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O cambalacho entre a mentira, o crime e a cumplicidade
Ponto de Vista

O cambalacho entre a mentira, o crime e a cumplicidade

A injustiça é o apanágio das sociedades perversas e corruptas, em que os decisores têm a cara virada do avesso e suas vergonhas emplastram-se no sítio onde as ceroulas as ocultam numa alcova onde também dormitam os seus micromiolos. E nessa sociedade em que milhões engolem tostões, a estatística invalida a matemática, subtraindo-se ao subtraído e, adicionando-se aos supérfluos, o pobre morre, normalmente, anémico ou desnutrido, e o rico, enfartado com o coração sufocado em saturadas gorduras.

Edmilson - Dego

Faz hoje dois anos que o meu irmão EDMILSON FERNANDES TAVARES, vulgarmente conhecido por DEGO, passou a constar da história como vítima do mais cruel e bárbaro assassinato registado em Cabo Verde. Sob sequestro, foi-lhe arrancado os dentes um a um, enquanto lhe agoniavam. Cortaram-lhe a língua, furaram-lhe os olhos, cortaram-lhe um pé, esmagaram-lhe os testículos, queimaram-lhe o corpo e pintaram-lhe o rosto com tinta preta. Hoje, dois anos já volvidos, não posso deixar de agradecer a todos os que com a família se solidarizaram e, deixar-vos a esperança de que, enquanto me permitem que a vida complete a minha carcaça, a coragem não distanciará da minha vontade, e vou perseguir os criminosos que, alguns, sob toga, quiçá, disfarce protetora, vêm-se rindo, furtando-se às suas sacras obrigações que é de respeitar a justiça, cumprir as leis e sobrelevar o caráter.

Dia 24 de Outubro de 2017, 3ª feira, até por volta das 03h00 da madrugada, o meu irmão DEGO esteve numa paródia no Quiosque NHAFRÓZA em Cutelinho, no concelho de Santa Cruz. O Quiosque estava apinhado de gente, mas o meu irmão vinha acompanhado de um amigo e colega de infância, o Cabral de Marçal da Costa. Os dois se despediram do referido Quiosque eram depois das 3H00 da manhã. E enquanto vagueava a filha da Nix e do Érebo, a luzente Hemera de 3ª feira, 24, DEGO não foi visto nem ouvido pelo público. Dia 25, 4ª feira, pelas 09H00, soou o alarme de que um cadáver fora encontrado numa lixeira, num resvaladouro atrás da casa do meu pai onde o DEGO vivia. O cadáver encontrava-se comodamente estirado envolto em amontoadas garrafas de plástico, abraçado a algumas, nitidamente perceptível de que ali terá sido colocado, numa autêntica e despudorada chacota, paródia e desprezo pelo seu cadáver.

Porém, mal soou o alarme, um jovem completamente desvairado, posicionou-se num sítio, quiçá, estrategicamente escolhido, e pôs-se a dizer repetidas vezes: — «É um NIGERIANO da cidade da Praia que vem cá vender» — Essa afirmação foi imediatamente noticiada pela Televisão de Cabo Verde (TCV). E o cadáver foi removido e levado para a Delegacia de Saúde de Santa Cruz, daí para a morgue do Hospital Dr. Agostinho Neto na cidade da Praia onde ficou depositado, sem autópsia, nem uma condescendente pinga de lágrima humana que derramasse sobre o farrapo que envolvia os seus restos inertes.

Nesse dia 25/10, nas ruas de Achada Fátima havia muito sangue espalhado, inclusive, salpicos no itinerário que vai de uma casa onde se suspeita ter sido um dos palcos da chacina, até a lixeira onde o corpo foi profanado e abandonado. E havia ainda, um lugar com marcas, do tipo sudário, onde supostamente terão pousado o corpo para se descansarem e treparem um penhasco que dava acesso à lixeira. Uma senhora devidamente identificada, disse que no dia 25/10/2017, encontrou no interior dessa casa suspeita, debaixo da cama, uma poça de sangue e algumas roupas encharcadas de sangue, embora a casa tinha sido lavada à noite com água e creolina.

Passaram-se os dias 26, 27 e 28/10 sem que nenhuma iniciativa fosse implementada, mormente, a deslocação da PJ e do Ministério Público (MP) ao local para a recolha de elementos probatórios. Só no dia 29, domingo, depois de terem a certeza que o cadáver não era do NIGERIANO, mas sim do CABO-VERDIANO e meu irmão, é que uma equipa da PJ se deslocou ao local, preocupado para destruir todas as provas e pistas adjacentes. Pois, a médica legista, em cambalacho com a PJ e a Procuradoria de Santa Cruz havia feito um putativo relatório, sem que se tenha tocado no cadáver do meu irmão. Existem evidências claras.

O corpo foi liberado a 30/10, num caixão selado, com diretriz expressa para o levar diretamente para o Cemitério. Na qualidade de irmão mais velho e estribado na experiência de vida, impingiu-me a suspeitar das autoridades. Por isso, acompanhado por uma equipa da TCV, recusei, perentoriamente, receber o corpo sem que primeiro abrissem o caixão para todo o mundo ver se efetivamente tinham realizado a autópsia. Enquanto esperava pela autorização da Diretora Clínica, soube que o caixão já se encontrava a caminho do Cemitério de Santa Cruz.

Nas imediações de um edifício pertencente ao atual Procurador-Geral da República, Dr. Luís José Tavares Landim, então Procurador-Geral adjunto, no dia 25/10 havia salpicos de sangue e algumas marcas de bulhas. E nesse edifício existe uma camara de vídeo. Esperançoso de que poderia ter captado algumas cenas, um irmão meu solicitou ao Dr. Landim a disponibilizar as fitas para o visionamento das imagens, todavia, não se efetivou.

No dia 07/11 estive na PJ e o Inspetor Chefe garantiu-me que DEGO terá morrido, supostamente, no domingo, dia 22. Que por isso, quando o cadáver foi encontrado na 4ª feira, estava completamente putrefacto. Disse-lhe que havia várias testemunhas que estiveram com o DEGO na 3ª feira, dia 24, no quiosque NHAFRÓZA. E deixei-lhe alguns nomes.

Dia 16/11, a dita casa suspeita foi novamente lavada com água misturada com cal. Um outro irmão meu filmou a enxurrada e chamou a Polícia Nacional (PN) que, por sua vez, recolheu as amostras, elaborou um auto e enviou à Procuradoria de Santa Cruz.

Entretanto, no final de Dezembro, a PJ emitiu este Comunicado, dizendo que « está convencida  que a morte do guarda-noturno Edmilson Tavares  cujo corpo foi encontrado numa ribanceira na localidade de Achada Fátima, em Santa Cruz, teve morte por acidente, provocado por queda do terraço da sua própria residência, no dia 25 de Outubro».

Datado de 05/01/2018, recebi um e-mail com a informação da Comissária para os Direitos Humanos junto da Procuradoria-Geral:

«… foi aberto um processo-crime na Procuradoria da República da Comarca de Santa Cruz, cuja competência para a investigação encontra-se delegada na Polícia Judiciária, por suspeita de crime de homicídio».  

«… não houve e nem haverá negligência em relação aos procedimentos legais, neste ou em qualquer outro caso, por motivos raciais ou outros não legalmente admissíveis, porque o Ministério Público de Cabo Verde é um órgão de administração da Justiça sério, que se move, sobretudo, pelos princípios da legalidade, imparcialidade e objetividade”».

No dia 12/01/2018 estive numa audiência com o Sr. PGR. Ele estava convencido, até antes de lhe mostrar as fotografias, que efetivamente a causa da morte do DEGO foi queda acidental. Mas, por fim, indigitou mais uma procuradora para coadjuvar o então titular e mandou prosseguir com as investigações.

Caros leitores, dois anos se passaram e as autoridades continuam quedos, num cambalacho entre a mentira da PJ, o crime da médica e a cumplicidade do Ministério Público. E, entretanto, a Comissária para os Direitos Humanos junto da Procuradoria-Geral tem a coragem de dizer que «… não houve e nem haverá negligência em relação aos procedimentos legais, neste ou em qualquer outro caso, por motivos raciais ou outros não legalmente admissíveis, porque o Ministério Público de Cabo Verde é um órgão de administração da Justiça sério, que se move, sobretudo, pelos princípios da legalidade, imparcialidade e objetividade”».

Não me demovo, nem me canso por isso. E quero contar com o vosso apoio sincero nesta causa. Pois, se o meu irmão fosse NIGERIANO não teria direito à justiça em Cabo Verde?

Pois, desde os primeiros momentos participei esse crime à Comissão Nacional dos Direitos Humanos e da Cidadania. Há dois meses estive em Portugal e entreguei uma participação à Amnistia Internacional. No dia 14/10 enviei uma exposição, via Messenger, ao Sr. Primeiro-ministro, contando-lhe a estória e informando-lhe da minha intenção de redigir uma queixa ao Secretário-geral das Nações Unidas, bem como a todas as instâncias ligadas aos Direitos Humanos. Que hoje, 25/10, denunciaria o racismo e a falta de justiça em Cabo Verde. E ainda ele não reagiu.

Ora, tudo o que eu quero é que o corpo do meu irmão seja exumado e que a autópsia seja feita. E que a casa onde a poça de sangue foi encontrada seja visitada pelas autoridades. E, em ambos os casos, que sejam acompanhados de peritos indicados pela Comissão Nacional dos Direitos Humanos, Amnistia Internacional e Tribunal Africano dos Direitos Humanos.

Se até o fim de Dezembro nada ficar resolvido vou redigir a tal carta ao Secretário-geral das Nações Unidas e a todas as entidades que defendem os direitos humanos.

Haver vamos.

A injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos.

Montesquieu.

A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar.

Martin Luther King Jr.

Palmarejo, 25 de Outubro de 2019

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Redação