação oficiais do antigo ramo bissau-guineense do extinto PAIGC foi remetida para o silêncio e o limbo dos não mais ditos e/ou falados.
Talvez receosos de uma qualquer equiparação com os executados protagonistas de um macabro passado ocorrido num aziago vinte de Janeiro de uma amaldiçoada noite em Conacri, ainda pairasse nos espíritos dos golpistas de Bissau o famigerada PAIG, enquanto formato amputado de um PAIGC capitulacionista em face das tramas da PIDE-DGS e das manobras demagógicas consubstanciadas nas políticas de sorriso e sangue do General Spínola com vista à decapitação do PAIGC mediante a liquidação física e/ou e a captura do seu líder máximo Amílcar Cabral e a neutralização política da sua ala político-diplomática e combatente caboverdiana.
Estamos em crer que tarde ou cedo r ter-se-á todavia de se render à evidência dos factos e finalmente reinará o bom senso político: a Guiné-Bissau é, enquanto palavra e expressão, igualmente uma criação de Amílcar Cabral para designar a nova comunidade política de seres humanos novos porque assumida e orgulhosamente africanos e na plena titularidade de todos os seus direitos e deveres de cidadania e na posse de uma terra livre, independente e moldada segundo os soberanos ditames da vontade popular de todos os seus filhos. Bem merece, pois, essa nova comunidade política soberana constar do nome e da designação oficial do partido herdeiro e sucessor no seu território nacional e nas suas diásporas do partido-movimento de libertação bi-nacional que a deu à luz enquanto nação africana forjada na luta armada. Quem tem medo do PAIGB (Partido Africano da Independência da Guiné-Bissau) ou maxime do PAIGC-GB (todavia somente como sigla por alta consideração a razões históricas relevantes muito caras aos cidadãos da República da Guiné-Bissau, contudo acrescidas da sigla significativa da nítida e inequívoca localização da jurisdição política do partido histórico bissau-guineense) e, por extenso, Partido Africano da Independência da Guiné-Bissau (assim, clara e indubitavelmente sem nenhuma menção do nome do país soberano que é Cabo Verde)? O que emperra a aceitação do que parece por demais evidente. sendo, ademais, adveniente de factos históricos irreversíveis resultantes do malogro pós-colonial do projecto de união orgânica dos nossos dois países oeste-africanos e afro-lusófonos numa pátria africana una, progressista e solidária, malogro, aliás, estranhamente saudado ou, pelo menos, acolhido com alívio pela generalidade das gentes dos nossos dois países tempestivamente libertados do jugo colonial-fascista português por mor da conjugação dos seus esforços e energias e da concretização no fértil terreno da luta político-militar, da luta diplomática, da luta política clandestina e da luta abertamente legal e de massas do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde criado pela genialidade político-estratégica do imortal Amílcar Cabral?
5. Ainda que tivesse podido conseguir manter o regime de partido único por mais dez anos depois do fracasso e da falência pós-coloniais do princípio da unidade Guiné/Cabo Verde e do projecto de união orgânica entre os dois países africanos e tivesse persistido na defesa da identidade africana de Cabo Verde, doravante optando por uma crescente inserção política no conjunto dos países africanos de língua portuguesa denominados Os Cinco, no CILSS (Comité Inter-Estados de Luta contra a Seca no Sahel), na CEDEAO (Comunidade dos Estados da África Ocidental), na OUA (Organização da Unidade Africana), no Movimento dos Não-Alinhados, no Grupo Africano da ONU e de outras agências internacionais e organizações Intergovernamentais, o regime político de partido único socializante protagonizado pelo PAICV pôde e, de certo modo, soube envolver essas duas premissas ideológicas essenciais e esses dois pressupostos básicos da sua identidade de Partido Africano da Independência de Cabo Verde em compromissos vários, com vista à manutenção da ajuda pública ao desenvolvimento de proveniência ocidental, à descompressão do autoritarismo revolucionário do regime de partido único, mitigando-o cada vez mais nas suas repercussões ditatoriais de cariz autoritário e (quase) nunca totalitário (a contrário do veiculado no documentário Uma Aventura Crioula, amplamente difundido nas últimas campanhas eleitorais de 2020), valorização da crioulidade caboverdiana, à reconciliação com as elites letradas claridosas e neo-claridosas e com o legado histórico-cultural dos nativistas, às eventuais mobilização e/ou neutralização política dos jovens quadros recém-regressados dos estudos universitários e potencialmente adversos do ponto de vista político-ideológico. Foi o que, aliás, intentámos modestamente demonstrar no texto “Síndromas de orfandade continental, indagação identitária e funcionalização político-ideológica nos discursos identitários cabo-verdianos” (publicado no jornal online Liberal e, depois, com ligeiras alterações no título e no conteúdo publicado como separata em Cabo Verde–Três Décadas Depois (número temático especial da revista Direito e Cidadania), bem como no prosopoema “Veracidades” (ainda parcialmente inédito) e no prosopoema “Verdades” (publicado no site/na revista electrónica Buala).
6. A título de desassombrado e descomplexado balanço, pode-se pois dizer que o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde se demonstrou, historicamente, como o mais eficaz instrumento de catarse cultural e de libertação política do povo caboverdiano, para depois se desvanecer definitivamente e ao correlativo projecto de pátria africana bi-nacional nos horizontes geograficamente longínquos do “reajustamento” de João Bernardo (Nino) Vieira. Reajustamento, cujos fautores eram, tal “os bárbaros” do poema de Kavafis, muito aguardados, ainda que esconjurados como implicados numa odiosa “segunda morte” de Amílcar Cabral, de que “esses outros”, “os suspeitos de costume”, seriam os responsáveis directos.
“Reajustamento”, aliás, antecipado por Onésimo Silveira em artigo de clarificação da sua dissidência com o projecto cabralista/paigcista de unidade Guiné-Cabo Verde, publicado, em 1974, no jornal francês Le Monde Diplomatique.
“Reajustamento” na sua verdadeira expressão e no seu sentido mais profundo de golpe de Estado contra o “caboverdiano” (ou se se quiser, o caboverdiano/guineense, o caboverdiano nascido na Guiné ou o guineense de origem cabo-verdiana) Luís Cabral, personalidade histórica cujo nome passou a identificar a expressão política primeira do regime vigente depois da conquista da plena soberania política e a deposta governação da Guiné-Bissau, de cujo Conselho de Estado (jurídico-formalmente e jurídico-constitucionalmente entendida como chefia colectiva do Estado bissau-guineense) era o Presidente e de cujos Governo e ramo nacional do partido único bi-nacional era considerado o chefe efectivo e o responsável máximo no território nacional bissau-guineense, sem prejuízo da existência e do gradual agravamento da luta interna entre diferentes alas e facções partidárias bissau-guineenses conduzidas, o mais das vezes, na sombra das intrigas e dos conluios políticos por diferentes chefes carismáticos da luta armada de libertação bi-nacional, com destaque para Francisco Mendes (Chico Té), antigo Comissário Principal do Governo da Guiné-Bissau-equiparado a Primeiro-Ministro - e Presidente do Conselho Nacional da Guiné do PAIGC, falecido em 1978 em circunstâncias assaz estranhas e nunca totalmente esclarecidas, e João Bernardo Vieira, celebrizado como Nino Vieira ou pelo agnome balanta Kaby na luta político-armada de libertação bi-nacional, também denominada guerra da independência da Guiné e de Cabo Verde, e que, pelo menos nominalmente e na condição de sucessor de Francisco Mendes (Chico Té), desempenhava por alturas do seu golpe de Estado militar as funções de Comissário Principal do Governo da Guiné-Bissau e Presidente do Conselho Nacional da Guiné do PAIGC, depois de ter anteriormente desempenhado cumulativamente as funções de Presidente da Assembleia Nacional Popular e de Comissário de Estado (equiparado a Ministro) da Defesa.
“Reajustamento” nos seus assumidos e correlativos objectivos de manter no (ou de fazer alcandorar ao) poder e de reforçar o papel de quase todas as outras proeminentes figuras do regime de partido único vigente, desde que indubitavelmente bissau-guineenses (mesmo se mestiços, como Vasco Cabral (que inicialmente refugiado na Embaixada da Suécia em Bissau por se ter oposto ao golpe de Estado ninista, depois aderiu ao mesmo golpe de força desferido contra Luís Cabral) ou de origem caboverdiana (ditos burmedjos), dando-se até o caso de um alto dirigente político-militar caboverdiano originário das ilhas meso-atlânticas, Manuel - Manecas- Santos, ter-se tornado figura proeminente do Conselho da Revolução e do novo Governo, depois de ter optado por aderir ao golpe de estado ninista, contra o qual tinha inicialmente resistido, pondo-se em fuga.
“Reajustamento” afinal pouco diferente nos seus propósitos (explícitos ou inconfessados) e na sua motivação mais profunda daquele que, ainda em plena luta armada de libertação bi-nacional e com a activa participação das forças coloniais de ocupação e de outras forças mais obscuras, se engendrou para a neutralização e a eliminação dos “elementos caboverdianos” da Direcção político-militar do PAIGC.
“Reajustamento”, enfim e literalmente significativa de reajustamento da utopia, outrora libertadora, da pátria africana supra-nacional a um presente pós-colonial de indefectível expectativa e ansiosa esperança na inadiável maturação e na definitiva consolidação do Estado nacional independente e soberano tanto em Cabo Verde como na Guiné-Bissau.
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