Quem vencer as próximas eleições em Cabo Verde herdará uma das mais difíceis tarefas da história política recente do arquipélago. O próximo governo encontrará um país mergulhado na lama, desprovido de recursos financeiros, desgastado por uma década de promessas incumpridas e com problemas estruturantes por resolver nos domínios da energia, do emprego, dos transportes, da saúde, da segurança e, sobretudo, da credibilidade social. Esse legado exigirá mais do que medidas paliativas: será imprescindível uma auditoria forense às finanças públicas e às decisões estratégicas da última década, acompanhada de responsabilização judicial de todos os protagonistas dessa grande farsa de governação.
A crise atual não surge como um acaso ou mero reflexo das circunstâncias internacionais. É, antes de mais, expressão de uma governação centrada em promessas retóricas e em intervenções avulsas, que nunca enfrentaram seriamente os desafios estruturais do arquipélago. Ulisses Correia e Silva chegou ao poder impulsionado pela esperança popular de renovação e modernização do Estado. Porém, dez anos de exercício revelaram uma falência estratégica evidente: em vez de robustecer as fundações da nação, a governação vacilou perante cada crise e acabou por agravar desigualdades, adensar fragilidades e perpetuar ciclos de dependência.
Transportes: a metáfora da paralisia
Em Cabo Verde, a problemática dos transportes deve ser entendida não como mera questão logística, mas como o eixo vital da coesão territorial e social. A promessa de transformar o país num hub aéreo internacional, com uma frota de Boeings projetando o arquipélago para o mundo, tornou-se um símbolo da dissonância entre intenção e realidade. Passada uma década, o feito celebrado é a chegada de dois pequenos ATR alugados, tratados como conquistas grandiosas, mas que revelam o empobrecimento das ambições nacionais. No setor marítimo, onde se poderia desenhar a verdadeira integração das ilhas, a situação é ainda mais penosa: contratos obscuros, com custos avultados e resultados pífios, lesaram o país em milhões de dólares. Num contexto de maior maturidade institucional, teriam desencadeado processos de sindicância imediata. Aqui, apenas alimentaram a sensação de opacidade e a cultura da impunidade.
Corrupção: a normalização do inaceitável
A corrupção, frequentemente tematizada como inimigo público número um, acabou por ser incorporada na própria lógica da governação. O que antes foi denunciado como vício intolerável passou a ser tolerado, quando não diretamente praticado, por membros do governo envolvidos em esquemas empresariais ou negócios de conveniência. O risco mais grave não é apenas o desvio material de recursos, mas o erosionar da ética pública e da confiança social. Em Cabo Verde, como noutras democracias frágeis, a corrupção é a arma silenciosa que mina a legitimidade democrática e a coesão social.
Saúde e pobreza: a economia da precariedade
O setor da saúde oferece uma radiografia fiel desse colapso. Incapaz de responder às necessidades internas, o país continua a depender das evacuações de doentes para o Senegal, num quadro em que os emigrantes cabo-verdianos, em gesto de generosidade permanente, suprem a ausência de proteção social estatal. Quando o governo anunciou a retirada do país do mapa da pobreza extrema, parecia querer agradar aos organismos internacionais, mais do que refletir a situação real da população. Bastou uma chuva forte para desmontar o discurso: milhares de cidadãos continuam a sobreviver em habitações precárias, em condições indignas e desumanas. Recursos financeiros enviados por organizações multilaterais para apoiar vítimas de catástrofes foram, em parte, retidos para uso político, alimentando mecanismos de compra de consciências em vez de verdadeiras políticas de solidariedade.
Juventude e emprego: um vazio sem horizonte
Nenhuma sociedade pode projetar futuro sem oferecer às suas novas gerações perspetivas de vida. Cabo Verde falhou nesse ponto crítico. As promessas de dinamizar a economia e criar emprego qualificado foram substituídas por uma realidade sombria: jovens cada vez mais desmotivados, a abandonar o país ao primeiro sinal de oportunidade no exterior. Este êxodo representa mais do que um fenómeno migratório; simboliza a erosão da esperança coletiva, a fuga silenciosa de energias que poderiam estar a construir o futuro interno do arquipélago. Em paralelo, multiplica-se a sensação de impotência face a um Estado incapaz de responder.
O pecado da retórica
Perante a fadiga de governação, Ulisses Correia recorre a uma arma cada vez mais desgastada: a retórica. Gurus da comunicação são contratados para maquilhar um sistema gasto e produzir ilusão de vitalidade. Mas, como a história repetidamente mostra, quando a realidade social se impõe, palavras deixam de ter efeito. As eleições autárquicas já demonstraram que o eleitorado não se deixa enredar apenas por propaganda. E a insistência em atacar o líder da oposição, amplificada pelo Secretário-Geral, revela vulnerabilidade, não força.
Quem vencer as próximas eleições em Cabo Verde herdará uma das mais difíceis tarefas da história política recente do arquipélago. O próximo governo encontrará um país mergulhado na lama, desprovido de recursos financeiros, desgastado por uma década de promessas incumpridas e com problemas estruturantes por resolver nos domínios da energia, do emprego, dos transportes, da saúde, da segurança e, sobretudo, da credibilidade social. Esse legado exigirá mais do que medidas paliativas: será imprescindível uma auditoria forense às finanças públicas e às decisões estratégicas da última década, acompanhada de responsabilização judicial de todos os protagonistas dessa grande farsa de governação.
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