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A história de vida de um repatriado
Ponto de Vista

A história de vida de um repatriado

Cuidar dos repatriados que, por o serem, não deixaram de ser cabo-verdianos, é próprio de um país humanista como o nosso e vai ao encontro da índole hospitaleira do nosso povo. Além disso, os repatriados não têm de ser um peso para a nossa sociedade… lembremo-nos, por exemplo, que muitos falam a língua do país onde viveram, e falar uma língua estrangeira é sempre uma mais-valia num país, como o nosso, onde a indústria do turismo está em acelerada ascensão. Assim sejam criadas condições que não lancem os repatriados na marginalidade social.

As esplanadas dos cafés e dos restaurantes da Cidade da Praia são espaços onde, no convívio daqueles que se encontram, não faltam as histórias de vidas, muitas delas, inspiradoras porque feitas de superação, ainda que possam ser tristes.

Proponho-me, hoje, escrever sobre uma dessas histórias, contada na primeira pessoa pelo seu protagonista. O encontro foi casual, no restaurante onde ambas estávamos a jantar. A refeição acabou por ser prolongada, saboreando uma cerveja crioula, pois havia muito para contar… é a história de vida de um repatriado.

Saiu ainda criança de Cabo Verde, para um país europeu onde cresceu e se fez homem, mas as coisas não correram bem. O percurso foi interrompido da forma mais brutal, porque ninguém deseja isso… o repatriamento para o país de origem. Muitos anos haviam passado, pelo que foi preciso passar por uma exigente adaptação e a necessária aprendizagem para sobreviver no confronto com preconceitos motivados pelo estigma do repatriamento.

No seu regresso escolheu ir ter com os familiares, que o receberam. Mas todas as outras coisas, na adaptação às novas circunstâncias de vida, foram muito difíceis: apoios sociais não havia, encontrar trabalho foi difícil, recuperar o domínio da língua crioula demorou tempo… obstáculos que foi superando, com coragem, não baixando nunca os braços!

Tempos que não foram dias de sol, antes bastante nublados… começou por lavar carros, até surgir um trabalho mais estável. A Cabo Verde, diz, deve um agradecimento profundo por ter despertado nele a consciência das oportunidades que deveria ter aproveitado nos anos em que esteve na Europa. Ao verificar as necessidades concretas do nosso país, sentiu que, caso os tivesse aproveitado, poderia agora ajudar mais neste imenso esforço de desenvolvimento que entre nós acontece nos diversos sectores de atividade.

Aliás, reconhece que, se fosse já adulto quando emigrou, a sua história de vida teria sido, certamente, bem diferente. Crescer na nossa terra, faz-nos ter uma visão da realidade diversa daquela que dela têm as pessoas que crescem nos países desenvolvidos. Porém é preciso tentar ganhar o tempo perdido, lançar mãos à obra! Foi isso que fez o homem com quem converso.

Refere, com agrado, que, pelo menos por cá não experimenta qualquer espécie de discriminação, nem a polícia alguma vez o olhou com desconfiança. Sente-se um homem livre! Porém, tem conhecimento de alguns a quem o sentimento de rejeição, a dificuldade de integração, os levou a pensar no suicídio. O sentir-se solidário com situações como estas, fá-lo mudar o tom de voz para lamentar não exista, entre nós, uma política de acolhimento aos repatriados com alguma consistência.

“Infelizmente, também entre nós se apoiam mais as pessoas quando estão no topo”. Nem de propósito: mal acabou este desabafo, quando surge, deambulando pela rua, um homem, ainda jovem, com um problema mental. Alguém, ao ver o estado daquele jovem, comentou: “já foi um artista e agora está neste estado…” E pergunto eu: não existe na capital deste país uma rede de apoio para resgatar da rua as pessoas atingidas pelo infortúnio, a fim de lhes ser proporcionado um tratamento adequado? Na verdade, muito há ainda a fazer no que às políticas de ação social diz respeito, não apenas no que se refere ao acolhimento, apoio e integração de repatriados.

Voltando à conversa com o meu interlocutor… para além dos referidos obstáculos: nem todos os repatriados terem, à chegada o apoio da família; terem perdido o domínio do crioulo; dificuldades em encontrar trabalho, motivadas, muitas vezes por preconceitos que também se fazem sentir no convívio social ou reintegração social, deixou algumas sugestões, não teóricas, mas forjadas na sua experiência de vida e em casos similares que conhece. Sugestões que me motivaram a escrever este artigo, convicto de que poderá ele alertar a quem de direito para a necessidade de definir políticas sociais acertadas e assertivas. Está em jogo a vida de homens e mulheres que, reencontrados com as suas capacidades e conscientes da sua dignidade, poderão juntar-se aos que trabalham pelo bem comum da nossa sociedade. Todos não somos de mais!

Quando lhe perguntei quais, na sua opinião, deveriam ser as medidas prioritárias a implementar pelas estruturas de índole social do Estado, elencou as seguintes:

- Apoio no acesso ao mercado de trabalho; ter trabalho é indissociável da dignificação da pessoa humana, mas, no caso particular dos repatriados imprescindível para evitar situações de consumo de drogas, frustração e problemas mentais;

- Apoio às famílias que possam acolher algum familiar que não tenha sido bem-sucedido na emigração e alternativas para os repatriados que, no regresso, não possam contar com o apoio da família;

- Proporcionar o ensino da língua crioula já que, não dominar a língua que a generalidade da população fala, é um fator de exclusão social;

- Finalmente, não desistir dos repatriados. Deverão ter uma nova oportunidade que começa ainda enquanto, por exemplo, estão presos, pelo que as prisões deverão ter televisão, biblioteca e, se necessário, ensino do crioulo. Através destes meios que favorecem a educação poderão ser evitadas reincidência nos crimes após a saída.

Cuidar dos repatriados que, por o serem, não deixaram de ser cabo-verdianos, é próprio de um país humanista como o nosso e vai ao encontro da índole hospitaleira do nosso povo. Além disso, os repatriados não têm de ser um peso para a nossa sociedade… lembremo-nos, por exemplo, que muitos falam a língua do país onde viveram, e falar uma língua estrangeira é sempre uma mais-valia num país, como o nosso, onde a indústria do turismo está em acelerada ascensão. Assim sejam criadas condições que não lancem os repatriados na marginalidade social.

Foi uma agradável e esperançosa conversa, e a cerveja crioula é sempre inspiradora…

 

 

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