CCLVI CENA
Dário e Diana estão na sala, sentados no sofá, conversando-se.
DIANA – Dário, há quatro anos que saíste daquele maldito inferno…
DÁRIO – Que saí «daquele inferno…» como disseste. Pois, saí daquele, entrei no outro. E sem cometer pecados para que os merecesse.
DIANA – Mas pronto… não existe mal que não tenha cura. E em último caso, a própria morte já é a cura.
DÁRIO – Lá isso é verdade.
DIANA – E durante esse tempo venho guardando um segredo para te vir fazer surpresa.
DÁRIO – Segredo?! Pensava que não havia segredos entre nós?
DIANA – É um segredo que te vai deixar, certamente, radiante.
DÁRIO – Tens a certeza?!
DIANA – Absoluta.
DÁRIO – Então diz lá.
DIANA – Lembras-te de quando recebeste aquela carta da Direção Nacional de Viação?
DÁRIO – Perfeitamente.
DIANA – Poucos dias depois, chegou uma outra da Polícia, que o Tribunal mandou retirar-te a carta e prender-te se te apanhassem a conduzir.
DÁRIO – Então nunca me disseste?
DIANA – Já não tinhas por onde levar mais angústias. Preferi poupar-te.
DÁRIO – Poupar-me?! E se eu tivesse conduzido… e tivesse sido apanhado?
DIANA – Sei que não és tão ingénuo para conduzires sem a carta de condução!
DÁRIO – Eu tenho a carta de condução! Está guardada na pasta de documentos.
DIANA – Eu fui entregá-la ao Tribunal.
DÁRIO – Sem que me tivesses avisado, Diana?
DIANA – Pelo teu bem, querido. Mas já agora, podes pedir a tua reabilitação, levantas a tua carta e fazes a tua vida como qualquer cidadão.
DÁRIO – Quem foi que te disse?
DIANA – Se quiseres, podes já pegar numa folha de papel azul de 25 linhas e rediges um requerimento para o juiz de execução de penas, solicitando-lhe a tua reabilitação. Já tens esse direito.
DÁRIO (levanta-se entusiasmado) – Vou já comprar uma folha de papel azul.
DIANA – Não precisas de ir comprar. Trouxe uma e está na gaveta da minha mesa-de-cabeceira. Vai lá buscar.
DÁRIO (entra no quarto e volta com uma folha de papel azul na mão) – Obrigado… muito obrigado… obrigado mesmo, Diana. (Entrega-lhe o papel) Escreve tu que tens a letra mais bonita. Eu dito-te. «Meritíssima juíza da execução de penas da comarcã de São Vicente» Noutra linha. «Mindelo» Traço «São Vicente» Deixa duas linhas em branco «Eu» vírgula «abaixo-assinado» vírgula «Dário Tute Simoa da Cruz» vírgula «ex-recluso» vírgula «venho por esta via requerer a minha reabilitação dado que já cumpri os prazos legais para o efeito» vírgula «isto é» vírgula «4 anos em liberdade» Ponto final, parágrafo. «Junto envio fotocópias dos seguintes documentos» Dois pontos, parágrafo e travessão «Certidão do registo criminal e extrato da sentença» Ponto, parágrafo. «Espero deferimento» Ponto final.
Diana acaba de escrever e dá-lhe a folha para assinar.
DIANA – Agora é só mandá-lo pelos correios. Acho que tudo irá ficar resolvido. Que tudo irá dar certo e que o nosso calvário tenha chegado ao fim.
DÁRIO – Deus te oiça, querida linda. (Lê o requerimento, abre uma gaveta e tira umas fotocópias do registo criminal, do extrato de sentença e mete-as num envelope) Bem, vou já aproveitar e pô-lo nos correios.
DÁRIO – Muito bem. Quanto antes, melhor.
Abraçam-se ternamente, depois Dário sai apressado, com o envelope na mão
CCLVII CENA
Diana está sentada ao lado do Dário, o Oficial de Diligências bate à porta.
DIANA (à porta) – Bom dia, senhor oficial. Good News?
OFICIAL – O quê?
DIANA – Boas notícias?
OFICIAL – Ah! Julgo que sim. Embora não completamente, mas já é bom. Preciso falar com o Senhor Dário. Ele está?
DIANA – Está sim, senhor. Ele já vem aí. Aliás, o Senhor pode entrar.
OFICIAL (entra e dirige-se para o Dário) – Bom dia, Senhor Dário.
DÁRIO – Bom dia, Senhor Oficial. Que notícias é que me traz?
OFICIAL – Penso que desta vez as notícias são boas. Embora há uma pequena condicionante.
DÁRIO – Condicionante?! Que condicionante? A juíza não aceitou?
OFICIAL – A juíza deferiu o seu pedido. Só que mandou notificá-lo a pagar as indemnizações à Vítima a que foi condenado e as respetivas custas do processo. Feito isto, o senhor terá o seu registo criminal limpo como o meu.
DÁRIO – Já nem estou a lembrar quantas eram as indemnizações.
OFICIAL – As indemnizações eram 200 contos e custas do processo 30.
DIANA – 230 contos.
DÁRIO – Será que os nossos pais nos poderão ajudar a pagá-los?
DÁRIO – O meu… mesmo que ele tivesse a minha madrasta não o deixaria.
OFICIAL (esfolheia o dossiê) – Por já terem passados 7 anos, com juros de mora e atualização da inflação, já não são esses os valores. Aumentaram para 600 contos.
DIANA – Ave-maria! Mas porquê tanto aumento assim?
OFICIAL – Isso já não sei, D. Diana. (Para Dário) Senhor Dário, assine aqui, se faz favor, em como tomou conhecimento do despacho da juíza.
Dário assina, o Oficial despede e sai.
DIANA – Neste momento não sei se o meu pai nos poderá ajudar! Sabes que ele gastou muito dinheiro com o casamento da Zoraima, minha irmã, depois fez aquela operação na próstata que também lhe custou muita grana. Mas mesmo assim, vou falar com ele.
DÁRIO – Ele não deve ter essa quantia toda, de certeza. É muito dinheiro! Já pensei numa solução e penso que é a melhor.
DIANA – Qual? Agora temos que pensar em todas as hipóteses possíveis. Em todos os planos. Plano «A», plano «B», plano «C», etc.
DÁRIO – Estudei em Portugal, conheço por lá muita gente e sei que aí vou-me safar. Ainda que para trabalhar nas obras, há sempre forma de ganhar algum dinheiro.
DIANA – Por acaso!…
DÁRIO – Vamos tentar pedir o visto para nós os dois e largamos para Portugal. Lá eu trabalho. Tu também podes trabalhar em casa de patroas, ganhamos dinheiro que nos irá dar para viver e continuar os estudos. Eu faço um Doutoramento e tu, como já tens o 7º ano, vais para uma faculdade. Trabalhamos de dia e estudamos à noite. Como achas a ideia?
DIANA – Simplesmente fantástica… aliás, como sempre.
DÁRIO – Então, pensa nisso.
DIANA – Dá-me o teu passaporte, vou já tentar os visto. Que horas são?
DÁRIO – Uma e meia da tarde. O Consulado só abre às três.
DIANA – Só abre às três, mas vou já andando para estar lá mesmo às três.
Diana prepara-se e sai.
CCLVIII CENA
Diana entra e vai para o Dário que pergunta-lhe com ansiedade.
DÁRIO – Então, querida! Farinha ou farelo?
DIANA – Farelo, amor.
DÁRIO – Não!… E por causa de quê desta vez?
DIANA – Registo criminal. Foi a primeira coisa que o Cônsul me pediu.
DÁRIO – Quantos criminosos que eu conheço e que conseguiram o visto?!
DIANA – Quando eu vinha a sair, à porta, uma funcionária chamou-me particular e disse-me que se lhe desse 250 contos, me arranja o visto para ti amanhã.
DÁRIO – Aqui o que funciona é esquema. Corrupção a todos os níveis. Diana, se efetivamente existe reencarnação, se há uma segunda vinda a este mundo, prefiro eternizar-me no Inferno do que nascer nesta maldita terra de novo.
DIANA – Não digas isso. Deus fica zangado contigo. Olha que o fogo da terra é lavado em nove águas, e mesmo assim é quente. Imagina, então, o fogo do Inferno que não é lavado em nenhuma água!
DÁRIO – Se Deus não está zangado comigo… faz-me sofrer assim, então se estivesse?
DIANA – Deus sabe o que faz, Dário.
DÁRIO – Que tamanha injustiça… que desgraçada tragédia a minha.
Diana vai-lhe abraçar e aperta-o com ternura. Afasta-se de repente.
DIANA – Sabes o que acabei de pensar, cherry?
DÁRIO – O quê?
DIANA – Meu Deus!… Mas porque não tinha pensado isso a mais tempo?
DÁRIO – O quê?
DIANA – Vou falar com o meu pai, se ainda ele quer nos emprestar aquele dinheiro para criarmos uma Empresa, faço só em meu nome.
DÁRIO – Boa! Eu também não tinha pensado nisso…
Abraçam-se novamente com muita ternura.
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