Um mês após a divulgação pública (18-08-2025) do Parecer sobre o Manual de Língua e Cultura Cabo-verdiana do 10º ano, elaborado pelo Grupo de Trabalho (GT) constituído no seio da Comissão Científica (CC) da Delegação da ALMA-CV em Portugal (DALMA-PT), impõem-se algumas notas de esclarecimento, no contexto atual de tomadas de posição que o contestaram, não devidamente enquadradas e, sobretudo, ofensivas e improdutivas, por não acrescentarem valor ao processo de melhoria do Manual em experimentação. Referimo-nos às intervenções de Fernanda Pratas no dia 17-08-2025 (Buala), republicadas a 21-08-2025 no jornal A Nação, e numa entrevista dada à Inforpress que foi publicada com registo áudio no dia 20-08-2025.
Nota 1 – O Debate sobre o Manual
Após tomar conhecimento da publicação online do Manual, em fevereiro último, e na sequência de algumas críticas inflamadas, divulgadas na comunicação social, o GT da CC assumiu a tarefa de analisar o Manual e sobre ele produzir um parecer cientificamente fundamentado, procurando, assim, contribuir para o sucesso da missão de dotar o ensino e a aprendizagem da língua e da cultura cabo-verdianas de material didático alinhado com os objetivos do programa curricular.
A análise feita pelo GT assentou num amplo debate interno, sobre todas as suas vertentes, em especial sobre a natureza das propostas gráficas das autoras e sobre as questões didático-pedagógicas associadas.
Esse trabalho analítico mobilizou a diversidade de saberes e experiências dos membros do grupo de trabalho, em todas as áreas que interagem na conceção e na elaboração do Manual, enquanto instrumento de suporte do ensino e da aprendizagem da língua materna e da cultura cabo-verdiana.
São saberes e especializações em Linguística, Sociolinguística, Crioulística, Língua Cabo-verdiana e Literatura Cabo-verdiana; em Didática das Línguas, Pedagogia e Desenvolvimento Curricular. São saberes e experiências na conceção e na implementação de projetos bilingues, dentro e fora de Cabo Verde; no exercício da docência de várias disciplinas e da própria língua cabo-verdiana, do ensino básico ao universitário, em Cabo Verde e em Portugal; na formação de docentes e na formação de formadores de formadores; na elaboração, produção e avaliação de material didático; na coordenação de Projetos de Reforma do Ensino Básico e do Ensino Secundário, e da Reforma Curricular, em Cabo Verde; na Avaliação das Aprendizagens e na sua Melhoria Qualitativa. Tudo áreas fundamentais para a implementação do ensino da língua materna no sistema escolar.
Os resultados das intervenções individuais dos membros do GT encontram-se publicados e divulgados em revistas científicas, em fora académicos e seminários; em relatórios das agências financiadoras dos projetos implementados em Cabo Verde; em documentos oficiais sobre matérias fundantes no processo de instrumentalização da língua cabo-verdiana, em Cabo Verde, como as bases para o Alfabeto Unificado ou as bases para a oficialização da língua cabo-verdiana.
Dentro e fora de Cabo Verde, os membros do GT têm sido reconhecidos por instâncias nacionais e internacionais na solicitação de consultoria e de pareceres, alguns desde os primórdios do debate sobre a língua cabo-verdiana.
O Parecer do GT sobre o Manual teve como motivação e propósito fundamentais contribuir, de forma desinteressada, para a sua melhoria, tal como está patente nos objetivos nele claramente expressos e nas sugestões e recomendações apresentadas.
A opção por uma linguagem clara e assertiva, adotada na sua escrita, justifica-se pela necessidade de garantir o entendimento do documento e a sua acessibilidade, por parte de todos os que queiram informar-se e debater sobre o presente Manual e sobre o processo da reforma curricular em curso, em Cabo Verde, e que não são necessariamente especialistas em linguística, como é o caso de muitos membros da ALMA-CV.
É, pois o Manual, não o Parecer, o foco do debate, que deve ser público, porque é ele que está a ser experimentado nas escolas. É ao Manual que devem ser dirigidas as apreciações visando contribuir para a sua melhoria, indo ao encontro do apelo que o Ministro da Educação fez recentemente.
Quanto mais pareceres fundamentados, melhor serviço se presta ao ensino e à causa da língua materna cabo-verdiana.
Nota 2 – A Norma pandialetal
No Manual em experimentação, tem sido a chamada norma de escrita pandialetal a questão que mais reações públicas suscita, nos media. Nele ocupa um espaço importante, por ter sido eleita como veículo exclusivo da interação escrita entre as autoras e os alunos.
A referida norma pandialetal é uma proposta desenquadrada da realidade sociolinguística nacional, em que: i) a língua cabo-verdiana não está padronizada; ii) prevalece o debate a propósito da adoção de uma variedade padrão, apesar da abertura dos falantes às variedades da língua materna; iii) existe um alfabeto oficial, mas ainda faltam outros mecanismos de suporte da escrita da língua, como um vocabulário ortográfico, por exemplo.
Por outro lado, é inoportuna a inclusão da norma de escrita pandialetal numa experimentação que não está formalmente enquadrada num contexto/projeto de investigação; é também inaceitável a apresentação, no âmbito de um Manual, a nível nacional, de propostas de regras de escrita, fora de um debate específico sobre a matéria.
Foi face a essas constatações, que o GT recomendou a não introdução da referida norma, no Manual, sem um estudo aprofundado, mobilizando conhecimento, pensamento crítico e propostas disponíveis.
A ortografia pode ser um instrumento regulado de representação, mas também é uma prática social e cultural complexa. Os linguistas que trabalham com ortografias têm de prestar uma atenção especial aos contextos sociais e culturais em que atuam, como recomendado em Sebba (2007)*.
Nota 3 – Avaliação e validação do Manual
Um parecer sobre um livro didático em processo de experimentação e um artigo científico ou um projeto de investigação, embora tenham em comum o objetivo científico de contribuir para a construção do conhecimento, seguem caminhos diferentes.
Contrariamente ao processo de validação de um artigo científico em contexto de investigação, que inclui a revisão por pares, num processo de experimentação, não existe essa formalidade. A validação acontece, no final do processo, quando são avaliados os resultados da experimentação no terreno, bem como as propostas contidas em pareceres.
A incorporação de sugestões e recomendações do GT, que já está a acontecer, na atual versão corrigida, do Manual, publicada online a 4 de julho, é sinal da pertinência da análise e da sua consistência.
Nota 4 – Pela ética e pela seriedade
A única defesa pública conhecida até à data da norma pandialetal e do Manual está associada à divulgação recente, nos media, de um projeto de investigação sobre a padronização da língua cabo-verdiana, pela sua responsável, Fernanda Pratas, o que indicia que o Manual em experimentação, com as propostas que defende, está a servir de antecâmara ao processo investigativo, em fase de arranque.
Não é sério que a referida investigadora se sirva da dimensão mediática do processo de experimentação para ganhos de visibilidade pessoal, quando, em maio último, esteve presente online numa apresentação pública feita pelo GT do Parecer, ainda em fase de finalização, mas fugiu ao debate, nesse que se constituiu como um espaço próprio e aberto de clarificação, de permuta de ideias, e de enriquecimento.
O Grupo de Trabalho mantém-se firme no seu propósito de contribuir para a valorização e para o engrandecimento da língua cabo-verdiana, através da participação em debates centrados em questões científicas e orientados pela cooperação e pela honestidade intelectual.
Nota 5 – Em conclusão
O Parecer apresenta-se como um contributo do Grupo de Trabalho da Comissão Científica da DALMA-PT para que a língua materna dos cabo-verdianos se cumpra como veículo legítimo e legitimado de comunicação nos variados contextos de uso e instâncias do saber.
Depois de tornar públicas estas notas de esclarecimento, o GT cessa a sua intervenção enquanto grupo, no processo de avaliação do Manual, ciente de que os resultados da experimentação, que desejavelmente serão divulgados, fornecerão os inputs necessários à tomada de decisões no quadro da reforma curricular.
Finalmente, estamos disponíveis para continuar a participar no debate mais amplo sobre a língua cabo-verdiana no ensino, sobre os caminhos da oficialização da língua cabo-verdiana e sobre estratégias de consciencialização e de mobilização pela causa da língua materna. Ao mesmo tempo, exortamos a Direção da ALMA-CV à dinamização do debate no seio da Associação e da comunidade linguística.
O Grupo de Trabalho da Comissão Científica da DALMA-PT
Lisboa, 17 de setembro de 2025
* Sebba, M. (2007). Spelling and society: The culture and politics of orthography around the world. Cambridge University Press.
Informamos que, temporariamente, a funcionalidade de comentários foi desativada no nosso site.
Pedimos desculpa pelo incómodo e agradecemos a compreensão. Estamos a trabalhar para que esta funcionalidade seja reativada em breve.
A equipa do Santiago Magazine