VIII CENA
Joana encontra-se com Hauviette que lhe explica o equívoco.
HAUVIETTE – Joana, era por Maria que o Emílio chamava e não por ti. Houve confusão. A Maria é que tinha de ir a casa, mas só se soube isso depois de tu teres partido. Ela pede-te que não fiques zangada.
JOANA – Não, não fico zangada.
HAUVIETTE – Então porque estás tão séria?
JOANA (limita-se a sorrir e continua a pensar) – Não, isto é um segredo só meu; não quero que ninguém mais o conheça.
HAUVIETTE – Mas as amigas servem para ocasiões difíceis e não para oportunidades eguístas, Joana. Não te ressintas desta forma tão isolada. Afinal, sou tua amiga.
JOANA – Obrigada, Hauviette. Alegro-me ouvir estas tuas lindas palavras. Mas estou bem. Não é nada que te possa deixar inquieta. Tá?
HAUVIETTE – Tá bem. Tu é que sabes. Adeus.
JOANA – Adeus.
Afastam-se uma da outra em direção oposta.
IX CENA
Uma noite, o quarto da Joana enche-se de repente de uma luz brilhante e, ela ouve umas vozes a chamar por ela, enquanto dorme.
VOZES – Joana! Escuta, Joana!
JOANA (dá um salto da cama e surpreende-se com três figuras vestidas de branco) – Três Anjos! Não; um Anjo e duas Santas; e sei quem eles são: Arcanjo São Miguel, Santa Catarina e a Santa Margarida.
SANTA CATARINA (a sorrir) – Sê boa, Joana.
SANTA MARGARIDA – Prepara-te.
ANJO GABRIEL - A tua hora chegará.
JOANA (pestaneja e a visão desvanece. Põe-se de joelhos e começa a rezar) –
«Meu Anjo e minhas Santas,
Meus amigos e protetores
Abrandai essas matanças
Apaziguai as nossas dores.
Protegei a nossa França
Livrai-nos desses ingleses
Lembrai das nossas crianças
Pois elas são muito infelizes.
Que os ingleses voltem à casa
E os franceses vivam em paz.
Que desistam de dar à caça
Ao delfim, que é bom rapaz.
Dai-nos as esperanças
Do fim dessa luta feroz
E guardaremos as lembranças
Da vossa bênção sobre nós».
Ela põe-se de pé, eleva a cara para o Céu, fecha os olhos, e três vozes falam-lhe.
SANTA CATARINA [V. O.] – Joana, Deus deseja que tu corras em auxílio do delfim, e que faças com que ele seja coroado rei de França.
JOANA (amedrontada) – Como poderei ajudar o delfim? Como poderei conseguir que ele seja coroado? Não, não. Porquê eu, que não passo de uma rapariga, uma simples rapariga da aldeia? Nunca o vi! Nem sequer sei onde ele está!
SANTA MARGARIDA [V. O.] – Deus te guiará e tu o verás.
JOANA (receosa) – Oh! Não! A tarefa e demasiado pesada para mim. Nunca a poderei cumprir.
SÃO MIGUEL [V. O.] – É a mais sublime de todas as tarefas, e Deus reservou-a para ti. Tu não podes escolher; tens apenas de obedecer e cumprir a Sua Divina Vontade.
SANTA CATARINA [V. O.] – Terás, apenas, de obedecer durante um ano e Ele ajudar-te-á.
SANTA MARGARIDA [V. O.] – Prepara-te, Joana. A tua hora há-de chegar.
JOANA (eleva a cara e as mãos para o Céu) – Senhor, mostrai-me o caminho. Dai-me a luz.
Cai de joelhos a orar.
X CENA
DURAND – Tio, soube que por cá havia falta de tudo. Por isso, resolvi trazer-vos este saco de farinha e o outro de nabos.
JACQUES – Não há que comer: havemos de reconstruir os nossos lares mas, entretanto, estamos pobres como Job. Obrigado, Durand.
DURAND – A situação está cada vez pior, tio. Não é só cá. Os ingleses estão a avançar sobre a cidade de Orleães.
JACQUES – Se perdermos Orleães, perderemos a guerra. É uma cidade muito importante. É lá que está o capitão Dunois com o exército de delfim.
JOANA – Pai, deixa-me ir amanhã com o primo Durand? Ele já me pediu tantas vezes para visitar a mulher e os filhos!
JACQUES – As raparigas não devem sair de casa, agora. Não é ocasião de andar por fora a fazer visitas.
DURAND – Ora, porque não há-de a pequena ir comigo, tio Jacques? Será menos uma boca na sua casa… teremos cuidado com ela, descanse.
JOANA – Deixe-me ir, meu pai, ainda que seja por oito ou quinze dias.
JACQUES – Está bem; vai, então. Mas só por uma ou duas semanas.
JOANA (abraça o pai e dá-lhe um beijo) – Muito obrigado, papá!
Joana entra a correr para o seu quarto, Jaques e Durand entreolham-se e trocam sorrisos.
XI CENA
Pelo caminho.
JOANA – Primo Durand, vamos por esta azinhaga.
DURAND – Não pode ser. Por aí não vamos ter à minha casa.
JOANA (sorrindo docemente) – Sei que não é o caminho para tua casa. E eu não vou para lá hoje, primio. Vou a Vaucouleurs.
DURAND – Vaucoleurs?
JOANA – Sim, para ver o delfim.
DURAND – O delfim?
JOANA – Oh, primo! Pareces um papagaio a repetir o que eu digo!
DURAND – E tu pareces uma tolinha. Onde queres tu chegar? Que brincadeira é essa, Joana?
JOANA – Não é brincadeira nenhuma, primo. Vou auxiliar o delfim. Farei com que ele seja coroado rei e combaterei pela França contra os Ingleses.
DURAND – Tu não estás boa da cabeça!
JOANA – Estou, primo, estou.
DURAND – Estás doente ou sonhas!
JOANA – Não, primo, estou boa e bem acordada.
DURAND – Mas o delfim não está em Vaucouleurs.
JOANA – Eu sei; mas está o governador e ele me dirá como o hei-de encontrar. Anda, lá, Durand.
DURAND – Não posso fazer isso.
JOANA – Por favor. (Chora) Se não me levar lá, terei de ir sozinha.
DURAND – Porque enganaste teu pai, pedindo para ires a minha casa, quando pensavas fazer outra coisa?
JOANA – Enganei-o porque assim foi preciso. O primo conhece-o, sabe como ele é severo e quais as suas ideias sobre as raparigas.
DURAND (coça o queixo) – Tu nunca poderás chegar junto do delfim. Ele é um príncipe e tu não passas de uma pequena aldeã. Já pensaste nisso?
JOANA – Já.
DURAND – E já pensaste que o governador pode recusar receber-te.
JOANA – Já pensei em tudo e tudo considerei, mas sei que devo tentar ver o governador e pedir-lhe que me leve junto do delfim.
DURAND – Mas como sabes tu isso, pequena?
JOANA – Garanto-te que tudo isto está bem claro na minha mente, mas não posso explicar-te mais nada. Vamos primo, conduz-me a Vaucouleurs!
DURAND (encolhe os ombros e segue em Direção a Vaucouleurs) – Seja.
JOANA – Nunca terás de que te arrependeres, Durand. É Deus que me envia.
O primo não responde, entretanto, obdece-lhe.
XII CENA
Ao aproximar-se de um quartel, de noite, um soldado de nome Metz sai do escuro, usando um gorro enfeitado com uma pena e uma espada pendurada ao cinturão.
METZ – Quem vem lá?
JOANA – Joana d’Arc. Desejo falar ao governador.
METZ – E o teu companheiro, quem é?
JOANA – É o meu primo, Durand Laxart, lavrador na Lorena. E o senhor quem é?
METZ (tira o gorro e faz uma grande reverência, sorrindo) – Sou João de Metz, um soldado. Que desejas do governador?
JOANA – O que quero dizer é a ele e não a si.
METZ – Eia! A menina tem língua bastante aguçada. Bem, não é provável que o governador te possa dispensar um dos seus preciosos minutos. No entanto, vou perguntar. (Sai e volta pouco depois) Era o que eu pensava. O capitão Baudricourt está, hoje, pior do que um urso. Disse-me que te mandasse embora.
JOANA – Pode ser que ele amanhã, esteja mais bem-disposto, e eu seja mais feliz…
METZ – E pode ser que não. O correio trouxe-lhe, hoje, uma carta com notícias da guerra… desde então, resmunga por tudo e por nada.
Enquanto Joana ajusta o lenço à cabeça, vê um homem alto e barbudo a passar.
JOANA – Oh! Mas é Bertrand! Bertrand, já não se lembra de mim?
BERTRAND – Joana?! Lembro-me muito bem; não esquecerei, nunca, a sua gentileza. (Chega mais perto) Que faz aqui a conversar com João Metz?
METZ – Ela desejava falar com Baudricourt, mas o governador está como uma fúria e não a quis receber.
JOANA – Bertrand, tenho de falar com o governador. Não posso ir-me embora antes disso. Veja se consegue que ele me receba.
BERTRAND – Tu explicaste ao governador que esta menina é filha de Jacques d’Arc?
METZ – Não, porque o não sabia. Apenas lhe disse que estava aqui uma menina de olhos negros.
JOANA – Bertrand, vá o senhor pedir-lhe, pode ser que ele o atenda.
BERTRAND (encolhe os ombros) – Está bem, tenho de obedecer, embora talvez apanhe algum pontapé que me faça ver as estrelas.
Sai.
XIII CENA
No gabinete do governador, ele está sentado à sua secretária lendo uma carta à luz de uma vela. Levanta a cara para os recém-chegados.
BAUDRICOURT – Tu és filha de Jacques d’Arc?
JOANA – Sou, sim, senhor governador. (Faz reverência) Mas meu pai não sabe que eu estou aqui, na cidade.
BAUDRICOURT – Que é que me queres?
JOANA – Desejo saber onde está o delfim; o senhor deve mandar-me junto dele. Deus escolheu-me para o fazer coroar rei de França
BAUDRICOURT (franze a testa ameaçadora) – Então, é esse o grande assunto que te trouxe junto de mim?
JOANA – É, sim, senhor governador.
BAUDRICOURT – Parvoíces! Vai para casa!
JOANA – Gostaria de o poder fazer, senhor, gostaria que Deus não me tivesse dado este fardo tão pesado e de que eu me sinto indigna. Mas tenho de Lhe obedecer. Onde está o delfim, senhor? Peço-lhe que me faça chegar junto dele.
BAUDRICOURT (furioso, para Durand) – E você, lavrador? Foi você que trouxe esta rapariga a Vaucouleurs?
DURAND (muito embaraçado) – Fui, sim, senhor. Desculpe, agora vejo que talvez não a devesse ter trazido.
BAUDRICOURT – Ela é uma demente! Uma verdadeira tresloucada.
DURAND – Talvez. Devo dizer-lhe, porém, que segundo uma velha profecia da Lorena será uma donzela da região do bosque de Chenu quem salvará a França. Ora, Joana é de lá. Não será ela a predestinada?
BAUDRICOURT (dá um murro na secretária que faz saltar o tinteiro e cair no chão a carta que lia quando eles entraram) – Asneiras! Parvoíces! Vocês são ambos loucos; vão-se embora! Ponham-se na rua!
JOANA (com olhos flamejantes) – O senhor não me mete medo. Repito-lhe que o delfim precisa de mim, assim como a França. Neste momento estão os ingleses a sitiar Orleães e o senhor acaba de saber de uma batalha onde os nossos soldados, apesar de terem lutado heroicamente, foram batidos. Com o auxílio de Deus eu levantarei o cerco de Orleães. Vamos, porque perde tempo? Diga onde está o delfim.
BAUDRICOURT (atónito, olha para Joana) – Quem te deu essas informações acerca da batalha?
JOANA – Não lhe contarei mais nada.
BAUDRICOURT – Tu leste esta carta?
JOANA – Não li, nem poderia lê-la porque não sei ler.
BAUDRICOURT – Ocupas-te de feitiçarias?
JOANA – Nunca acreditei em feitiçarias. Só acredito em Deus e sei que o senhor também acredita n’Ele; por isso, é seu dever mandar-me ao delfim.
BAUDRICOURT (berrando) – Bertrand, põe esses doidos daqui para fora; despacha-os para a Lorena e escreve a Jacques d’Arc, dizendo-lhe que dê umas chibatadas na rapariga, pelo seu atrevimento.
BERTRAND – Venha, Joana, venha Laxart. (Saem acompanhados de Metz) Lamento muito, Joana. Se pudesse, eu próprio a levaria junto do delfim.
METZ – E eu que vos acompanhava! Gosto da tua coragem, Joana. Quem sabe se não serás, realmente, a donzela da profecia?
JOANA – Silêncio, meus amigos. O governador está na varanda, vê-se bem daqui. Primo, amanhã volte para casa, que eu fico em Vaucouleurs por mais uns dias.
Despedem-se e saem.
XIV CENA
No gabinete do governador, que agora está mais domado.
BAUDRICOURT – Pequena, não sei quem foi falar ao delfim de ti, ele mandou-me uma mensagem que está no Castelo de Chinon e espera-te. Podes ir lá falar-lhe.
JOANA – Oh! Muito obrigada, senhor. Muito obrigado.
BAUDRICOURT – Mas não podes ir só. Chinon fica a mais de trezentos quilómetros de Vaucouleurs. A viagem é dura e perigosa.
BERTRAND – Eu, me ofereço para acompanhá-la.
METZ – Eu também vou com eles, se o senhor governador autorizar.
BAUDRICOURT – Com certeza que autorizo. E irão convosco mais quatro soldados. Se quiserem podem partir já. Depois vou lá ter convosco.
Baudricourt sai primeiro e os outros saem depois.
XV CENA
Numa sala, Joana vê ao fundo, sentados em cadeiras estufadas de veludo, três homens sumptuosamente vestidos, com colares de ouro e ricas capas sobre os ombros. Ela aproxima-se deles e olha-os fixamente, sem os cumprimentar. Segue depois em volta do salão e para em frente de um jovem que se esconde entre a multidão. O jovem traja um fato usado, sem jóias ou enfeites. Joana ajoelha a seus pés.
JOANA – Nobre delfim, eu sou Joana, a donzela…
Todos ficam a olhar com espanto.
BAUDRICOURT [V. O.] – «Que coisa estranha! Como é que ela pôde saber que era o delfim?»
DELFIM – Como me reconheceste? Foi de propósito que mandei para o estrado três dos meus fidalgos mais imponentes, e me escondi no meio dos outros. Esperava que tu julgasses que um deles era eu. Como conseguiste descobrir-me?
JOANA – Foram as minhas vozes do Céu que me guiaram, nobre príncipe.
DELFIM – As tuas vozes do Céu?
JOANA – Incumbiram-me de três coisas: devo juntar-me aos vossos capitães e levantar o cerco de Orleães; tenho de vos levar a Reims a fim de serdes coroado; em seguida, devo fazer guerra ao invasor até que ele abandone a França e regresse ao seu país
DELFIM – Está bem. Já que assim o desejas, irás a Orleães, onde te permito que tentes levantar o cerco.
JOANA – Bertrand de Poulengy e João de Metz vão comigo. Partirei hoje.
DELFIM – Não, não. Hoje não. Não vejo razão para tanta pressa.
JOANA – Oh! Sim, sire, há, mesmo, muita urgência em partir. Os ingleses estão às portas da cidade e fecharam os vossos homens dentro das muralhas. Pensai nos vossos leais súbditos de Orleães! Se a cidade se render, milhares deles serão feitos prisioneiros e, talvez, assassinados.
DELFIM (tamborilando com os dedos no braço da cadeira) – Tenho de consultar os meus conselheiros.
JOANA – Nobre príncipe, o tempo é precioso. A graça de Deus só me guiará durante um ano. Não posso desperdiçar o meu tempo na ociosidade.
DELFIM – Olha Joana, precisas de aprender a teres paciência. Vai descansar durante uns dias, tempo para eu pensar devidamente. O duque de Alençon chegará daqui há duas semanas, ajudar-nos-á a organizar a entrada em Orleães.
Joana levanta-se, faz uma vénia ao delfim e sai.
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