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As elites e o país real*
Ponto de Vista

As elites e o país real*

Antes de mais uma declaração prévia: nunca me senti estrangeiro em Cabo Verde e nunca, alguma vez, me inibi de dizer com clareza aquilo que penso sobre o País e a política cabo-verdiana. Sei que isso vem criando alguns anticorpos e que, à falta de melhor argumento, me procuram empurrar para a bolha redutora dos que, por razões da mais acabada hipocrisia, parecem estar impedidos de opinar sobre o que se passa num país onde decidiram viver, constituir família e cumprir com as suas obrigações fiscais e de cidadãos.

Estranho seria que, no meu país de origem, tendo sempre defendido que não há estrangeiros, há pessoas, tivesse agora de dar o dito por não dito, e render-me às conveniências daqueles que, alardeando histéricos a sua imaculada cabo-verdianidade, passam a fronteira de Lisboa no corredor destinado a cidadãos da União Europeia…

Aliás, aqueles que agora murmuram, entre dentes, o incómodo que lhes provocam as minhas posições, sãos os mesmo que, num passado recente, estavam sempre a elogiar as minhas supostas competências e a coragem de, com frontalidade e firmeza, assumir posições críticas quanto aos poderes instalados. Eram outros tempos, em que a atual maioria era oposição.

Os que pensavam ter-me rendido à nova normalidade institucional, estavam enganados. Onde viam um “escriba de serviço”, que circunstancialmente terá sido “útil” aos seus intentos, estava um cidadão e (na altura) um jornalista que fazia o seu trabalho.

Este cidadão, que já não é profissionalmente jornalista, continua a ser o mesmo. Se os outros mudaram, é um problema deles e das suas consciências.

Em 2016 pareceu-me importante uma mudança política, interpretando, aliás, aquilo que era a vontade coletiva. Uma vontade horizontal que suscitou uma ampla unidade congregando diversos setores ideológicos da direita à esquerda, várias classes sociais e grupos geracionais, e que levou à vitória de Ulisses nas eleições legislativas.

Posta que está esta declaração prévia, vamos ao assunto que verdadeiramente interessa.

Num país onde a desigualdade social é tão marcante, é natural que a guetização de grupos sociais seja uma realidade tão presente. Uma realidade que, diga-se de passagem, não pode deixar de suscitar a indignação de todas e todos que não veem o mundo através do circulo estreito dos seus próprios umbigos. É o meu caso.

As elites cabo-verdianas, que fizeram alpinismo social às costas dos partidos e do Estado, que ocuparam uma parte do espaço até então reservado às elites pré-independência, têm manifestado, reiteradamente, a sua repulsa, senão mesmo o seu ódio, aos menos bafejados pela sorte, que a língua mãe define, com uma rara exatidão classista e ideológica, como “coitados”, e que são vistos, apenas e só, como tropa de choque eleitoral e parte central da mercantilização do voto.

Assumindo-se com desfaçatez como hipócritas compulsivos, trazendo sempre na boca as palavras liberdade e democracia, mas também batendo no peito juras de fidelidade aos “valores cristãos”, a Jesus Cristo e a Nossa Senhora, os paladinos da nova burguesia, de todos os matizes e conveniências ideológicas, olham para os “coitados” do alto da sua autoridade de bafejados pela sorte. E criaram, até, uma narrativa justificativa: a da Lei e da Ordem.

Isto é, corre-se à pancada, se necessário for, os “coitados” da periferia que, como se sabe, dão mau aspeto ao conceito acético de uma urbe cosmopolita e moderna, muito apregoada nos esboços 3D daquilo a que chamam pomposamente de “requalificação urbana”. E permitem-se até, refugiando-se numa verdade que ninguém nega, no oportunismo daqueles que, aproveitando-se da miséria, procuram ganhar uns trocados à conta da venda e arrendamento de barracas, mas que não são de todo a maioria, justificar intervenções mais musculadas.

A Lei e a Ordem devem ser implacáveis quando se trata dos pobres, mas quando à mamata dos que se aproveitam da política e de promíscuas relações no aparelho de Estado, assobiam para o lado ou, pior ainda, criam novas narrativas para justificar o injustificável.

As elites, ou a nova burguesia cabo-verdiana (chamem-lhe como quiserem), vivem nessa bolha flutuante que está acima dos comuns mortais, não tendo a mínima noção das dificuldades e sofrimento das pessoas comuns que, como esta crise da pandemia tem vindo a provar, são aquelas que, de facto, geram riqueza. Como se percebeu com o confinamento, o “mercado” e os empresários de sucesso que, antes, alardeavam o seu êxito e eram vistos como a panaceia para resolver o problema do desemprego, entraram em colapso e revelaram uma triste realidade: sem os trabalhadores não são nada e, revelando a sua verdadeira natureza, logo estenderam a mão à caridade do Estado, assumindo-se como os “coitados” da pandemia.

A desigualdade social, a inexistência de uma política do Estado para a habitação e as migrações do interior para a capital, resultantes de três anos consecutivos de seca, têm vindo a transformar a cidade da Praia num verdadeiro caos urbanístico e onde as assimetrias de classe adquirem, cada vez mais, uma expressão que nos começa a colocar ao mesmo nível das grandes metrópoles latino-americanas, produzindo favelas paralelamente à ostentação alarve de mansões e modernos prédios da classe média alta.

Como se resolve este problema? Esta é a grande questão que se coloca. E é sobre isto que importa promover um grande debate público, envolvendo todas e todos a repensar os caminhos que, também em matéria de habitação, urbanismo e ordenamento do território, devemos seguir no pós-covid 19.

Mas, seguramente, a solução do problema não passa por escorraçar os pobres da cidade ou meter a pobreza debaixo do tapete, tão-pouco substituir a solidariedade com os mais fracos pela caridadezinha dos que vivem de barrigas cheias.

Estamos fartos desta “normalidade”!

*Texto original publicado pelo autor no facebook

 

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Redação