O caso Amílcar Cabral. Apontamentos críticos a propósito do princípio e do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde - Segunda Parte
Ponto de Vista

O caso Amílcar Cabral. Apontamentos críticos a propósito do princípio e do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde - Segunda Parte

Pode-se, pois, concluir que não subsistia em Amílcar Cabral qualquer confusão entre, por outro lado, a necessidade e a exigência estratégicas da unidade de acção político-militar entre guineenses e caboverdianos, numa primeira fase, e da sua eventual unificação orgânica futura numa pátria africana progressista e solidária, numa segunda fase, com, por outro lado, o amalgamento das identidades nacionais dos dois países africanos emergentes. Pelo contrário, as duas entidades são sempre distinguidas quer no plano da nomeação (“Guiné e Cabo Verde”), quer ainda nos planos programático e estratégico da concepção do seu processo de luta para a independência, quer ainda no que respeita à sua caracterização social, política, económica e cultural e à dissecação das suas estruturas sociais e da singularidade das suas dinâmicas próprias, apesar da sua irmanação pela sua comum condição colonial, pelo seu comum estado de subdesenvolvimento crónico e pelo seu almejado desenvolvimento pós-colonial no quadro de um comum destino africano. Uma breve incursão por textos cabralianos como aquele em que empreende uma breve análise da estrutura social da Guiné e de Cabo Verde ou em que faz a análise de alguns tipos de resistência permitem tirar essas conclusões.

SEGUNDA PARTE

II

A MODERNA TRANSFIGURAÇÃO NACIONALISTA DO SLOGAN NATIVISTA  E PAN-AFRICANISTA “A ÁFRICA AOS AFRICANOS”

Municiados com as reflexões leninistas sobre o imperialismo, enquanto estádio superior do capitalismo especialmente analisado nas suas manifestações financeiras  e monopolistas de estado e na sua expressão dominadora, espoliadora  e opressiva dos povos colonizados e semi-colonizados na forma de dominação imperialista, e as fundamentadas lições e ilações nelas ínsitas sobre a questão colonial e a questão nacional, todas devida e criticamente assimiladas por Amílcar Cabral; munidos com as consequentes conclusões referentes ao pan-africanismo político saído do Congresso de Manchester de 1945 pela voz de Kwame Nkrumah, com o veemente anti-colonialismo da Conferência de Bandung, com as experiências chinesa, vietnamita, argelina e cubana referentes à condução de guerras de libertação nacional e social de longa duração; armados ademais com os ideários nova-largadistas de consciencialização política e de catarse cultural de matriz nacionalista pan-africanista, os modernos apóstolos e émulos do nacionalismo caboverdiano encetariam, a partir dos anos quarenta e cinquenta do século passado, a transfiguração do slogan nativista “A África aos Africanos” (como já referido, proclamado por Eugénio Tavares durante o seu exílio norte-americano para a conclamação dos seus conterrâneas para a solução dos interesses maiores da sua terra por via da autonomia político-administrativa no quadro do Estado português e do seu império colonial, desejavelmente reorganizado nos ditames do direito de auto-determinação de populações autóctones ditas civilizadas), despindo-o todavia das vestes, das conotações, dos contornos e dos conteúdos semânticos que remetiam o termo africano para uma regionalidade geográfica e cultural luso-ultramarina radicada nas ilhas e/ou nas terras firmes do império colonial português situadas em África, na Ásia e na Oceânia.

A conclamação proto-nacionalista e a proclamação pan-africanista de Eugénio Tavares e dos demais  nativistas caboverdianos serão plenamente assumidas pelos modernos nacionalistas pan-africanistas caboverdianos, devidamente nutridos de propósitos de inequívoca ruptura anti-colonial e de integral reivindicação da identidade nacional crioula do povo caboverdiano, incluindo das suas matrizes afro-negras e de todas as suas facetas, vertentes e dimensões afro-crioulas, numa coerência de funcionalização política da identidade crioula peri-africana do povo caboverdiano que, já no período pós-25 de Abril de 1974, também avassalaria e submergiria as derradeiras reminiscências do regionalismo político adjacentista/regionalista neo-claridoso, constante do opúsculo Cabo Verde e o seu Destino Político, de Henrique Teixeira de Sousa, editado pelo autor no imediato pós-25 de Abril, em Junho de 1974.

A identidade antropológico-cultural caboverdiana é, por sua vez, entendida como emanando de uma cultura nacional, auto-referente, conquanto dominada pela cultura colonial portuguesa na medida em que a dominação colonial portuguesa mantém necessariamente dominado o processo histórico do povo que, no bojo da sociedade colonial-escravocrata erigida nas ilhas de Santiago e do Fogo, inventou a crioulidade enquanto expressão da mestiçagem e da fusão culturais das culturas afro-negras e euro-ocidentais chegadas no século XV ao antropologicamente virgem e deserto Novo Mundo representado pelo arquipélago atlântico peri-africano, aprisionando o nascente povo afro-crioulo caboverdiano na sua subalterna inserção nas malhas opressivas do sistema colonial e sufocando todas as potencialidades do pleno desenvolvimento da sua cultura, na medida em que mantinha sufocadas as suas forças produtivas e respectivas sinergias motrizes e energias criadoras.

Deste modo, considera Amílcar Cabral que no contexto do sistema colonial vigente por mais de cinco séculos em Cabo Verde, sobrevém uma contradição fundamental antagónica entre a nacão-classe caboverdiana, constituída por todas as classes, camadas e categorias sociais arquipelágicas portadoras da identidade crioula nativa característica das ilhas caboverdianas, e a classe colonial, integrada pelos raros/escassos colonos europeus e pelos representantes portugueses do poder colonial (incluindo nos seus aparelhos ideológicos, com destaque para a Igreja católica, apostólica, romana), portadores, disseminadores, veiculadores e defensores da imposição sem partilha nos espaços oficiais do poder colonial da cultura estrangeira portuguesa, como dito anteriormente, historicamente tornada dominante e sempre re-actualizada no seu estatuto colonial privilegiado e opressivo. Nesses seus papéis e funções opressivos, os representantes do poder e da cultura coloniais aliam-se estreitamente aos letrados e funcionários públicos nativos, em especial àqueles colocados nos  mais altos escalões sociais, por isso muito propensos ao assimilacionismo colonial  no seu entendimento e na sua interpretação de Cabo Verde como um Portugal crioulo e trespassados pelo ideário de branqueamento da cultura e da identidade crioulas caboverdianas, como, aliás, sustenta de modo convincente e de forma veemente A. Punói (pseudónimo de Manuel Duarte) no texto acima referido intitulado “Cabo Verde e a Revolução Africana”. Como constituíram substância fundamental e intuito expresso e deliberado desse texto, a um tempo panfleto  e manifesto político-culturais, dirigido ao conjunto do povo das ilhas, a contestação e a abjuração das seculares políticas coloniais de assimilação cultural do povo caboverdiano ao povo português e a  denúncia dos projectos de  reformismo colonial  levados a cabo no conjunto do império colonial português (como, por exemplo, a extinção do estatuto do indigenato, o fim dos trabalhos forçados, o fomento da industrialização colonial e o incremento  das obras e dos trabalhos  públicos), sendo que algumas das reformas coloniais foram pensadas para serem aplicadas especialmente ao arquipélago caboverdiano, como o estatuto de adjacência político-cultural e administrativa de Cabo Verde a Portugal, anunciado, em 1962, durante a sua longa visita  de um mês efectuada a todas as ilhas de Cabo Verde (incluindo a (quase) desabitada  ilha de Santa Luzia) por Adriano Moreira, então  (de 1960-1962)  Ministro do Ultramar num dos governos do Presidente do Conselho António de Oliveira Salazar e do Presidente da República Américo de Deus Rodrigues Tomás.  Como é sabido,  o estatuto de adjacência trazido na bagagem política de Adriano Moreira e oferecido às  elites caboverdianas e às populações das ilhas foi rejeitado  por essas mesmas elites na altura constituídas como forças vivas e lideradas pelo engenheiro Humberto Duarte Fonseca por  considerarem demasiado tardia e politicamente extemporânea a sua apresentação pelo Ministro português do Ultramar.  

A reivindicação da liberdade de se apossar soberanamente do processo histórico, como realça o discurso cabraliano, será doravante entendida como sinónima tanto do resgate da dignidade africana do colonizado, por demais vilipendiada no seu direito básico de existir segundo  a sua própria historicidade identitária e os seus próprios modelos culturais,  como também de todos os pressupostos políticos e culturais da produção desalienada das condições de emergência de um ser humano reconciliado com as suas próprias  história e cultura e liberto do estado de subjugação política, do atraso endémico, da miséria, do medo, do sofrimento e da ignorância  resultantes  pela dominação colonial e pelo subdesenvolvimento crónico das ilhas.

III

A FUNDAMENTAÇÃO E A CONSTRUÇÃO CABRALIANAS DO PRINCÍPIO DA UNIDADE GUINÉ-CABO VERDE E A FASE COLONIAL DA SUA APLICAÇÃO ENQUANTO UNIDADE DE ACÇÃO POLÍTICA ENTRE GUINEENSES E CABOVERDIANOS

Embora defensor e advogado convicto do princípio da unidade Guiné/Cabo Verde, a postura de Amílcar Cabral sobre esta candente questão distinguia-se da de muitos líderes africanos e, até, de alguns militantes e responsáveis políticos guineenses, em cuja óptica Cabo Verde quiçá mais não fosse (ou deveria ser) do que, por assim dizer, um prolongamento meso-atlântico, mestiço e árido das verdes e opulentas ilhas negro-africanas dos Bijagós (como se pode constatar numa entrevista do bissau-guineense de origem caboverdiana Gil Fernandes constante do dossier publicado pela revista Afrique-Asie sobre a proclamação da República independente e soberana da Guiné-Bissau).

A comunidade de interesses e a complementaridade (geográfica, económica, política, cultural e geo-estratégica) entre a Guiné e Cabo Verde parecem ser os principais argumentos arrolados por Amílcar Cabral para justificar a unidade orgânica num único partido-movimento (ou, maxime, numa Frente Unida) de libertação bi-nacional dos dirigentes, responsáveis,  militantes, combatentes e povos dos dois territórios subjugados pelo colonialismo português na luta anti-colonial e a futura unidade orgânica numa  pátria africana  una, solidária e progressista entre os povos dos dois territórios tempestiva e oportunamente constituídos em Estados-nação independentes e soberanias.

Outrossim, essa justificação encontrava legitimidade na unidade histórica efectivamente existente entre os dois territórios coloniais portugueses até 1879, ano em que ocorreu o célebre Desastre de Bolor, nome por que ficou conhecido o massacre por  guerreiros felupes de tropas expedicionárias idas do arquipélago meso-atlântico  e constituídas maioritariamente por caboverdianos. Com efeito, foi na sequência do Desastre de Bolor, quase coincidente com a extinção oficial, em 1878, da sociedade colonial-escravocrata nas ilhas de Cabo Verde, que se dera início ao processo de desanexação político-administrativa da possessão portuguesa continental oeste-africana em relação às ilhas de Cabo Verde, vindo depois a culminar, já nos fins do século XIX, na instituição de uma nova Província Ultramarina portuguesa directamente dependente de Lisboa e administrada por um Governador nomeado pelo Terreiro do Paço reinol/metropolitano, em lugar do até então existente Distrito Militar e do respectivo Governador de Distrito dependente do poder colonial ultramarino sediado na ilha de Santiago de Cabo Verde, primeiramente na cidade da Ribeira Grande, depois na vila/cidade da Praia de Santa Maria. 

O argumentário unificador de teores unitaristas e federalistas e inspiração cabraliana quis-se também fundar nos laços de sangue e nas afinidades culturais efectivamente existentes entre as populações dos dois territórios coloniais, mesmo se difusas, mas de todo o modo  irrefutáveis, como bem o atesta as variantes historicamente diferenciadas da  língua crioula comum falada  nos dois  territórios coloniais portugueses,  embora de forma socio-linguisticamente diferenciada, pois que vigorando a) num,  em Cabo Verde,  como língua materna de todos os caboverdianos, mesmo se insularmente dialectizada; b) no outro,  na Guiné dita portuguesa como i.variante adoptada pelos caboverdianos radicados concomitantemente com a sua variante insular materna, ii, língua/variante  materna dos guineenses de origem caboverdiana  e dos guineenses ditos de gema desde há muito urbanizados, tais os chamados grumetes. por um lado, e por outro lado, sobretudo com a disseminação da luta político-armada desencadeada pelo PAIGC, como língua veicular e de inter-comunicação informal entre os diferentes grupos étnicos da Guiné dita portuguesa, mais tarde tornados bissau-guineenses.

Os laços de sangue e as afinidades linguístico-culturais entre  caboverdianos  e guineenses são certamente derivados da circunstância de a maior parte dos contingentes de escravos trazidos para o cativeiro insular caboverdiano terem tido origem na Costa da África Ocidental, na altura comummente conhecida como Senegâmbia ou Rios da Guiné do Cabo Verde e em parte da qual se viria a constituir a entidade político-administrativa colonial conhecida como Guiné portuguesa, a qual viria a transmutar-se na entidade/comunidade  política independente e soberana  proclamada como República da Guiné-Bissau. Chegados ao território virgem. ignoto e hostil que era o Cabo Verde quatrocentista e compulsivamente inseridos como mão-de-obra escravizada na nascente sociedade colonial-escravocrata que se projectou nas então vigentes  Cartas Régias de 1462, 1466 e 1472, mas também na posse das respectivas línguas étnicas oeste-africanas, os primeiros povoadores negros  da ilha de Santiago e, um pouco mais tarde, da ilha do Fogo, viram-se obrigados a criar e a inventar um instrumento de interlocução para se comunicarem entre si, para tanto fazendo uso de rudimentos lexicais do idioma do senhor escravocrata e povoador branco para fazer nascer uma nova linguagem das ilhas (como diria Baltasar Lopes da Silva) fundada numa nova gramática e compreensível por todos os interessados.   Nasce assim um pidgin que, sucessivamente enriquecido, se desenvolve como o idioma materno das pessoas escravizadas já nascidas nas ilhas, vindo depois a contaminar os senhores e outros homens livres brancos e os escravos recém-chegados e compelidos a radicar-se nas ilhas. Deste modo, e concomitantemente com  o surgimento de novas expressões culturais propiciadas pelas necessidades de adaptação à sociedade colonial-escvravocrata e às especificidades ecológicas sahelo-insulares do arquipélago de Cabo Verde, o idioma crioulo torna-se a manifestação mais visível e expressiva da crioulidade caboverdiana em formação.

A tudo isso acresce ainda o facto de na antiga Guiné portuguesa encontrar-se radicada uma importante minoria crioula de origem primacialmente caboverdiana, cuja história remonta aos primórdios do estabelecimento de trocas comerciais com os chamados Rios da Guiné do Cabo Verde e da colonização da Guiné dita portuguesa e se entronca na radicação dos tangomaos e lançados originários das ilhas nos acima referenciados Rios da Guiné do Cabo Verde e no exíguo território costeiro que constituía a chamada Guiné portuguesa e integrada por feitorias fortificadas chamadas praças (como, por exemplo, Cacheu, Bissau, ZIguinchor). Elucidativas a este propósito são as obras Cabo Verde - Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460-1478), Os Portugueses nos Rios da Guiné (1500-1900), Migrações nas Ilhas de Cabo Verde e Crioulo-Surto e Expansão, todas de António Carreira.

Ademais, e como também se demonstra no livro O Mestiço e o Poder, de Alfa Djaló, os contactos multisseculares entre os migrantes das ilhas e as populações dos territórios que viriam a constituir a Guiné dita portuguesa levaram desde há séculos à formação de comunidades humanas e categorias sociais guineenses falantes do crioulo e de forte impregnação cristã e influência cultural ocidental, como ilustrado, por exemplo, nos chamados grumetes, que depois viriam a constituir-se como forte esteio do nativismo guineense organizado na Liga Guineense, por vezes opondo-se aos portugueses e aos seus auxiliares caboverdianos e aliando-se a grupos étnicos tradicionais da Guiné (como, por exemplo, os pepéis) na sua resistência contra as guerras coloniais de subjugação e de ocupação efectiva dos territórios africanos.

Tendo consciência que a luta armada era (como, aliás, veio a demonstrar-se) a única via possível para liquidar um colonialismo português obsoleto e retrógrado, trespassado por um racismo serôdio, obnubilado por um fascismo obscurantista e pelo orgulho grandiloquente e chauvinista em passadas glórias imperiais, manietado pelo atraso económico e pelo subdesenvolvimento crónico, pelos poderosos interesses dos colonos localizados, em especial, em Angola e Moçambique, e pela sua incapacidade congénita em enveredar por uma via neo-colonial de dominação imperialista e, por isso mesmo, absolutamente avesso a cedências, a compromissos e a negociações para a obtenção pacífica da independência política das suas colónias/províncias ultramarinas, Amílcar Cabral sentiu-se e viu-se efectivamente confrontado com duas realidades incontornáveis, designadamente:

a) Os constrangimentos estruturais do arquipélago caboverdiano, os quais tornavam praticamente inviável a condução solitária de uma luta político-militar de longa duração para a obtenção da independência política, mesmo se considerando que seria factível, senão totalmente viável, a condução de uma luta político-armada vitoriosa nalgumas ilhas, designadamente nas ilhas de Santiago e de Santo Antão, como inequivocamente comprovado na Acta da Reunião dos Responsáveis do PAIGC sobre a Situação  da Luta em Cabo Verde, realizada em Dacar,  de 17 a 20 de julho de 1963.  

b) A quase inexistência ou, melhor, a flagrante insignificância na Guiné dita portuguesa de uma pequena burguesia intelectual e burocrático-administrativa nativa que pudesse liderar e conduzir com sucesso o povo guineense nos caminhos de uma moderna guerra/luta político-armada de longa duração.

Pelo contrário, o que se verificava era a existência nesse território africano continental de uma pequena burguesia maioritariamente originária das ilhas de Cabo Verde (e/ou constituída e/ou acrescida de descendentes de originários das ilhas meso-atlânticas), a qual exercia uma fortíssima influência na vida político-administrativa, económica, social e cultural da colónia portuguesa, que, no passado, foi considerada colónia da colónia insular porque administrativamente dependente do arquipélago atlântico peri-africano. Sintomático desse estado das coisas e da preponderância burocrático-administrativa islenha na Guiné dita portuguesa é o facto de os primeiros romances de temática guineense terem sido escritos pelos caboverdianos Fausto Duarte (com destaque para os romances  Auá e O Negro sem Alma) e Belmiro Augusto Duarte (designadamente do romance Taibatá), bem como de muitos estudos de história, antropologia cultural e sobre os usos e costumes (incluindo de direito consuetudinário) relativos aos povos guineenses serem da autoria de caboverdianos, designadamente de André Álvares de Almada, André Donelha (ou Dornelhas), João José António Frederico, João Barros Frederico (também chamado João Frederico Barros), António Barbosa Carreira e Artur Augusto da Silva (o rico percurso deste intelectual caboverdiano das sete partidas do mundo merece ser melhor conhecido, como a seguir intentamos fazer nas brevíssimas anotações biográficas colhidas na Wikipédia  e inseridas numa nota do presente ensaio (1).     

Deste modo, ter-se-á afigurado a Cabral que só a unidade de acção entre, por um lado, o sector nacionalista da pequena burguesia caboverdiana e, por outro lado, a incipiente pequena burguesia e as grandes massas populares guineenses tornaria possível a condução no solo da Guiné dita portuguesa de uma luta armada de longa duração para a obtenção da independência desse território africano e/ou dos dois territórios em tempos simultâneos  ou consecutivos, com o início das guerras de independência em Angola e Moçambique e o posterior desencadeamento da luta armada em Cabo Verde. Outrossim, e se levarmos em conta que mesmo quando encarou a possibilidade da obtenção da independência dos dois territórios africanos por via negocial e pacífica e com prévia  instauração das liberdades cívicas e democráticas (incluindo de criação de partidos políticos) para todos os guineenses e  caboverdianos, tal como exarado no Memorando do PAIGC de 1960 Dirigido ao Governo Português, Amílcar Cabral pugnou pela unidade entre os dois futuros Estados independentes e soberanos, tendo certamente em conta o seu passado histórico comum e a necessidade de capitalização e optimização das suas possibilidades de sobrevivência e de desenvolvimento como nações independentes. Nesta óptica, poder-se-ia dizer que, para o caso de Cabo Verde, Amílcar Cabral não teria integralmente ultrapassado a tradicional e muito arreigada descrença das elites e das populações caboverdianas nas capacidades de sobrevivência do famigerado arquipélago da fome sem uma qualquer ancoragem externa, agora procurada na terra firme africana de onde proveio parte importante dos antepassados escravizados dos caboverdianos.

Dissemos de propósito integralmente ultrapassado, na medida em que, por outro lado, o grande estratega caboverdiano-guineense admitiu igualmente a possibilidade de uma independência solitária das ilhas afro-atlânticas, caso o seu povo assim o entendesse, quer numa perspectiva pacífica e por via negocial com o Governo português, quer como resultado da unidade de acção entre guineenses e caboverdianos na luta diplomática e na luta político-armada na terra firme africana e nas ilhas.

Deste modo, a démarche da reafricanização dos espíritos, propugnada por Amílcar Cabral e cultivada desde os tempos das suas vivências lisboetas com os seus antigos companheiros do Centro de Estudos Africanos (designadamente Francisco José Tenreiro, Mário Pinto de Andrade, Marcelino dos Santos, Alda do Espírito Santo, Agostinho Neto e Noémia de Sousa), onde germinou e, já nessa época, também defendida de forma indirecta por Manuel Duarte (por exemplo, no ensaio “Cabo-Verdianidade e Africanidade”, datado de 1952 e publicado em 1954 na revista coimbrã Vértice) deixava de se restringir somente ao campo espiritual da desalienação cultural anti-assimilacionista e da valorização das manifestações culturais ancoradas na co-matriz afro-negra da crioulidade caboverdiana, isto é, naquilo que Dulce Almada Duarte denominou a dimensão africana da cultura caboverdiana. Doravante e mediante a unidade de acção dos nacionalistas dos dois países num ou em mais movimentos de libertação bi-nacional e em torno do projecto de unidade orgânica dos dois territórios numa futura pátria africana comum, a pugna pela reafricanização dos espíritos alarga-se à busca e à recuperação da margem africana da história e da identidade cultural e do destino político de Cabo Verde.

Pode-se, pois, concluir que não subsistia em Amílcar Cabral qualquer confusão entre, por outro lado, a necessidade e a exigência estratégicas da unidade de acção político-militar entre guineenses e caboverdianos, numa primeira fase, e da sua eventual  unificação orgânica futura numa pátria africana progressista e solidária, numa segunda fase, com, por outro lado, o amalgamento das identidades nacionais dos dois países africanos emergentes. Pelo contrário, as duas entidades são sempre distinguidas quer no plano da nomeação (“Guiné e Cabo Verde”), quer ainda nos planos programático e estratégico da concepção do seu processo de luta para a independência, quer ainda no que respeita à sua caracterização social, política, económica e cultural e à dissecação das suas estruturas sociais e da singularidade das suas dinâmicas próprias, apesar da sua irmanação pela sua comum condição colonial, pelo seu comum estado de subdesenvolvimento crónico e pelo seu almejado desenvolvimento pós-colonial no quadro de um  comum destino africano. Uma breve incursão por textos cabralianos como aquele em que empreende uma breve análise da estrutura social da Guiné e de Cabo Verde ou em que faz a análise de alguns tipos de resistência permitem tirar essas conclusões.

Por outro lado, o Programa (Mínimo e Maior) do PAIGC é muito elucidativo a este respeito, na medida em que nele são claramente perceptíveis:

a) Uma clara distinção entre os dois países quanto ao objectivo imediato das várias formas de luta elencadas, designadamente a obtenção da independência de cada um países separadamente com base essencialmente na mobilização das respectivas forças e energias nacionalistas e patrióticas e alavancada na respectiva unidade política nacional e na união orgânica bi-nacional das respectivas forças políticas nacionalistas, depois reforçadas e consolidadas num quadro orgânico bi-nacional, nos  primeiros Estatutos do Partido aprovados em 1960, de teor clara e inequivocamente federalista com a previsão de um Congresso e de uma Direcção federais e de Conferências  Nacionais e Direcções Nacionais para cada um dos territórios em luta. Estamos em crer que foram as exigências da luta político-armada e de estrita clandestinidade que explicam a alteração dos Estatutos do Partido e a adopção de estruturas orgânicas unitárias e centralizadas, características de partidos nacionais, como o Comité Central, o Bureau Político, o Conselho de Guerra e o Secretariado e, a partir de 1970, o Conselho Superior da Luta, o Comité Executivo da Luta, a Comissão Permanente, o Conselho de Guerra, o Secretariado, vários Comités Nacionais para as Zonas Libertadas da Guiné e Comités de Coordenação  clandestinos nas zonas sujeitas à administração portuguesa (como a Zona Zero na Guiné dita portuguesa e o Comité de Coordenação de Cabo Verde, e nos países de emigração de caboverdianos e guineenses, como, por exemplo, o Comité de Coordenação de Portugal). 

b) A projecção da construção de uma pátria africana una, solidária e progressista que no futuro pudesse unir organicamente os dois países e pudesse capitalizar e optimizar a utilização dos seus recursos, das suas sinergias e energias criadoras para uma fase ulterior à conquista das independências nacionais e à constituição dos dois povos em Estados-nação soberanos.

A pátria africana una, solidária e progressista é, assim, pensada como uma comunidade política sempre situada num tempo posterior à emergência dos Estados independentes e soberanos nacionais e um seu resultado jurídico-constitucional, pois que produto da vontade popular dos respectivos povos escrutinada em consulta popular (referendo) e/ou ratificada pelos respectivos órgãos máximos de soberania política (Assembleias Nacionais Populares), depois eventualmente reunidas numa Assembleia Suprema do Povo da Guiné e de Cabo Verde (como almejado e antevisto por Amílcar Cabral na sua última Mensagem de Ano Novo (de Janeiro de 1973), por isso considerada o seu Testamento Político).  

Impressiona, neste contexto, o cuidado posto pelo Programa do PAIGC à volta da questão nacional na Guiné e em Cabo Verde e das especificidades de cada um dos povos constitutivos do campo social de mobilização e de  apoio  políticos e  base de recrutamento dos militantes do PAIGC. 

Para Cabo Verde é defendido um conceito de unidade nacional que preserva a autonomia administrativa de cada ilha e as suas peculiaridades no quadro da integridade política da nação caboverdiana, cultural, étnica e linguisticamente homogénea. É essa homogeneidade cultural e étnica que é, aliás, considerada como primacialmente plasmada no idioma crioulo (na altura ainda designado por dialecto crioulo, tanto no Programa Maior do PAIGC, como também pela generalidade dos linguistas e filólogos, como, por exemplo, Baltasar Lopes da Silva e Dulce de Oliveira Almada-aliás, Dulce Almada Duarte), cujos estudo, defesa e preservação como condição do seu desenvolvimento e redução a uma escrita padronizada e normalizada também se propugna.

No caso da Guiné, ressalta a defesa da preservação das especificidades culturais e sociais de cada uma das suas etnias (ou povos), contra quaisquer pruridos alegadamente anti-tribalistas, salvo no que respeita às eventuais propensões das respectivas elites políticas e sociais para a discriminação dos integrantes de outras etnias ou grupos étnico-culturais e/ou o separatismo político, visando-se em última análise  a construção de um estado-nação com base na nação africana forjada na luta, isto é, numa comunidade política unitária de natureza simbiótica e alicerçada no crioulo bissau-guineense e, em certa medida, na língua portuguesa bem como  num amplo pluralismo étnico-cultural e linguístico. 

Circunstâncias relativas à necessidade de afirmação no plano internacional da luta conduzida pelo PAIGC e de reafirmação da correcção do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde bem como à antecipação da futura pátria africana unida terão levado a que, por vezes, Cabral, quiçá extasiado pela prova mais convincente da pertinência do princípio da unidade e do projecto da união orgânica que seriam os sucessos práticos da luta político-armada conduzida pelo partido-movimento de libertação bi-nacional por ele fundado, se referisse amiúde a “povo da Guiné e Cabo Verde”, “o nosso povo africano da Guiné e Cabo Verde”, “o nosso povo africano na Guiné e Cabo Verde”, “o nosso povo na Guiné”, “o nosso povo em Cabo Verde”, “a nossa terra, a Guiné e Cabo Verde”, “os filhos da Guiné e Cabo Verde” e, mais raras vezes, “a nossa nação africana”, sem que ficassem distinguidas as duas entidades nacionais de forma clara, suficiente e inequívoca, sendo todavia certo que era à Guiné-Bissau que se referia quando com indisfarçável orgulho falava de e exaltava a nossa nação africana forjada na luta armada.

Cúmulo do tratamento indistintivo das identidades próprias da Guiné-Bissau e de Cabo Verde e dos respectivos povos é um texto/intervenção oral de Amílcar Cabral no Seminário de Quadros de 1969 (“Alguns Princípios do nosso Partido. Partir da Realidade, ser Realistas”), no qual, quiçá, antecipando, claro que prematuramente, o território que deveria vir a perfazer a pátria africana unida, solidária e progressista por ele almejada e resultante em tempos vindouros da união orgânica entre a Guiné e Cabo Verde, se refere a um país, “uma terra pequenina de cerca de 40.000 km2”, supostamente composto por uma parte continental e por uma parte insular, designadamente as ilhas Bijagós e as ilhas de Cabo Verde .

Ilustrativo ainda desse tratamento indistintivo são, por exemplo, as expressões “da Guiné e Cabo Verde”, “na Guiné e Cabo Verde” e similares, nas quais, despojada do determinativo próprio para cada uma  delas, as duas entidades parecem absorver-se ou fundir-se numa única e nova entidade (“a Guiné e Cabo Verde”) e que frequentemente transparecia na denominação Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, e não da Guiné e de Cabo Verde, como seria mais correcto grafar-se e dizer-se em português), sendo essa circunstância de todo em todo irrelevante em crioulo, língua franca e veicular dos militantes e combatentes guineenses e caboverdianos, língua por assim dizer co-oficial (para além do e com o português), e coexistente com o francês corrente nos países vizinhos da rectaguarda como língua de trabalho, e, por isso, idioma no qual foram proferidas as palestras do Seminário de Quadros, depois traduzidas e publicadas em português e em francês como parte das Obras Escolhidas de Amílcar Cabral.

Não obstante o que acabou de ser escrito, cabe realçar que a concepção da unidade em Amílcar Cabral é profunda e assumidamente dialéctica-materialista porque dinâmica e concebida em função da realidade que se pretende transformar. Ela pressupõe a luta de contrários e, assim, o reconhecimento da identidade originária dos entes/seres em interacção e transformação dialéctica. Escreve Cabral no texto paradigmático da sua argumentação a favor do projecto da unidade entre a Guiné e Cabo Verde (Unidade e Luta”) que se as coisas fossem iguais ou homogéneas nunca se poria a questão de unidade. “Só se une o que é diferente”, diz/escreve o pensador e estratega político.

Simultaneamente e querendo fundamentar o projecto da unidade com argumentos de natureza histórica colhidos na existência da antiga unidade administrativa que a Guiné (como já se referiu, historicamente uma diminuta parcela das actuais Guiné-Bissau e Casamança conformadas de feitorias comerciais e praças (centros urbanos costeiros), como, por exemplo, Cacheu, Bissau e Ziguinchor) e Cabo Verde constituíram desde o século XVI primeiramente no âmbito da Capitania Geral de Cabo Verde, depois no quadro da Província Ultramarina (por um curto período, também designada Prefeitura) de Cabo Verde e Dependências, até às consequências desagregadoras do Desastre de Bolor de 1878 (vide a propósito João Manuel Nobre de Oliveira, obra citada), e, quiçá, reportando-se à configuração étnica da base social de mobilização do PAIGC, constituída pelos grupos étnicos guineenses (incluindo os de origem e configuração crioulas caboverdianas) e dos caboverdianos de todas as ilhas e diásporas, escreve o líder histórico que, na verdade, não se colocaria um problema de unidade entre a Guiné e Cabo Verde na medida em que a Guiné e Cabo Verde seriam “um só”, do ponto de vista histórico, das origens humanas essenciais das populações e, até, dos laços de sangue...

Não deixa, todavia, o “simples africano que quis cumprir o seu dever e saldar a sua dívida para com os seus povos e viver a sua época” de salientar que os eventuais conflitos existentes entre caboverdianos e guineenses não teriam o seu núcleo essencial nos verdadeiros e genuínos interesses das populações dos dois países, mas radicariam nas dissensões entre as pequenas burguesias caboverdiana e guineense em disputa de regalias  e posições sociais privilegiadas no quadro da administração colonial portuguesa estabelecida na Guiné.

Não deixam, assim, de chamar a atenção os esforços do líder carismático do PAIGC em minimizar os problemas de carácter étnico-político no seio do partido bi-nacional que fundou e conduziu à notoriedade internacional.

Ainda assim, aquando da apresentação aos órgãos dirigentes do PAIGC, em Março de 1972, do plano colonial-fascista para o seu assassinato, Amílcar Cabral não se ilude, nem a si próprio, nem aos outros. Nos termos exarados no famigerado (e macabro) plano (postumamente publicado em Amílcar Cabral, Nação Africana Forjada na Luta), “os guineenses autênticos” foram instados a não só se desfazer do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde, como também dos próprios caboverdianos presentes na luta político-militar e diplomática conduzida a partir das duas Guinés (a Guiné-Conacri e a Guiné-Bissau). Em lugar disso, deveriam os novos dirigentes do partido, doravante exclusivamente guineense e denominado PAIG (Partido Africano da Independência da Guiné) ou FULGB (Frente Unida de Libertação da Guiné-Bissau, segundo documentos da PIDE posteriores ao macabro e historicamente trágico evento que foi o asassinato de Amílcar Cabral), encetar conversações imediatas com as autoridades colonial-fascistas portuguesas no sentido da obtenção de uma autonomia interna progressiva “sob a bandeira portuguesa” que, posteriormente, poderia levar a Guiné a uma independência nominal e fictícia no quadro de uma Comunidade Lusíada” a constituir.

Na óptica dos seus adversários e detractores bissau-guineenses (e, curiosamente, também dos seus adversários e detractores caboverdianos, como no caso de José Leitão da Graça), o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde mais não seria do que uma forma moderna e contemporânea de reciclagem e de reformulação da antiga hegemonia caboverdiana sobre as populações da Guiné dita portuguesa e os seus recursos e um subterfúgio premeditadamente elaborado para perpetuar a sede de expansionismo para os antigos Rios da Guiné do Cabo Verde da pequena burguesia crioula caboverdiana, a qual se sentiria alegadamente estrangulada na exiguidade do território caboverdiano. Tal como viriam a argumentar os protagonistas do “Movimento de Reajustamento” (isto é, do golpe de Estado) de 14 de Novembro de 1980, a unidade Guiné-Cabo Verde representaria, pois, uma verdadeira, genuína e autêntica unidade do cavalo e do cavaleiro.

Nesse contexto pejado de controvérsias, os dirigentes do PAIGC, com detaque para o seu líder Amílcar Cabral, preferiram cultivar a flexibilidade e a meabilidade terminológicas junto dos seus aliados africanos, progressistas e do campo socialista, numa óptica em que interessava sobremaneira valorizar a unidade de acção entre guineenses e caboverdianos no terreno concreto da luta político-armada e diplomática. Relembre-se que, por essa altura, a África se debatia com graves problemas e inéditos desafios na construção de Estados-Nação a partir de conglomerados territoriais etnicamente diversos, senão díspares, cujas fronteiras foram arbitrariamente traçadas na Conferência de Berlim e ratificadas pelas guerras de ocupação colonial e de subjugação dos povos africanos  denominadas guerras de pacificação. Para os africanos, a questão parecia ser, por assim dizer, irrelevante. Tanto mais que o caso do PAIGC consubtanciado no projecto de  união orgânica de um território continental africano a um território insular peri-africano acrescia ao conhecido caso da Tanzânia (união da continental-africana Tanganica, antiga colónia alemã e, depois,  britânica, na sequência da derrota do II império alemão na Primeira Guerra Mundial),   ao insular Zanzibar governado por senhores árabes vindos do Oman e habitado por uma população assaz singular do ponto de vista identitário, porque resultante da mestiçagem cultural e da miscigenação biológica entre árabes e negro-africanos  e das quais  resultou a língua swahili, posteriormente disseminada para a costa oriental africana vizinha). O Presidente da República Unida da Tanzânia, Julius Nyerere, gozava de grande prestígio interno e de muita credibilidade internacional e, depois da constituição da Tanzânia, foi elevado a Presidente do Partido da Revolução (Chama Cha Mapunduzi, em swahili) resultante da posterior unificação da sua TANU (Tanganica African National Union) com o Afro-Shirazi Party, o qual liderara a insurreição da maioria zanzibarenha dominada, extinguiu o protectorado britânico  e o sultanato de matriz omanita e instaurou no arquipélago um Estado republicano, independente e soberano,  unificando-o logo depois com a Tanganica no seio da Tanzânia e mantendo para a entidade insular um estatuto de semi-autonomia política, diga-se que em tempo (quase) concomitante com as declarações das independências políticas dos países continentais vizinhos, como o Quénia, a Tanganica, a Zâmbia ou a Somália.  

Na verdade, para muitos africanos a união orgânica futura dos dois territórios ultramarinos portugueses, depois previsivelmente elevados ao estatuto de Estados independentes e soberanos, parecia uma via imprescindível para colmatar as fraquezas e insuficiências advenientes da sua exiguidade territorial, ao mesmo tempo que pareciam complementar-se, pelo menos nos tempos imediatamente pós-coloniais, os recursos naturais e demográficos da Guiné e as capacidades técnicas e administrativas dos quadros caboverdianos.

Por outro lado, porque ainda destituída de uma configuração claramente delineada, a projectada pátria africana una, solidária e progressista e as suas componentes nacionais foram envolvidas num espesso nevoeiro terminológico (quase de teor metafísico) por forma a ultrapassar a contradição entre a adesão ao princípio da unidade Guiné-Cabo Verde como condição de militância nacionalista no PAIGC, o único movimento de libertação verdadeiramente activo no terreno político-militar e diplomático, e o carácter muito nebuloso da futura pátria africana bi-nacional.

No caso da Guiné dita portuguesa, a ambiguidade terminológica do PAIGC deveria fazer face quer às políticas divisionistas das autoridades colonial-fascistas que, no quadro da política spinolista da Guiné Melhor, investiam no passado histórico comum dos dois países para ressaltar os ressentimentos dos chamados guinéus contra o papel desempenhado pelos caboverdianos nas guerras de pacificação (isto é, de subjugação dos povos africanos sublevados e de ocupação efectiva do território que  viria a constituir a Guiné portuguesa) e na administração colonial dessa mesma Guiné portuguesa. A tanto acrescia a emergência de uma minoria guineense crioula, de origem caboverdiana e, colocada, em regra numa situação de privilégio adveniente da sua condição histórica de elite do poder. Essa minoria emergente parecia debater-se com vários problemas identitários, os quais pareciam oscilar entre i. ser luso-ultramarino no status quo colonial vigente; ii. considerar-se caboverdiano de origem e de identidade tal como os pais ou ascendentes nascidos nas ilhas e emigrados para a Guiné dita portuguesa ou iii. assumir-se como um grupo étnico-cultural bissau-guineense, que, apesar de se distinguir pela sua identidade crioula e conduta dita urbana e pretensamente civilizada (“de praça”) dos demais grupos étnicos bissau-guineenses, maioritariamente negro-africanos e portadores de identidades culturais  de feições tradicionais islamizadas e/ou mágico-animistas,  e, por isso mesmo, merecer inteiramente a denominação cabrianos, estaria integralmente empenhado com na defesa dos interesses das gentes da sua terra guineense de que era natural e em que se encontrava plenamente radicada e com a qual se identificava de corpo inteiro. Nesta óptica, para esses importantes sectores dos crioulos guineenses, comummente denominados burmedjos (mestiços), o princípio e o projecto de unidade Guiné-Cabo Verde surgiam quase como uma tábua ontológica de salvação, tanto mais que a sua posição social de categoria social essencialmente de serviços e a sua origem e identidade culturais estariam primacialmente salvaguardadas nesse quadro unitário.

Anote-se que os cabrianos (entendidos como guineenses de origem cabo-verdiana ou, se se quiser, caboverdianos da Guiné dita portuguesa e, depois, Guiné-Bissau) são um caso muito específico de descendentes de caboverdianos nascidos e crescidos em terras outras,  especialmente africanas (de todo o modo, estrangeiras em relação ao território de origem dos seus pais e/ou ascendentes, mesmo se integradas num mesmo império colonial). Dotados historicamente e na actualidade da História de um forte sentido identitário que alguns, por vezes, consideram como liderante na construção de uma moderna identidade nacional guineense, não só pelos efeitos indutores advenientes da sua radicação essencialmente pequeno-burguesa e urbana, como também pelo seu papel na estruturação da unidade nacional da Guiné-Bissau mediante a disseminação do crioulo guineense e de modernas formas de expressão da  identidade cultural proto-nacional guineense, essa minoria nacional guineense é a única “comunidade diaspórica caboverdiana” (quando se considera a nação caboverdiana como sendo uma comunidade transfronteiriça, trans-estatal e global historicamente constituída do povo das ilhas e diásporas) que, dominando como quase todas as outras, a língua oficial e/ou dominante de comunicação do território de que é natural, conservou a língua materna dos antepassados caboverdianos para dotá-la de características próprias, autonomizantes de uma variante que, em condições propícias, pôde ascender ao estatuto de língua franca e, depois, de língua veicular e de unidade nacional da Guiné-Bissau. Esse papel do crioulo guineense ter-se-ia mantido intacto, independentemente das controvérsias sobre se a sua origem seria insular-caboverdiana, e, mais especificamente, radicada  na ilha de Santiago (como defendeu o historiador António Carreira e continua a defender um número importante de linguistas eminentes, como, por exemplo, o alemão Juergen Lang e o caboverdiano Manuel Veiga) ou genuinamente guineense, isto é, situada na antiga praça de Cacheu (como defendeu, por exemplo, o malogrado Professor guineense Benjamim Pinto Bull). Mesmo se se considerar a sua ligação genética às ilhas, o circunstancialismo de ser locutor nativo de um crioulo próprio da Guiné, porque língua materna de um agrupamento humano moldado por circunstâncias históricas específicas da Guiné, também radica o cabriano definitivamente na sua terra de nascimento, permitindo-lhe reivindicar uma identidade própria, originariamente guineense porque integrada na multiplicidade de línguas e etnias que proliferam na actual Guiné-Bissau, ademais diferenciada daquela variante representada pelos seus antepassados caboverdianos. Deste modo, a sua eventual dupla pertença adquire contornos próprios e que podem ser  dissecados nos seguintes termos: de integrante da comunidade política guineense independente e soberana e  de um grupo étnico guineense (os burmedjus e/ou crioulos), de que ele constitui a matriz e a componente principal, e,  assim, evidenciando-se como um importante, senão imprescindível,  actor  de uma nação guineense ainda em construção e consolidação para além  da comunidade política que foi e continua a ser a nação africana forjada na luta, na  muito flexível terminologia  de Amílcar Cabral, e com base nela.

Deste modo, pôde a denominação por que é conhecida (cabrianos) tornar-se susceptível de os distinguir tanto dos demais guineenses como também dos caboverdianos naturais das ilhas sahelianas, chamados cabuncas ou badios numa denominação criada pelos próprios cabrianos (no sentido de guineenses de origem caboverdiana e/ou caboverdianos da Guiné) para designarem os naturais de Cabo Verde, incluindo aqueles de há muito radicados na chamada Guiné  portuguesa e na depois oficialmente denominada Guiné-Bissau) e dos países de radicação das demais diásporas caboverdianas. Os demais bissau-guineenses em geral continuam a denominar cabrianos a todos os caboverdianos de cultura e/ou aos bissau-guineenses de origem caboverdiana, isto é, aos bissau-guineenses filhos ou descendentes de caboverdianos, em fidelidade total ao significado do termo cabrianos (na tradução literal para o crioulo guineense do termo caboverdiano em português e, com variações basilectais, em crioulo caboverdiano acrolectal).  

Entendido nesta última acepção, o termo/conceito caboverdiano poder-se-ia aplicar  não só aos irmãos Amílcar Cabral e Luís Cabral mas também a  Rafael Barbosa (presumivelmente  um dos participantes das reuniões de criação do PAI, de cujo Comité Central foi Presidente, e um dos fundadores do MLGC-Movimento de Libertação da Guiné, do MLGC-Movimento de Libertação da Guiné e de Cabo Verde e da Frente Unida constituída entre o MLGC e o PAI) e Henri Labery (fundador de um movimentos de libertação nacional da Guiné sediados em Dacar e, mais tarde, da FLING - Frente para a Libertação e a Independência Nacional da Guiné, e, com outros partidos e movimentos políticos guineenses e caboverdianos, incluindo o PAIGC, da depois extinta FUL), pois que ambos os pais de Amílcar Cabral e de Rafael Barbosa são naturais de Cabo Verde, sendo que um dos pais dos demais citados (a mãe portuguesa no caso de Luís Cabral e o pai francês de Henry Labery) não é nem guineense, nem caboverdiano.

Anote-se outrossim que os casos de Amílcar Cabral e de Rafael Barbosa se diferenciam sobremaneira, na  medida em que, embora sendo ambos naturais da Guiné dita portuguesa, Amílcar Cabral teve uma longa vivência caboverdiana, tendo concluído os estudos primários e secundários em diferentes  ilhas de Cabo Verde, designadamente nas ilhas de Santiago e de São Vicente. depois de uma primeira  infância passada na Guiné (Bafatá, Geba e Bissau), enquanto que Rafael Barbosa viveu toda a sua vida na Guiné dita  portuguesa com estadias esporádicas nos países vizinhos, e, depois, na Guiné-Bissau. até à sua morte ocorrida em Dacar,  

Para o caso de Luís Cabral deve-se também ter em conta os seguintes aspectos diferenciadores: Se a a mãe portuguesa de Luís Cabral, Adelina Correia Almeida,  pode ser considerada luso-caboverdiana insular de cultura, pois que desde tenra idade se radicou no interior da ilha de Santiago na casa da esposa do seu tio e madrinha de  Juvenal Cabral, a  grande proprietária rural Simoa dos Reis Borges Correia Almeida,   no caso de Henri  Labery,  o pai francês estava radicado no Senegal, sujeito a uma cultura inteiramente francesa, mesmo se em permanente inter-acção com as culturas étnicas senegalesas, em especial com a cultura e a língua wolofes. Foi no seio dessas culturas que, sem perder a sua matriz crioula outorgada pela mãe e pela família caboverdianas radicadas na Guiné dita portuguesa e com a   qual se  identificava, Henri Labery também parece ter crescido. O curioso é que no caso de Luís Cabral parecem ter-se invertido os termos típicos de uma situação colonial: por um lado, a mãe portuguesa caboverdianizou-se culturalmente por desde muito pequena se ter impregnado da cultura crioula rural das classes possidentes e latifundiárias caboverdianas. Por outro lado, o pai de Luís Cabral, o negro e preto retinto caboverdiano Juvenal Cabral, parece ter-se culturalmente aportuguesado para além do normal veiculado em Cabo Verde pela cultura portuguesa, dominante no sistema colonial vigente em Cabo Verde e exclusiva no sistema de ensino da colónia/província ultramarina portuguesa, na medida em que com apenas oito anos de idade foi levado para o Portugal continental e metropolitano para frequentar o Seminário de Viseu. Regressou a Cabo Verde já jovem adulto para continuar os estudos no Seminário-Liceu de São Nicolau que abandonou para emigrar para a Guiné portuguesa, território oeste-africano que na altura se encontrava nos primórdios da implantação e da consolidação do colonialismo clássico português, após sangrentas guerras de subjugação dos povos negro-africanos e de ocupação efectiva dos seus territórios conhecidas como guerras de pacificação colonial.

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