Obra em crioulo satiriza a sociedade em Cabo Verde, com personagens inspiradas em figuras conhecidas do país. Segundo o autor, "pode ser um romance em verso, um panfleto político ou uma meditação filosófica".
"E KA LOBU KI FASE – Tratadu di grandeza i mizéria di pátria kabuverdi" é a primeira obra do poeta e combatente da liberdade José Luiz Tavares, escrita diretamente em língua cabo-verdiana. O livro de cerca de 400 páginas, integralmente no idioma territorial de Cabo Verde, toma como personagens figuras bem conhecidas da cena política, social, cultural e intelectual cabo-verdiana, "utilizando técnicas da tragédia grega, entre as quais o uso omnisciente do coro, em versos rimados e metrificados".
Com recurso ao alfabeto oficial das ilhas, o autor coloca nas páginas desta obra "delirantes reflexões sobre as feridas da pátria", satirizando a sociedade cabo-verdiana no sentido construtivo, sem nada inventar sobre a realidade local. O livro, inspirado no "Ciclo do Lobo e do Chibinho" – heróis da caboverdianidade que não falam português –, nasceu de uma encomenda da representação da União Europeia em Cabo Verde para a valorização de contos tradicionais das ilhas.
"Nada que está nele é inventado", afirmou José Luiz Tavares, durante a apresentação ao público esta sexta-feira (03.06), no Centro Cultural de Cabo Verde (CCCV) em Lisboa.
"O lobo estava no palco a contar a sua história", recorda um dos episódios registados na obra. "Como nessa altura estávamos próximos das eleições legislativas de 2021 em Cabo Verde, há um personagem, um político em campanha, que aparece e invade o palco", dominando o discurso do lobo. "Aí começam a aparecer personagens da vida real que acabam por transformar-se nos verdadeiros lobos", explica em entrevista à DW, salvaguardando que [eles] "nada tinham a ver com os lobos das estórias tradicionais".
Amílcar Cabral entre os personagens
Foi assim que a escrita foi sendo ampliada até chegar a estas ambiciosas 400 páginas em crioulo. Nelas aparecem, entre outras, figuras como Amílcar Cabral, líder histórico da luta pelas independências de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, e o controverso Onésimo Silveira, político, diplomata, escritor e tradutor, que foi o primeiro presidente da Câmara Municipal do Mindelo (1992).
De acordo com o autor, todos os personagens são facilmente reconhecíveis na obra, não só pelas ações desenvolvidas ao longo do conto, baseado nas estórias contadas por pessoas que frequentam uma taberna ou o mercado. "Este livro pode ser um romance em verso, pode ser um panfleto político, poder ser uma meditação filosófica. Ele contém tudo", adianta o escritor que prefere ser chamado de poeta.
José Luiz Tavares explica mais adiante que "o propósito mais político veio a posteriori". Já à partida, o objetivo era elevar o patamar do crioulo cabo-verdiano. E isto leva o autor a afirmar que "este livro é capaz de estar acima de todos" os que escreveu em língua portuguesa, "porque acaba por ser uma síntese" de tudo aquilo que produziu até agora.
Admite que deu este passo ao escrever esta obra numa das variantes do crioulo cabo-verdiano por via do traquejo que ganhou das traduções que foi fazendo antes, nomeadamente de Camões, Fernando Pessoa e Shakespeare. De acordo com Tavares, é um livro para a história, para a memória e dignidade da cultura de Cabo Verde, cujo texto pode ser também transplantado ou adaptado para o teatro.
Lançamento também em Tarrafal
O lançamento contou com a presença de José dos Reis, presidente da Câmara Municipal de Tarrafal/Santiago, que destacou o lugar do poeta na literatura de Cabo Verde, considerando-o "um escritor transnacional" que não se circunscreve ao espaço geográfico de língua portuguesa, cuja obra em crioulo tem um potencial universal. O autarca anunciou que muito em breve o livro também será apresentado naquele município onde nasceu o poeta, igualmente visto como um crítico social que reafirmou não ser seu desejo candidatar-se a Presidente da República.
José Luiz Tavares nasceu a 10 de Junho de 1967, no Tarrafal, ilha de Santiago, Cabo Verde. Já publicou várias obras, entre as quais "Paraíso Apagado por um Trovão" (Lisboa, 2003); "Agreste Matéria Mundo" (Porto, 2004); "Lisbon Blues seguido de Desarmonia" (S. Paulo, 2008) e "Cabotagem & Ressaca" (Maputo, 2008), tendo sido agraciado com vários prémios distintos. Houve distinções que rejeitou aceitar por convicção, entre os quais o estatuto de Cidadão Honorário da Cidade Velha e uma homenagem do Congresso de Quadros Cabo-verdianos na Diáspora.
Os seus poemas estão traduzidos para inglês, espanhol, francês, alemão, neerlandês, italiano, catalão, letão, finlandês, russo, mandarim e galês.
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