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Lambardina
Elas

Lambardina

Lambardina era um motor matxafémia, que antes era de água e foi adaptado para dar luz, sabe Deus como conseguiram isso. Fazia um barulho incrível que ninguém da família tinha coragem de entrar na casa de banho, onde ele tinha que ficar escondido, para que as pessoas pudessem assistir e ouvir a TVEC.

Chegou depois do Yamaha, coitado, que não aguentou a rotina noturna daquela época. No ano da graça de 1986, a copa do México foi vista em São Miguel, através de uma TV SONY colorida, novidade em todo o Concelho, mais pelo Telecomando (coisa sinistra para os mais velhos, do que pela cor propriamente dita).

Aquilo tudo era tão inexplicável… o de a TV ligar, desligar, passar da Praia para Dakar, ou ainda para o Sr. “Hilário Vítor”, sem ninguém ter que tocar nela. Quando as senhoras do lugar começavam a se acostumar com a ideia da TV voluntariosa, que mandava até no dono da casa, eis que o cego gritou “golo de Maradona!”, 10 segundos antes de o fato ter acontecido! Nós, que víamos, confirmámos, depois de Stivy ter comemorado o golo, que a bola ia mesmo se dirigindo para a baliza e que, logo devera, passava-se algo estranho. Já que um cego estava a ver e ainda via bem antes de nós todos, os sãos, então, definitivamente, não estava nada compassado.

Ilustração de Jija Teixeira

As senhoras mais grandes recolheram seus mochos e se foram. Kusa galanti, coisa estranha…Preferiram ir fazer suas orações, a ver se o Senhor tomaria conta deste mundo, que anda de cabeça para riba e de cabeça para baixo.

Então sim.

Claro está que o jogo foi ignorado por mais de 80 segundos, tempo extremamente longo para os homens que assistiam às partidas de copa do mundo; mas era preciso retirar, primeira e urgentemente, o estatuto de cego a um cristão que gritava “goooolo”, antes que a bola tivesse entrado na baliza e antes ainda que qualquer homem, são, tivesse visto a bola a caminho das redes. Assim foi feito. Onhô!

Eram assim as levas: ao fim do jornal saíam as crianças, juntamente com o Vitinho. Ao fim das novelas, as mulheres mais velhas, com seus “mochos” e bancos de todas as cores e cujos nomes eram grafados, no fundo dos próprios, a tinta que sobrava dos calafates das lanchas… Depois disso, eram quase só homens que ficavam. Esses que já haviam assistido ao mesmo filme N vezes, sempre de pé e atrás das mulheres e crianças. Ao todo, eram uns cinco filmes que rodavam o ano inteiro, repetidas vezes.

Estão enganados os pais e professores que dizem que a TV impede que se formem leitores. Comigo foi tudo ao contrário. Li primeiro para fugir aos repisados filmes de J. C. Van Dame, Bruce Lee, Ninjas e Stalonne que a minha família era obrigada a passar todos os dias, após a novela, num enorme quintal das minhas férias grandes. Não só os filmes não eram os que eu mais gostava, como ainda as pessoas ficavam antecipando os chutes e pontapés e iam contando o filme antecipadamente. E o mais engraçado é que, mesmo os filmes sem legenda, via-se e repetia-se e contava-se cada cena como se fosse um jogo relatado às avessas. Isto é, ouvia-se primeiro o relato, e depois é que acontecia a cena.

Lambardine era uma verdadeira personagem das gentes da aldeia, naquela época. Tinha ele muitas histórias. Mas num dia iluminado lá conseguiram luz elétrica e na rede local. Transformaram Lambardine, de novo, em motor de água e se desfizeram dele. Levou-lhe um senhor, um compadre qualquer, não sei para que banda. Ele me era totalmente estranho; ele morava num lugar mais estranho ainda.

Agora é cada um na sua casa. Já há luz para o povo. Só não tive tempo de perguntar se continuam todos muito felizes. E assim foi. Eu nunca mais vi Lambas.

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Redação