"Onde está a voz crítica que questiona o porquê de os investimentos se concentrarem em hotéis e não em hospitais para as populações das ilhas rurais? Onde está a autocrítica que confronta o fato de que a resiliência do povo, tão celebrada, é, na verdade, uma obrigação amarga? A verdade mais dura é que o ideal de um povo caloroso e acolhedor tem sido explorado para mascarar uma inação política e uma inércia social que se recusam a ver a realidade para além do postal. A alma de Cabo Verde não está à venda em pacotes turísticos. Está na luta quotidiana e na contradição que ela representa. A real profundidade de um país só se revela quando se tem a coragem de olhar para o que esconde, de criticar os seus próprios mitos e de lutar, não apenas para ser um país amado, mas para se tornar um país real."
A morabeza é o mais precioso adjetivo de Cabo Verde, a essência de um povo que se vende ao mundo com um sorriso e uma hospitalidade sem par. Mas a crítica mais profunda a este país não reside na sua beleza, nem nas suas estatísticas, mas na contradição intrínseca entre esse ideal e a realidade nua e crua. A morabeza, em sua forma mais pura, tornou-se, ironicamente, o véu que esconde as feridas mais profundas do arquipélago.
Este não é um texto sobre a pobreza, mas sobre as estruturas que a perpetuam. A economia, obcecada com o turismo e os grandes projetos, construiu uma espécie de "vitrine" para o exterior, enquanto a base da sociedade luta por migalhas. O crescimento do PIB, tão festejado, não se traduz em prosperidade equitativa. Pelo contrário, tem aprofundado o abismo entre um centro cosmopolita e uma periferia de ilhas e municípios esquecidos, onde a falta de saneamento, de água e de emprego não é uma falha pontual, mas a regra.
O maior fracasso não é econômico, é social e de governança. A luta diária pela sobrevivência — a escassez de água que banaliza o sofrimento, o desemprego crônico que transforma a emigração numa única ambição, a falta de oportunidades que leva o talento a sair do país — tornou-se tão comum que já não choca. A sociedade parece ter-se anestesiado, aceitando como normal uma realidade que deveria ser vista como uma profunda injustiça.
Onde está a voz crítica que questiona o porquê de os investimentos se concentrarem em hotéis e não em hospitais para as populações das ilhas rurais? Onde está a autocrítica que confronta o fato de que a resiliência do povo, tão celebrada, é, na verdade, uma obrigação amarga? A verdade mais dura é que o ideal de um povo caloroso e acolhedor tem sido explorado para mascarar uma inação política e uma inércia social que se recusam a ver a realidade para além do postal.
A alma de Cabo Verde não está à venda em pacotes turísticos. Está na luta quotidiana e na contradição que ela representa. A real profundidade de um país só se revela quando se tem a coragem de olhar para o que esconde, de criticar os seus próprios mitos e de lutar, não apenas para ser um país amado, mas para se tornar um país real.
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