Uma estratégia suicida entre o país real e um mundo paralelo
Colunista

Uma estratégia suicida entre o país real e um mundo paralelo

Asseclas do partido do Governo persistem numa linha de ataques pessoais, de tentativas de assassinato de carácter a opositores e de perseguição a jornalistas, que deram errado no passado. Do ponto de vista do marketing político, trata-se de uma estratégia comprovadamente equivocada. E, se as eleições estão no papo, quais as vantagens de dizer que o líder do principal partido da oposição está de rastos, dando-lhe uma exposição pública que, certamente, ele muito agradece? E, já agora, por qual razão retomar velhas promessas requentadas e nunca cumpridas? Será que pensam que os cabo-verdianos são asnos ou têm memória curta? São as contradições de uma estratégia entre o país real e um mundo paralelo.

A manipulação de uma imagem real do líder do PAICV (ali na qualidade de presidente da Câmara Municipal da Praia), posando sorridente para a câmera, entre funcionários da RTC, na Feira Internacional de Cabo Verde, sugerindo maldosamente que seriam jornalistas da empresa, quando se sabe serem integrantes do departamento comercial, ao mesmo tempo que se ocultava uma foto similar com o secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, ilustra bem a natureza de pessoas que se sustentam da mentira e da manipulação para proveito político.

E a situação é tão mais grave quando, como se pode comprovar, a falácia foi propagada por gente com responsabilidades políticas e relevante naquilo a que chamam o “sistema MpD”.

A intenção foi óbvia, continuar por outros meios a insidiosa campanha contra os jornalistas e, em particular, contra os profissionais dos canais públicos de rádio e televisão. E, nesse sentido, a foto de Carlos Santos num painel de publicidade da RTC, por detrás da fotografia, veio mesmo a calhar.

Este é apenas um pormenor, entre muitos, aliás já denunciado por várias pessoas (entre as quais o director deste jornal), mas é bem ilustrativo de que a reiterada retórica indignada de Ulisses Correia e Silva, a propósito da manipulação e das “fake news”, não passa de um truque de cinismo e ilusionismo.

Ainda recentemente, ao discursar na abertura do Fórum Nacional da Juventude (segundo o que veio na imprensa), “o primeiro-ministro aproveitou o momento alertando para o impacto da avalanche de informação nas redes sociais e exigiu leitura crítica face a conteúdos falsos, manipulados ou que provoquem comportamentos de risco entre os jovens”.

Isto, ao mesmo tempo que, em várias ocasiões, posa sorridente ao lado de gente que usa as redes sociais para difamar pessoas, intentar assassinatos de carácter e propagar mentiras e manipulações. É o novo estádio de uma circunstância antiga que, arvorando-se de proprietário da democracia, o partido do Governo sacode para as costas de outros aquilo em que parece ser expert.

Já vimos isso no passado, com reiteradas acusações à governação do principal partido da oposição, imputando-lhe responsabilidades pelas dificuldades do presente, como se esse partido já não tivesse sido julgado nas eleições de 2016, com o eleitorado a depositar a sua confiança em quem jurava a pés juntos “somos diferentes, fazemos diferente”. Ou seja, que iria fazer melhor.

Uma estratégia comprovadamente equivocada

Paralelamente, ao mesmo tempo que insinuam estar o líder da oposição e o seu partido de rastos, avançando supostos resultados de sondagens que nunca ninguém viu e marcando-o diariamente com afirmações que o desabonam, os prosélitos de Ulisses e do partido do Governo mais não têm feito do que vitimizar o pretendente ao cargo de primeiro-ministro, suscitando na opinião pública um efeito contrário ao pretendido.

Que sentido fará atacar diariamente quem dizem estar de rastos e ser completamente imprestável, se estão convencidos que as eleições já estão no papo, “sem djobi para lado”? Nenhum. Não faz nenhum sentido e passa, inclusive, uma imagem contrária levando as pessoas comuns a pensar que as bravatas sobre a vitória de Ulisses são, pelo contrário, manifestações de quem está desesperado, vendo-lhe fugir pelos dedos as mordomias e prebendas do poder.

Do ponto de vista do marketing político, trata-se de uma estratégia comprovadamente equivocada. Se as eleições estão no papo, quais as vantagens de, repetidamente, dizer que o líder do principal partido da oposição está de rastos, dando-lhe uma exposição pública que, certamente, ele muito agradece? O bom-senso aconselharia que, tratando-se de alguém antecipadamente derrotado, melhor seria nem referir o seu nome.

A verdade é que, nas eleições autárquicas de 2020, a estratégia de menosprezar o actual líder da oposição deu errado. Mais tarde, em 2024, ao menosprezo juntaram-se o acinte e os ataques pessoais. O resultado é conhecido: Ulisses e o partido do Governo tiveram a maior derrota política de sempre, empurrando o outrora poderoso partido da capital para fora da vereação.

E, no caso do primeiro-ministro, à derrota política juntou-se uma derrota pessoal, porquanto o “tomar a Praia custe o que custar”, para além da derrota na capital, alargou o desaire eleitoral a todo o país, colocando pela primeira vez o principal partido da oposição como a maior força autárquica de Cabo Verde.

Porquê persistir numa estratégia que o passado já confirmou ser comprovadamente equivocada? Parece incompreensível, mas talvez os génios do marketing e da comunicação do partido do Governo possam explicar…

Promessas requentadas e ilusionismo

Errada é, de igual modo, a insistência de promessas eleitorais que, grosso modo, têm como horizonte de implementação 2026, o ano das próximas eleições legislativas. São promessas requentadas, muitas delas recuperadas de 2016 e embrulhadas com toques de ilusionismo, pretendendo passar a ideia de que “agora é que é”.

É uma componente da estratégia mais geral que, dificilmente, terá condições para vingar. E a razão é simples: as pessoas comuns têm cada vez menos memória curta e percebem que quem promete, agora, o que não teve capacidade de fazer durante dez anos, não estará de boa-fé. E não há seca, pandemia, guerra na Ucrânia ou conflito na Faixa de Gaza que safe a oratória.

E nem vale a pena enunciar o vasto lote de promessas não cumpridas, recuperadas agora que estamos a poucos meses das eleições. Também não valerá perder tempo com a evidentíssima falta de visão no que respeita aos transportes aéreos e marítimos, com o Governo a perder uma década a “tapar buracos” e a acudir a contingências pontuais de uma estratégia nacional inexistente. Ou, ainda, a falta de visão no que respeita à mobilização de água e as reiteradas crises no fornecimento de energia que fazem da vida das pessoas um inferno e afastam o investimento.

Ou, por último, a prestigiação em matéria de políticas públicas para os jovens e o emprego, que provocou a debandada de milhares de cabo-verdianos para o exterior, colocando em situação de mão-de-obra deficitária setores tão importantes como a pesca, a agricultura, a construção civil, a hotelaria e restauração, mas também o comércio e, até mesmo, o funcionalismo público, baixando artificialmente os números do desemprego.

Romper com o “entreguismo” e o “crescimento da economia” só para alguns

Em termos de futuro, parece-me evidente que este modelo de governação está esgotado e não só propriamente no que respeita ao Governo de turno que, num contexto mais amplo, já se apresenta irrelevante, desde logo porque teima em persistir nas mesmas soluções que, assim indicam os estudos de opinião, são consideradas erradas pela maioria dos cabo-verdianos. Soluções, aliás, cujo resultado se traduz no enriquecimento de uns poucos, deixando a esmagadora maioria da população de fora do desenvolvimento.

Projetar o futuro, implica a ideia de um país em que todas e todos são importantes para o progresso social e o desenvolvimento de Cabo Verde, o que passa por colocar os mais desfavorecidos no orçamento, resgatando-os da pobreza, diminuindo as assimetrias sociais, numa economia que esteja ao serviço das pessoas, que rompa com o assistencialismo – a base sistémica da compra de consciências –, que gere efectivamente emprego – e emprego com direitos - e se posicione numa linha patriótica que defina os sectores estratégicos e os entenda como questões de soberania nacional determinantes para o desenvolvimento do país.

Um novo modelo de governação

Construir um novo modelo de governação corresponde a uma nova agenda de desenvolvimento que resgate Cabo Verde das políticas “entreguistas” que têm vindo a desbaratar os recursos públicos e os activos do Estado, beneficiando uma minoria de detentores do capital, principalmente do capital estrangeiro, e que cria uma rede larvar de corrupção que cobra, inclusive, comissões e participações em negócios do investimento externo.

Significa isto que é urgente empreender um novo rumo em sectores determinantes para o desenvolvimento do país e colocar o futuro de Cabo Verde nas mãos dos cidadãos, levando a novos patamares a independência administrativa e política do país. E isso só se consegue dando corpo e substância a uma nova vaga de fundo que una o povo cabo-verdiano sob a bandeira de novos desígnios nacionais.

Num cenário de desgaste acentuado deste Governo, o mais fácil é ganhar as eleições, independentemente de quem seja o líder da oposição. Aliás, já tínhamos visto isso em 2016. Não se repetindo, a História tem evidentes pontos de confluência.

Sou de opinião que o importante é saber se quem ganhar as eleições está disponível para mudar de políticas, colocando a governação ao serviço do povo e do país, numa clara linha de ruptura com o modelo de prevalecente e construindo uma nova visão de sociedade. E, desde logo, rompendo com a empresarialização e a ideia perversa de que tudo tem de dar lucro, mesmo que sejam serviços públicos essenciais acobertados por direitos constitucionais.

O ensino, os transportes, a saúde, a cultura, a energia e a água, por exemplo, não podem ser entendidos numa lógica empresarial, sobrepondo o lucro ao interesse público. Tão-pouco, a lógica deve ser de entrega a privados de setores fundamentais para a vida dos cidadãos. Os sectores essenciais não são empresas e as pessoas não são números.

Aliás, essa ideia da empresarialização e do primado do lucro não são mais do que novas formas de totalitarismo, trazidas no bojo do neo-liberalismo, responsável em quase todo o mundo pelo crescimento da pobreza e pela concentração da riqueza em cada vez menos pessoas.

Parece-me que é em torno desta necessidade de ruptura que o debate público pré-eleitoral deve ser recentrado, sem receio de clarificação política e ideológica. Isto é, sem medos de afrontar a paz sistémica dos “cemitérios” … e deixando claro ao que se vem e para onde se vai.

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