CXLIII CENA
Os Doutores, Joaquim e Mónica estão reunidos numa sala. Joaquim aparece um pouco desapontado e Mónica sempre relutante.
DRA. MÓNICA – A audiência com o Sr. Ministro não correu bem? (Joaquim abana negativamente a cabeça) O que foi que ele te disse?
- JOAQUIM – Ele disse que vai dar por findo a minha comissão de serviço.
DRA. MÓNICA (estupefacta) – Disse-te isso?
- JOAQUIM – Mas eu também não queria mais continuar… pelo menos como Juiz daquele processo. Sentia-me animicamente condicionado para continuar a julgar, disfarçadamente, o meu próprio pai e o meu legítimo irmão!
DRA. MÓNICA – E então?… qual é o Juiz que os vai julgar?
- JOAQUIM – Não faço ideia!
DRA. MÓNICA – Eu vou continuar como advogada. E a Rosária está interessada em colaborar comigo. Vou requerer a sua nomeação como minha assistente.
- JOAQUIM – O Sr. Ministro ficou mesmo fulo comigo. Disse que lhe defraudei. Que não esperava isso de mim.
DRA. MÓNICA – Defraudaste-lhe como? Só por que quiseste produzir a justiça e fazer valer os direitos dos inocentes?
- JOAQUIM – Ele disse que não estava à espera que eu condenasse o Estado. Que é pela primeira vez que isso está a acontecer. Que nunca esperara que um juiz, que o Estado paga, viesse condenar o próprio patrão.
DRA. MÓNICA – Não acredito! Este Ministro não deve ter cabeça boa! Afinal, o papel do Estado não é de defender a justiça e promover a legalidade?
- JOAQUIM – Estava tão zangado!… Repreendia-me enquanto batia murros na mesa.
- MÓNICA – E ainda é malcriado!
- JOAQUIM – Falei com a minha mãe em Angola, ela pediu-me para regressar o mais rápido possível.
- MÓNICA – Ela tem suas razões. Quem sabe o que eles são capazes de fazer ou de mandar fazer contigo?! O medo de perder o cargo obriga-lhes a fazer com que o corpo se divorcie da alma de qualquer criatura a todo preço.
- JOAQUIM – Achas que são capazes de praticar um atentado contra a mim?
- MÓNICA – Não digo nada. Se até no Parlamento e em plena sessão se agridem um ao outro… pagam bandidos para desfazer pertence dos outros… do que não serão capazes?
- JOAQUIM – O quê?
- MÓNICA – A Rosária passou-me uns ficheiros, alguns são incríveis!
- JOAQUIM – Andaram à pancada no Parlamento?
- MÓNICA – Em plena sessão. E um deles ficou sangi ta baza! Sabes, um éra más grandi, kaba éra karateka.
- JOAQUIM – Deixa de brincadeira!
- MÓNICA – Não estou a brincar. Estou a falar a sério.
- JOAQUIM – O Presidente não mandou abrir um inquérito parlamentar?
- MÓNICA – Acho que não. Mas mesmo que mandasse abrir, ia dar em quê?
- JOAQUIM – Como é que terão a moral de criar lei que puna as agressões?
- MÓNICA – Lá isso é verdade!
- JOAQUIM – Agora estou a ver por que é que o Ministro me disse que aqui, contrariar as ordens dos de lá de cima, é sinónimo de assassínio teleprogramado.
- MÓNICA – O que queria ele dizer com isso?
- JOAQUIM – Acho que ele queria dizer suicídio. Tinha os olhos tão fulminantes que nem tive a coragem de lhe dizer que não tinha percebido.
- MÓNICA – Éh, pah!
- JOAQUIM – E falou-me de um tal Governante que pagou com a vida o seu atrevimento.
- MÓNICA – Disse-te assim… descaradamente?
- JOAQUIM – Sem pejo nem pudor. E nem se notava pitada de remorso no semblante dele.
- MÓNICA – Ordinário!
- JOAQUIM – Falou-me ainda de uma ardilosa cilada que tramaram contra um músico e tradicionalista revolucionário, que o levou tão rápido para a terra dos pés juntos; também de um jovem Procurador da República e, até, de um curandeiro que depois de uma renhida perseguição dos médicos, não acordou depois de levar uma simples injeção num Hospital do país.
DRA. MÓNICA – Quer dizer que… dja es dura na el!
- JOAQUIM – Ele disse-me que o Governante tinha uma atrevida visão de mudança e, por isso, armaram-lhe uma emboscada e foi baleado durante uma adúltera orgia numa praia da Capital.
DRA. MÓNICA – Então vais mesmo para Angola?
- JOAQUIM – Vou. É a única hipótese que me resta, se quero manter a minha vida agregada à minha carcaça.
DRA. MÓNICA – E nós vamos abandonar a nossa causa?
- JOAQUIM – Nunca. Eu vou para Angola, a fim de tranquilizar a minha mãe, e, de seguida, vou para Europa, assumido como legítimo filho do injustiçado Paulito, vou exigir junto dos Organismos Internacionais que se faça justiça.
DRA. MÓNICA – Estaremos sempre juntos. Embora eu vou continuar aqui como advogada até a conclusão do processo.
- JOAQUIM – Ficar aqui… não é arriscar demais, mana?
DRA. MÓNICA – Pode até ser. Mas é um risco necessário. Vale à pena arriscar para cumprir certos desígnios.
- JOAQUIM – Não te desatentes!
DRA. MÓNICA – Nunca. E sabes o que me ocorre?…
- JOAQUIM – O quê?
DRA. MÓNICA – Encorajei Djucruco, quase que o obriguei mesmo a formalizar a Fundação. Eu que custeei as escrituras e todas as despesas inerentes à papelada, na certeza, ou, na esperança de que ele viesse a receber indemnização que lhe permitiria suportar a manutenção da instituição. Agora temo se ele vai receber a indemnização que legalmente tem direito.
- JOAQUIM – Pelo que pude perceber, o recurso interposto pelo Promotor Público irá ser julgado procedente e o acórdão anulará, certamente, a sentença que ditei.
DRA. MÓNICA – Por isso é que vou ficar cá até às últimas consequências. A Drª Rosária, seguramente estará do meu lado. (Rosária bate à porta) Entra se faz favor! (Ela entra) Ainda bem que chegaste!
- ROSÁRIA – Porquê? (Olha para Joaquim que está muito desapontado) O que é isso, Doutor!
DRA. MÓNICA – Ele vai-se embora!
- ROSÁRIA – Vai-se embora?! Porquê?
DRA. MÓNICA – O Ministro chamou-lhe ao gabinete e disse-lhe que vai dar por findo a sua comissão de serviço.
- ROSÁRIA – Mas porquê? Qual foi o motivo? (Olha para o Joaquim) E os processos que já começaste a julgar?
- JOAQUIM – O Ministro disse que vai orientar o Conselho Superior da Magistratura no sentido de nomear o meu substituto.
- ROSÁRIA – Carago, pá! Que escândalo!
DRA. MÓNICA – E ele está já de malas aviadas para Angola.
- JOAQUIM – Mas não vou ficar parado. Vou primeiro tranquilizar a minha mãe, depois viajo pela Europa e pelo mundo à procura de justiça.
DRA. MÓNICA (para a Rosária) – E nós aqui, tu e eu, vamos ficar atentas. O Juiz que irá substituir Joaquim, indubitavelmente, será uma espinha que nos irá querer atravessar pela garganta.
- JOAQUIM – Daqui há três dias devo partir. Enviei um e-mail ao meu Ministro lá em Angola, estou à espera que ele me responda.
- ROSÁRIA – Isto vai dar bronca.
O telemóvel do Joaquim faz sinal de que uma mensagem entrou. Ele abre e lê.
- JOAQUIM – É do Ministro da Justiça de Angola.
DRA. MÓNICA – O que é que ele te mandou dizer?
- JOAQUIM – Que telefonou ao Sr. Ministro de Cabo Verde e que este está mesmo fulo. Que lhe disse que sou atrevido e confuzento.
- ROSÁRIA – Eles têm medo de um Juiz como tu, Joaquim. Principalmente esse nosso Ministro que é conhecido pelo Ministro do Saco Azul. Que até mobiliários para a casa dele comprou com o dinheiro do cofre do Estado.
Novamente o telemóvel do Joaquim faz sinal de que mensagem entrou. Lê e faz um sorriso alegre.
DRA. MÓNICA – Que foi desta? Coisa má não deve ser de certeza|
- JOAQUIM – O Sr. Ministro informou-me de que fui escolhido para presidir a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.
DRA. MÓNICA – Bravo!
- ROSÁRIA – A sério, Joaquim?!
- JOAQUIM – Providência divina!
- ROSÁRIA (para Mónica, estupefacta) – Então o que esperamos? Uma ação imediatamente contra o Estado na Comissão Africana dos Direitos Humanos.
- JOAQUIM – Sempre foi meu sonho! Vou levar a julgamento e a condenação, todos os patifes que pensam ser donos e carrascos dos outros.
DRA. MÓNICA – Não acredito que nos irás dar a oportunidade de investigar todos esses crimes sem rosto que por aqui vêm sendo praticados.
- ROSÁRIA – Há uma coisa sobre a qual deves debruçar firmemente.
- JOAQUIM – Qual? Sobre quê?
- ROSÁRIA – Corrupção.
DRA. MÓNICA – è verdade! Esses Prados que vejo por aqui… um país que diz-se pobre, sem ouro nem petróleo, entretanto, até Porche circula nas suas estradas.
- ROSÁRIA – Mónica, muitos que hoje andam de Prado, com vidro fumado e computador de bordo, o pai deles nem de burro andavam porque não podiam comprar um feixe de palha para pastar o pobre asno. E eles são ricos hoje. Ou melhor: são Políticos.
- JOAQUIM – Deus é grande.
DRA. MÓNICA – Grande e detentor de justa balança. Balança que não pende de nenhum lado que não seja na justa direção.
- JOAQUIM – Antes de darem entrada do processo nas Instâncias Internacionais, centrem-se firmemente no recurso interposto pelo Procurador que pede a anulação da sentença que condena o Estado a indemnizar as vítimas. Os advogados dos Polícias e dos Diretores, também invocam a nulidade processual e, consequentemente, a anulação da sentença.
- ROSÁRIA – Eu e a Mónica, já pela semana que vem, iremos dar entrada com um processo, por enquanto, contra o Estado.
- JOAQUIM – E não se descuram de reportar os indícios de corrupção, de abuso de autoridade e de furtos dentro da estrutura judicial que constatamos durante o julgamento sumário que oresidi, cujo recurso tende legitima-los.
- ROSÁRIA – Esta terra é de saudade, minha gente. Aqui o pobre, o infortunado desgraçado, está condenado a soterrar-se e expelir o seu último fôlego no fundo do poço e no meio do lamaçal.
DRA. MÓNICA – Tão-somente porque aqui não se fazem justiça.
- JOAQUIM – Não se esqueçam também de invocar o homicídio… o fuzilamento feito pelos inspetores da PJ àquele cidadão em Palmarejo, por se suspeitarem de que havia sido ele o homicida da mãe de uma Inspetora da PJ.
- ROSÁRIA – Já temos o esboço da petição toda feita. Focamos, sumamente, nesses casos e nos das crianças desaparecidas.
DRA. MÓNICA – Sobretudo, esses casos de crianças desaparecidas. O Procurador-Geral da República tem o dever profissional de provar onde elas estão, já que afirmou perentória e publicamente, perante as câmaras de nossa Televisão, que as crianças estavam bem e todas vivas.
- JOAQUIM – Mas por que não solicitaram apoio a outros países?
DRA. MÓNICA – Como Portugal, por exemplo! Tenho um colega que é da PJ Portuguesa, um exímio criminalista, que me disse que esteve em Cabo Verde na altura em que algumas crianças desapareceram e, também logo a seguir ao bárbaro assassinato do Edmilson Tavares, mas que nunca lhe foi pedido qualquer apoio na investigação.
- ROSÁRIA – O nosso foco, neste primeiro momento, é na exumação do cadáver do Edmilson e na realização da autópsia, custe o que custar. Em suma, a nossa atenção irá toda ela centrada na descoberta da verdade material do ato. Depois veremos quem foi o autor moral ou o mandante.
- JOAQUIM – Não se esqueçam de requerer a exumação do cadáver da Xia para terem a certeza se ela foi morta pelo Paulito e Danilson.
DRA. MÓNICA – Evidentemente.
- JOAQUIM (olha para o relógio) – Deixem-me ir, por que tenho muita coisa por arrumar e ainda tenho que telefonar a minha mãe.
- ROSÁRIA – É verdade. Não vai haver despedida?
- JOAQUIM – Acho que não. Não há condições anímicas. Lembra-te que vou daqui quase corrido!
DRA. MÓNICA – Vou ter contigo mais logo.
- ROSÁRIA – Eu acompanho a Mónica.
- JOAQUIM – Fico à vossa espera.
- ROSÁRIA – Nesta óra di bai, e pela forma como vais, convém manteres em alerta máxima. O teu amigo já deve também ter conhecimento de que vais presidir a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.
DRA. MÓNICA – Não apagues nunca a luz do átrio da tua residência. E mantém a câmara de vigilância sempre ligada. E o telemóvel também sempre disponível.
Despedem-se e o pano fecha.
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