Memórias de Vila Nova, “meu eterno berço”
Ponto de Vista

Memórias de Vila Nova, “meu eterno berço”

Sem dar conta, guardei no meu inconsciente muitas memórias da vivência comunitária entre as pessoas em Vila Nova, nomeadamente na primeira rua em que a minha família residiu nesse bairro, perto do então campo de futebol, onde hoje está edificada a escola primária local e a placa desportiva. Foi nessa rua que cresci e me fiz adolescente.

São várias as memórias do convívio entre pessoas (adultos, crianças e entre estes) e em diferentes momentos. Eram, sobretudo, brincadeiras, jogos, ver televisão (na altura, a grande novidade) em conjunto, na rua, ou em casa de vizinhos, busca de (auto) afirmação, primeiras trocas de olhares e amores de adolescência, que permaneceram quase que adormecidas no meu inconsciente, sem que eu desse por elas, pelo menos de forma tão evidente. Entretanto, do ano passado a esta parte, vivenciei algumas situações de perda de pessoas próximas que vieram a alterar esse status quo, passando essas memórias para o meu consciente.

A primeira situação foi a morte prematura de um amigo da minha geração. Na altura, além de rememorar passagens da nossa vida de criança e adolescente naquela rua, essas memórias tornaram mais presentes em mim o sentimento de pertença a um espaço-comunidade ligado indelevelmente à periferia desta cidade. Lamentei a sua morte prematura e fiquei a pensar no percurso de vida e trajectória tão diferenciada que nós, crianças e adolescentes que nasceram e cresceram na periferia desta cidade, ou de qualquer outra, acabamos por ter, custando, muitas vezes, a nossa própria vida.  

Este sentimento de pertença a esse espaço-comunidade fez-me ver, mais uma vez, o quão pesada era e é a herança de nascer e crescer nos subúrbios de uma cidade. Nós, portadores desta herança, sofremos muito mais as consequências dos problemas e estigmas sociais e, como se não bastasse, temos ainda menos oportunidades de singrar na vida. Para lograr este intento, temos de batalhar muito mais do que outras crianças e adolescentes que não nasceram e cresceram na periferia urbana e que se valem de posições e redes de relações já estabelecidas para, amiúde, com menos esforço, galgarem etapas e ascenderem a posições e cargos na sociedade e nas instituições.

Um sistema tão bem montado que, de quando em vez, coopta pessoas da periferia (não obstante para o sistema essas pessoas continuarão a ser sempre da periferia ainda que procurem mostrar ou ostentar novos traços ou padrões de consumo que evidenciam a “acensão social”), sobretudo jovens sedentos de ascensão social ou de alcançar o poder, em troca de determinados serviços, para dar a ilusão de alguma democraticidade, particularmente no que se refere à igualdade de oportunidades.  

A segunda situação por que passei foi a morte do meu pai, o que me trouxe à mente e me fez valorizar ainda mais (esta é a maior relíquia que podemos guardar dos nossos entes queridos que partem para a eternidade) um conjunto de memórias de convívio e momentos com ele, particularmente do tempo em que morámos nessa rua, correspondente à minha infância e adolescência.

A terceira situação teve lugar no passado dia 16 de Maio, quanto tive conhecimento do passamento de Diki Sogeru (Vila Nova é um bairro tradicionalmente de açougueiros), pessoa que aprendi a admirar em criança ouvindo as pessoas mais adultas a se referirem a ele como um praticante do boxe e que depois veio a construir a sua casa e a morar na mesma rua da minha família. Homem afável e com uma capacidade rara de interagir e tratar tão bem as pessoas independentemente da idade. Não é à-toa que era conhecido e chamado pelos mais jovens de Papa Diki. Paz a bu alma “nha armon”, como carinhosamente chamava os seus amigos. Vila Nova nos une. É e será sempre nosso “eterno berço”!

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