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Albertine Gonçalves. Prestem atenção aos atletas de origem cabo-verdiana que vivem no Senegal
Entrevista

Albertine Gonçalves. Prestem atenção aos atletas de origem cabo-verdiana que vivem no Senegal

Albertine Gonçalves é uma autoridade do desporto em África. Em conversa com o Santiago Magazine pede a Cabo Verde, terra dos seus pais, que olhe com mais atenção para os atletas de origem cabo-verdiana que, competindo no Senegal, querem representar a terra dos seus antepassados.

Santiago Magazine - É uma personalidade sobejamente conhecida no meio desportivo no Senegal e um pouco por todo o oeste africano, mas em Cabo Verde poucos sabem que é. Por isso, para começar esta nossa conversa peço-lhe que se apresente.

Albertine Gonçalves - Meu nome é Albertine Barbosa Andrade Gonçalves, nasci em Dacar, Senegal, filha de pais cabo-verdianos.

- Como se deu a sua entrada no mundo do desporto no Senegal, numa época em que poucas mulheres praticavam desporto?

- Entrei no mundo do desporto por intermédio dos meus irmãos, que praticavam ciclismo. Naquela época, as meninas quase não iam à rua sozinhas, de modo que para sair de casa era só na companhia dos meus irmãos. Assim, acompanhava-os nas vezes que saíam, nomeadamente quando iam participar em competições de ciclismo. Casei-me, entretanto, e tive dois filhos –ambos rapazes -, que também aderiram ao ciclismo, tal como o meu marido. Um dia, em conversa com um alto dirigente do Senegal comentei que, na minha opinião, os homens que dirigiam o ciclismo no país pouco estavam a fazer para desenvolver esse desporto. Então ele desafiou-me: “Toma tu o poder”. Respondi: “Como posso fazer isso, eu, uma mulher? E a reacção deles surpreendeu-me. Disse-me assim: Se quiseres, dou-te todo o apoio necessário. Isso em 1982. Ganhei as eleições e por cinco anos fui a presidente da Federação Senegalesa de Ciclismo. Na época, não havia nenhuma mulher em África que fosse dirigente de uma federação, e a nível mundial uma única mulher dirigia uma federação, na Alemanha.

- Mas a sua carreira de dirigente desportivo não se limitou ao ciclismo, ainda dirigiu outras organizações desportivas.

- Sim. Recebi um convite para me candidatar à presidência da Federação de Ginástica. Mas eu nunca pratiquei ginástica, excepto enquanto aluno, na escola. Assumi cargo, projectando um período de trabalho de dois anos, a título de experiência. Afinal, foram 20 anos. Em 1984, na qualidade de dirigente da Federação Senegalesa de Ginástica, passei a integrar o Comité Olímpico, tendo exercido o cargo de tesoureira por oito anos e, mais tarde, o de vice-presidente. Actualmente, ainda sou a vice-presidente do Comité Olímpico, vice-presidente da União Africana de Ginástica (responsável pela Zona II) e na Federação Internacional de Ginástica sou membro do Bureau Executive.

Religião e Cultura impedem mulheres de praticar desporto em África

- Há cerca de dois anos participou em Cabo Verde num fórum organizado pelo Comité Olímpico de Cabo Verde sobre “Mulher e Desporto”. Dada a sua longa experiência nesta área, pergunto-lhe: quais os desafios que ainda permanecem para as mulheres desportistas africanas?

- Ainda são muitos os desafios que as mulheres desportistas africanas, mas durante esse fórum pude constatar, através de testemunhos de atletas e dirigentes, que Cabo Verde progrediu bastante nesta área. Hoje temos uma mulher a dirigir o Comité Olímpico no país, e está a fazer um óptimo trabalho, nada a apontar contra, na minha opinião, e certamente servirá de estímulo para mais mulheres candidatarem-se e assumirem a presidência de organizações desportivas, nomeadamente a nível das associações e federações. Espero que receba o apoio de todos, nomeadamente do Governo de Cabo Verde.

- Mas quando olha para a zona II de África, onde estão inseridos Cabo Verde e Senegal, entre outros países da África Oeste, qual a avaliação que faz da participação das mulheres no desporto, seja como atletas seja como dirigentes. Permanecem muitos obstáculos, em pleno século XXI?

- A principal barreira é a cultura e a religião desses países. Casadas ou solteiras, a maioria das mulheres que são atletas, profissionais ou amadoras, recebem pouco ou nenhum incentivo da família. A lei não as impede de praticar e profissionalizar-se, mas, por respeito à sua cultura, à sua religião ou aos pais, muitas acabam por abandonar a prática desportiva para se dedicarem à família ou a uma carreira que considerem que não briga com a condição de mulher.

- Na Guiné Bissau, conforme o testemunho de uma atleta guineense, os homens ainda acham que a mulher não é dona do seu corpo (mas o marido) e, por isso, dizem, ela não deve expor o seu corpo, que é o que acontece quando usam certo tipo de vestuário desportivo.

- Sim, esta é a opinião de muitos, talvez da maioria. Mas não é esse o único problema que obstrui a participação feminina nos países de África, enfrentamos também muitas limitações financeiras. Os cargos desportivos são exercidos por voluntariado, não ganhamos nada, porque não há dinheiro para o desporto, de modo que, quando casam, as mulheres são quase que obrigadas a abandonar tudo para cuidar da casa, dos filhos e do marido. A solução estimular todos a praticar desporto.

E foi isso que a senhora Albertine fez, pois não?

Sim, é verdade. Meus irmãos, meu marido e meus filhos são ou foram desportistas.

 

Um prémio recebido de mãos presidenciais

Em 2010 foi eleita como uma das 50 Mulheres Senegalesas de Excepção, distinção que recebeu das mãos de Abdulaye Wade, presidente da República do Senegal de então. O que significa este prémio tem para si, uma descendente de cabo-verdianos?

Orgulho, sinto um imenso orgulho por ter recebido esse prémio, porque amo e pertenço às duas culturas, a cabo-verdiana e a senegalesa. É também uma prova de que não trabalhei em vão.

Uma das razões por que lhe atribuíram o prémio, anunciou-se na altura, é o “percurso profissional exemplar” que fez, e continua a fazer, no desporto. Concorda?

Lutei muito pela participação das mulheres no desporto. Incentivei-as e ajudei-as sempre.

- Como fez isso?

- Organizei competições só para mulheres, convenci as famílias a deixá-las fazer desporto e a irem vê-las a competir e fiz ainda com que muitas entendem-se que a prática desportiva só traz benefícios à nossa pessoa.

- A senhora deu o seu contributo para a evolução do desporto no feminino no Senegal. Sente que o trabalho que fez continua a dar frutos?

- Sim, hoje há mais mulheres a praticar desporto e nalgumas disciplinas há já mais atletas femininas do que masculinos, por exemplo na ginástica, pois os rapazes agora preferem o futebol com a ideia de que vão ganhar muito dinheiro.

- As atletas e as dirigentes desportivas cabo-verdianas queixam-se de que ainda há muita discriminação no desporto cabo-verdiano, que favorece o homem, o que se torna visível, por exemplo, na atribuição de verbas e outros incentivos. A realidade senegalesa é similar ou os nossos vizinhos já deram mais passos à frente?

- As mulheres candidatam-se a qualquer cargo que desejarem, mas muitas preferem a política. Digo-lhes, entretanto, que, ao contrário do que acontece na política, não há limitação de mandatos, podem recandidatar-se as vezes que quiserem, não são apenas quatro anos de tempo de serviço.

O que desejam os atletas de origem cabo-verdiana no Senegal?

- Temos no Senegal uma comunidade cabo-verdiana considerável, e já bastante antiga. As mulheres, cabo-verdianas ou descendentes de cabo-verdianos, praticam desporto?

- As mulheres cabo-verdianas no Senegal praticam desporto. No entanto, algumas sentem-se desmotivadas porque quando chega o momento de seleccionar atletas para as competições, escolhe-se na maioria das vezes as atletas senegalesas, não as cabo-verdianas. Por causa disso, mas também por outras razões, muitas vezes as famílias cabo-verdianas no Senegal não incentivam seus filhos ou suas filhas a praticar desporto. Por isso lanço um desafio às autoridades desportivas cabo-verdianas: prestem atenção aos atletas de origem cabo-verdiana, homens e mulheres, que vivem no Senegal, tal como já fazem com os que vivem em Portugal, na Holanda ou nos Estados Unidos.

- E esses atletas têm interesse em representar Cabo Verde?

- Sim, tiveram e continuam a ter imenso interesse em representar Cabo Verde, e estão em quase todas as disciplinas. Olhem para eles, apoiem-nos, ajudem-nos a representar a terra dos seus pais, que também é a sua.

- Voltemos ao desporto no feminino e em Cabo Verde. Que avaliação faz?

- Em Cabo Verde ainda são poucas as mulheres que praticam desporto.

 

Desporto no feminino em Cabo Verde: mais formação e mais infraestruturas

- O que precisa ser feito para que mais mulheres pratiquem desporto em Cabo Verde?

- São precisas mais infraestruturas e mais formação, pois é isso que atrai e multiplica o número de atletas. Também são precisas mais treinadoras, mais mulheres árbitro, mais mulheres dirigentes. Mas também é o facto de a maioria das mulheres não duram muito tempo no desporto, inclusive atletas. Não sei porquê. Eu fiz tudo por amor, para ajudar os meninos.

- Aliás, esse foi o tema da sua comunicação há dois anos, quando participou no Fórum Mulher e Desporto, a convite do COC, “Liderança no Feminino e Desporto”. Na sua opinião, enquanto dirigente desportivo com larga experiência, qual a ligação entre estas duas coisas?

- Educação. A presença das mulheres na liderança de organizações desportivas é essencial para que rapazes e meninas sejam educados da mesma forma e sejam criados da mesma forma, sem discriminação na prática de desporto.

- Voltemos ao passado. Envolveu-se no desporto por influência dos seus irmãos, que eram ciclistas. Na época, nenhuma mulher serviu de modelo e inspirou-a a enveredar por esse caminho?

- Não, não ninguém. Não apreciei a forma como os homens dirigiam o ciclismo no Senegal e, com o apoio certo, decidi candidatar-me à liderança da federação por acreditar que podia fazer melhor. Por exemplo, não me agradava ver aquando das competições que os eventos se limitavam às provas e à entrega de troféus. Por que não mimá-los com um pote de doce para que, quando chegassem em casa, não entrassem de mãos vazias. Foi esse lado feminino …

- Materno, também?

- Sim, esse lado materno que nós mulheres temos ajuda muito o desporto. Quando se sentem acarinhados, incentivados, os atletas dão mais de si, acredito.

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SOBRE O AUTOR

Teresa Fortes