Ás portas do meu inferno
Cultura

Ás portas do meu inferno

 

A mosca da minha moralidade

Tive a minha mosca de estimação. Coabitei com uma mosca que me suscitou questões, por assim dizer, morais. E fez-me perceber alguns humanos.

Somos feitos de tentações. Somos sempre duais entre o que achamos ser o Bem e o que achamos ser o Mal, a morte e a vida, a consonância e a dissonância, a consciência e a inconsciência.

Aquela ia voando, como também deixando algumas mosquinhas (filhinhas presumo) pelo meu dormitório. As mosquinhas, pela manhã seguinte, juntavam-se ao distante alvo teto da cozinha e partiam janela aberta. Quando a noite chegava e me aninhava ao sono, lá surgia ela do meio do nada que me provocava sentimentos e pequenas reações (era tudo um problema de peles e ouvidos), mas sempre suscitando dúvidas existenciais. Até que houve uma noite em que ela fez uma aproximação além do incomodativo às minhas peles e ouvidos.

Se até então julgava-me respeitador e tolerante, coabitando o mesmo espaço de descanso noturno, naquela fatídica noite perdi-me. Não a quis mais. Quis que desaparecesse imediatamente, porque incomodava-me: aquela presença no meu dormitório muitas vezes irrequieta. E desapareceu mesmo.

Ao meu lado havia estado uma camisola interior, branca, de flanela e de longas mangas que tornou-se adorno de candeeiro de teto. Deixei de ter a minha mosca de estimação. Lembrei-me, depois, das filhinhas.

VERÃO NO MEU INVERNO

Que as chamas das mortes

Concretas ausências das sortes

Se façam as chamas do arrependimento purificado

Venha o verão no meu inverno

Não haverá senão

Não haverá inferno

O CADERNO QUE NÃO ESTÁ EM BRANCO

I

Por esta alma assustada (trocando o “lê” fica em lama)

Percorre esse espírito amachucado

Quando a um caderno em branco pega

Dificilmente fica se desatar a riscá-lo

II

Por esta verde penagráfica penso

Em meu julgamento

Que a questão não é o dinheiro somente

É o entusiamo que se coloca na realização de todas as coisas

Começando por aquelas que nos são intuitivas

E se apresentam mais simples ao quotidiano

III

Por esta alma assustada

Percorre esse espírito amachucado

Olha o caderno que não está em branco

 

ÀS PORTAS DO MEU INFERNO

I

Às portas do meu inferno está inflamado o suplemento de um eriçado verão

Almas adormecidas no invernoso clima choroso

Se veem subitamente agitadas por espíritos sobressaltados

Na mágoa funda da morte precipitada

Do precipício de um fechamento primaveril

Na mais vil alegoria de dolorosa cesariana

II

Às portas do meu inferno

Não está o tempo do meu inverno

Está um verão no seu suplemento eriçado

À sua aproximação não o quero mais inflamado

MORRER ANTES DA VIDA

Vamos aí pelas vielas e ruelas sinuosas

Escuras, tenebrosas

Inculpadas do mundo dos culpados

De dedo em riste

Espelhado ao outro

Inflamado em chamas queimantes

Esquecendo-nos

Nós, outra vez, do que é fundamental e essencial para a vida

Vamos continuar a morrer antes que elas cheguem

A vida e a morte!

É que ainda não vivemos

Andamos pela antecâmara da sob vivência

Arriscando-nos a morrer antes da vida

O que diriam os poetas mais antigos sobre este país.

E D. Dinis? E Camões? Já imaginaram?

 

AI LIXOS DO MEU CORAÇÃO

Não me levem abaixo do que são...

Ai senhor Pinheiro

Não te deixam inteiro

Mais vale o nosso dinheiro

Deslizado ao cheiroso eucalipto

Que também é para tirar o ímpeto...

Nessas viagens à nossa Terra

Onde agora se viaja de moto-serra

Para que não caia acendalha

Na tola de algum canalha.

FOGUETÓRIO

I

Vai começar o foguetório

Protejam-se das fagulhas

Antes que chegue o velório

Como mortais agulhas

Projéteis de fogos reais

Irão cair sobre nossos fetais

II

Lançados em toda direção

Em busca de que em vão tudo fique

Na concretização de mais um milhão

PARA ONDE

Onde está o sustento deste mundo e do universo

As naturezas divergem no dano

Mas infligem-no aos mesmos alvos

Aos mesmos sujeitos

Instrumentos diferentes, variados

Vaiados pela orquestra celeste

Para dar cabo da ordem natural instituída

Casas que estoiram

Prédios humanos que carbonizam

Florestas que matam a ferro e fogo

Elas incendiárias atacam o alcatrão das estradas

Estradas se fazem túneis incineradores

Bombas vão espatifando a harmonia dos tempos

De conquistas irrepetíveis

Não vamos deixar derreter o queijo

Apesar de saboroso quando é de vaca, de cabra e mesmo misto, mestiço

Nadas, criadas e desmamadas em verdes pardos

Rodeados de frondescentes árvores

Parecemos ser o nosso próprio buraco negro

Suga-se ao filamento

Que pelo esparguete ninado nos encaminhará ao pó dos cometas

E das rochas espaciais

De um outro universo, pós buraco

II

A negatividade impele-me a não escrever

Ficar lerdo

Escrever negativo, olhado pela positividade

Pasmado, a pasmar

Se me olhassem, vendo o meu interior

Veriam uma borbulha muito amarela, de amarelo desmaiado

Em pus cansado viscoso

Brotando por lentíssimos espasmos

Borbulhando como as nascentes ferventes

Que de lama quente fervida vão

Soluçadamente ratificando o seu redor

Por manchas cinzas o seu amarelo quebrado

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