Quase cinquenta anos de Cabo Verde como estado soberano capturado pela corrupção e pelo domínio de uma oligarquia avarenta e egoísta, que despreza o equilíbrio social e que, por isso, incrementa as desigualdades sociais, a pobreza, o desemprego, a violência urbana e a privatização dos serviços públicos básicos, como a saúde e a educação, tudo em benefício dos seus interesses, das suas empresas e dos seus lucros.
Para finalizar esta série de artigos de opinião com os quais “conversei ” com o célebre escritor e pensador Nicolau Maquiavel, quando ele escreveu o quão perigoso é libertar um povo que prefere a escravidão.
Relembrar que:
1. Os quinhentos anos de dominação colonial portuguesa deixou no DNA e no subconsciente do povo cabo-verdiano o medo e a opressão;
2. Quase cinquenta anos de Cabo Verde como estado soberano capturado pela corrupção e pelo domínio de uma oligarquia avarenta e egoísta, que despreza o equilíbrio social e que, por isso, incrementa as desigualdades sociais, a pobreza, o desemprego, a violência urbana e a privatização dos serviços públicos básicos, como a saúde e a educação, tudo em benefício dos seus interesses, das suas empresas e dos seus lucros;
Com efeito, o tema deste artigo é as mazelas do Sistema Nacional de Saúde (SNS) bem retratada na carta de 7 de abril de 2021 do Sindicato da Administração Pública - SINTAP e do Sindicato dos Médicos de Cabo Verde – SINMED a que tive acesso.
No entanto, para avaliar o nosso sistema de saúde, imaginei um Estado Utópico (Cabo Verde) cuja população é composta por 100 cidadãos.
Considerei dois extremos:
1. Um Estado Liberal que vê a saúde como um mercado, fazendo lucro sobre a desgraça do cidadão:
Neste tal Estado Ultra liberal, onde impera o capitalismo selvagem no campo da saúde, todas as pessoas deste Estado apanharam a covid 19 e, em consequência da crise ficaram sem dinheiro para o tratamento da saúde, a saúde como mercado, o Estado não se preocupou com os cuidados de saúde da sua nação e esta desapareceu, com mortes em massa das pessoas.
Que consequência para o Estado: (1) o Estado não tem mais a produção económica e a respetiva captação das receitas públicas; (2) o Estado desaparece por não ter mais a nação;
2. Um Estado Social que vê a saúde como um direito:
Da mesma forma, todas as pessoas deste Estado apanharam a covid 19 e, em consequência da doença ficaram sem dinheiro para o tratamento da saúde, mas o Estado tomou para si os custos de saúde e recuperou a saúde da sua nação. Que consequências? O Estado com a nação saudável, produção económica abundante e captação das receitas públicas;
Entre estes dois extremos, onde se situa o SNS de Cabo Verde? Analisando a tabela da taxa moderadora dos cuidados da saúde, tendo em conta o salário mínimo do cabo-verdiano, é insofismável que o SNS caminha para a situação do mercado como regulador do sistema, o lucro sobre a desgraça do paciente.
Vou citar o caso a seguir que testemunhei, mas poderia citar um mar de casos que demonstram as limitações graves do nosso sistema de saúde. Não concordando com esta tese, faça, então, um pequeno inquérito junto da população e terá respostas desanimadoras.
Com efeito, é um paradoxo ver governantes desta terra, visitando estruturas físicas de saúde e depois vangloriar dos avanços do nosso sistema de saúde ou quando entidades estrangeiras visitam Cabo Verde fazerem eco com os governantes sobre o desenvolvimento do nosso sistema de saúde – que absurdo!
O caso concreto que presenciei:
Em 2015, estando eu hospitalizado no Hospital Agostinho Neto, juntamente com o João (nome fictício) que recebeu a comunicação médica de que dentro de quatro dias uma perna ser-lhe-ia amputada, em decorrência de uma ferida que não sarava!
João, um jovem de vinte anos, ficaria aleijado! Então, todos nós, os doentes da mesma enfermaria ficamos alarmados com a situação e aconselhamos o João a “fugir” do HAN e a procurar a cura da ferida da sua perna em Dakar, Senegal!
Face à aflição da minha doença, não vi mais o João e fiquei sem saber o que havia acontecido com o João.
Em 2018, estando eu a passear numa das praias do interior de Santiago, um jovem forte que estava a jogar futebol com os colegas gritou o meu nome. Não estando eu a reconhecer o jovem, João disse: “Amândio, é mi João ki staba internado djunto cu bô, môs”.
Dito e feito, João fugiu do HAN e dirigiu-se a Dakar, onde a ferida, que daria a amputação da sua perna, foi curada e João é hoje um homem normal!
João é um homem normal que ficaria aleijado se não ouvisse o meu conselho e dos demais doentes.
Mas vejamos as contradições do nosso sistema, bem como as raízes do problema do SNS:
a) Um deputado nacional com uma habilitação académica de 4ª classe do ensino primário, que na vida apenas aprendeu o “blá blá blá”, tem um salário direto e indireto cinco vezes mais o salário de um médico no sistema público de saúde!?
b) Em plena era digital, em que se pode participar numa reunião no Japão, estando em Cabo Verde, o orçamento do Estado de Cabo Verde prevê 600.000.000$00 para as deslocações dos governantes e apenas 35.000.000$00 para a formação do pessoal da saúde!?
c) A classe médica em Cabo Verde não vê o seu salário atualizado há vários anos e nem é respeitado o plano de carreira médica e o salário que auferem quando comparado com o salário dos médicos no estrangeiro ou mesmo com o salário do Ministro da Saúde é uma miséria de salário;
d) “…estamos falar de pessoas que se entregam à causa com muita dedicação, com muito sacrifício e que por vezes não lhes é dada a devida possibilidade de uma estabilidade profissional que merecem nem garantias de uma melhor proteção para os diversos riscos a que estão sujeitos.” In carta de 7 de abril de 2021 da SINTAP & SINMED
e) Existem outras queixas do pessoal da enfermagem e do pessoal auxiliar;
É assim, Nicolau, que concordo consigo, como é perigoso libertar um povo que prefere a escravidão, pois é este mesmo povo que vota esmagadoramente a favor daqueles que são contra os seus interesses!
Praia, 14 de novembro de 2021
Amândio Barbosa Vicente
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