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Repouso do Guerreiro
Colunista

Repouso do Guerreiro

Estou exausto e combalido. A minha casa de eremita está a ser reconstituída, a toda a brida. E nela, retirado dos prazeres do mundo, afasto-me dos pecados da cidade. Será o meu casulo de inexcedível predileção, para retiro meditativo. Depois de imensos anos a combater, para trazer a meu contendo um sovina certificado de sobrevivência, é hora de pendurar a oirada espada, para deixá-la enferrujar a seu magnífico talante. Na minha estância de aprimoramento, renunciarei todos os istmos e vaus, com as suas vielas e sórdidas baiucas, que sempre foram nota dominante do meu percurso. Ainda assim, só me proponho concorrer ao cargo de tardio e casto beato. Santo não serei nunca jamais. O amontoado de máculas na alma não deixará concretizar a pretensiosa aspiração. É difícil converter a tosca aura de impenitente em uma aureola benzida e canonizada, pela generosa iniciativa do rei do alto. Então, a minha morada de castidade será uma espécie de santuário sem santidade.

E vai - como diria Camões - “Este bicho da terra, vil e tão pequeno”. E urge reforçar que, com toda a tença que se lhe deve, já devia estar contente.  Lá, melhorarei a relação com o Demiurgo, aperfeiçoando a minha condição espiritual para, no cômodo estelar e diante do trono de idealidade, me jubilar. Havendo nascido com vocação para o sacerdócio, não é de estranhar que o adventício tenha optado por respirar a monte, finalmente. Uma vida asceta, dorida e pura já me motiva e clama por anuência da minha parte, há bué de tempo. Desta feita, a cela de reclusão não tornará a ser no Cutelo de Espinho e de Sangria. Nem ficará na mística Ribeira de Candura, sob o vigilante olhar de Hórus da minha luzente capela-escola. Muito menos nos limites da minha ilha, de amarelado pôr do sol. Talvez nos arredores da capital, para estar e não estar a contemplar a tumultuosa lide urbana, ao mesmo tempo. Para o meu castelo de redenção, levo alguns aperitivos de mata tempo, como a magoada “Hora de Bai, de NhuTatan”, Cem Anos de Solidão, do eminente Garcia Marques, O Alienígena, de Machado de Assis, O Eleito do Sol, de Arménio Vieira, A Geração da Utopia, de Pepetela, Jardim das Hespérides, de José Lopes e a Paz Perpétua de Immanuel Kant.

Irá comigo o manancial de ensinamento dos seguidores elementais da fé cristã, bem como a esfuziante transmutação de Francisco Sousa Coutinho, de refulgente mundanidade, paraprobo Frei Luiz de Sousa. Ali no ermo, não terei o dom de ubiquidade, mas exporei, na plenitude, o meu ícone escondido, até aqui. Sobretudo, para vizinhos e demandantes do meu deserto. Acho de invulgar fascinação sair da cena de moto próprio e pelo pé que Deus me deu. E para o acervo de pacatos aposentos, puxo alguns fetiches indispensáveis, as sempre formidáveis iguarias, tais que Eneias de Virgílio, o Asno de Ouro de Apuleio, as Etiópicas de Heliodoro, Sobre o Belo e o Correto, de Agostinho de Hipona, o primeiro santo da cristandade com raízes no continente, as Invisíveis Chibatadas Contra o Sísifo Ali Jó, do Inclemente Tecedor de Trevas, A Deslumbrante Ética de Manuel Fernandes Tomás e de Aristides de Sousa Mendes, avocado por Insípido Delenda Não Caído, Almas Mortas de Gogol, o Memorial do Convento, de Saramago, A Unção do Cintilante Prof., José Hermano Saraiva, do Proscrito e Atrevido Adventício, o Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, o Clarimundo de João de Barros, os Lusíadas de Camões e o Retrato de Back Ford, acerca da estaleca do grão Bocage, o árcade da estirpe que bem me kuia.

Para burilar a minha gesta de gratidão, irá comigo a incensada pressa do Mário de Sá Carneiro. Ah! A declaração anti Dantas, do célebre Almada Negreiros, também debaixo da sotaina do peregrino. O Desassossego de Fernando não chega lá. Não chega, porque não quero tédio no domicílio. Para o mirífico domínio, capturo uma plêiade de magníficas relíquias, para minha ambicionada degustação. Segue o terreiro de M’banza Congo, a Sé da Anciã Cidade, o grupo N’Gola Ritmo, com o seu estroso griot de ponta, Vieira Dias, com Belita e Lily Tchumbia, com o solo do Katchás e Jorge Pimpa, na bateria. Os sussurros da musa Lurdes, o choro do Manelona de João Cirilo e do Zeca de Nha Reinalda, pelo pulo do retinto povo negro. Cordeiro da Mata, com o seu madrugador e entusiasmante delapidar de língua nata. E as serenatas de Cesária, Diva Ary, Waldemar e Paulo Flores, para escutar nas silenciosas madrugadas? Oh! Claro que sim. Coladas na retina da minha vista, as efígies de Zacimba e Dona Ginga, da infanta mais abastada da cristandade e da sua docente-camareira, Luísa Sigeia.

 A emergência de Alcipe de Alorna, daprincesa Lex Áurea, contra todas as afrontas de dar à luz sob a batuta de escravatura. Elas e a Cleópatra Selene da Mauritânia, erguidas a modelos de ousadia e de regozijada bandeira ao alto, a esvoaçar de liberdade e ufania, no topo de não retorno à discrepância. O bate que bate, que rebate, da figura de preito, Alda de Sp’rito Santo, com amostras do mesmo teor do seu impoluto confrade ao tempo, Francisco José Tenreiro. Os Picos de Antónia e São Tomé, as bolanhas do arroz e da castanha, a tribuna de vitória das invictas patrícias de Ribeirão Manuel e Mato Engenho, em Santa de Novembro, o parque de Kissama, as Serras da Leba e Gorongosa, as ninfas do Dande e da encosta de Encantada de São Miguel. As vertiginosas Quedas de Kalandula, os miradouros do obelisco de Candelabro, do verdejante e Enlevado Cutelo dos Mosteiros, as Terras do Demo de Aquilino, a Cordilheira de Picante da minha ressequida eira de berço. Infelizmente, não transporei para o local a quinta de Tormes, da assinalada fidalguia do Eça de Queiroz. Contudo, não haverá lacaios e cangalheiros, com eriçada coma de bazófia, para estorvar e atrapalhar. Acompanham-me na jorna os incessantes apuros dos aguerridos gladiadores do arcaico campo da morte lenta, da fibra do maioral Jonatão Chingunji e dos seus pupilos engajados, Pedro Martins e Armando de Calisto. Sem esquecer a praça forte das heroínas, tais que Deolinda, Cármen P´reira, Josina e companhia.

Um outro tanto dos patriotas de Chão Caprino, Joaquim e Alberto Sanches, o Monte de Graciosa, com todos os sinais de agrura e resiliência dos antigos sediciosos, os valentes angolanos, guineenses e crioulos, enclausuradosno meu concelho de penitencia, nos confins do Tarrafal de má memória. Persuado a ir comigo a aragem das terras de Icolo e Bengo e Cabo Ledo, com o afã do combativo Uanhenga Xitu, com a poíesis do Luandino e do Jacinto. Ah resistentes da assanhada masmorra daquele então! Encomendo as amizades do Mendonça, do Gaspar, da Adrícia e do Simbad, para levar. Enfim, a bonita baía de Luanda é uma crescente lua de enzima na tela da minha mente. Se é hora de partir, para espargir o bálsamo no couro e mudar de vida, então, nada de precioso deve ficar à margem da mochila do eremita.

Sigo rumo ao meu destino, com algo de Chiziane e Gungunhana, Craveirinha, BaKaKhosa e Mia Couto. Com a ríspida lembrança de “Nau, nu kata seta”, do irreverente Carlos Schwartz e das inesquecíveis sonoridades da África Negra. Lá, tenho o eco na cabeça de João Seria e as alucinantes habilidades do Baba Sy, o nativo do território, vizinho paredes-meias do meu país. Terão lugar cativo na minha faustosa galeria, a augusta coroação do magnânimo Luthuli, o inaugural e justamente galardoado da Nobel Paz, no espaço da mais velha mãe do mundo. Depois, Leopoldo Sedar Senghor, Miriam Makeba e o magnífico semblante do Madiba depois de solto, o astro universal revigorado e amplamente reconhecido. Eusébio da Silva Ferreira, do meu constantee persistente imaginário, para lutar e vencer na arena. Terei do mesmo modo, em altíssima menção, a Cabeça Calva de Deus, do incontornável Corsino Fortes.

O caderno de encargo do velho Maguchi, com gás na lâmpada pujante, na lívida expressão da exímia trovadora, Yola Semedo, também irá. A Arma da Teoria e a Sagrada Esperança, dos dois irmãos siameses da mesma causa, nunca estarão de fora do meu alforge. Segue na mesma leva o cântico Namoro, da irrupção lírica e sensível do radioso nacionalista, Viriato da Cruz. No retiro, não beberei “de níveas mãos” nenhum vinho de suspeitável salubridade. Apenas terei vagar para lidar com as cenas de cariz memorialista. E lá, nunca carrego um ego exacerbado, que é o diabo absoluto na pele do ser humano. Tendo defronte da minha lente o resumo de vida leve, escrita leve, posso levemente morrer também. No meu Cutelo de Eutimia, não haverá nem celas de Gorée, nem pelourinho da velha urbe, nem o massacre de Batepá. Ah inesquecíveis instantes de judiaria! Tomai isto do lado de uma nomenclatura panegirista, um aedo de pendor africanista, se vos der na gana e na veneta. Pois, comemorar o dia do continente, como se sói dizer, é invocar e ungir os seus filhos de intrépido valor e de insofismável recordação.

Domingos Landim de Barros*

*Um adepto da História e da cultura

Escrito, na Praia, 25/05/2024

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