,,,enquanto escrevo este artigo, centenas de famílias continuam a viver, em São Vicente, em condições habitacionais miseráveis, apesar de, paradoxalmente, muitas delas coabitam paredes meias com (espante-se o leitor) bairros e novos complexos habitacionais que, pese embora se encontrem concluídos, permanecem vazios. É disso exemplo o bairro da Portelinha, construído, dentro dos prazos, pela cooperação chinesa e inaugurado, em janeiro de 2022 com pompa e circunstância pelo Governo de Cabo Verde, sob o olhar incrédulo e desolado da população das redondezas que, há muito se habituou a contar apenas com o presente. Porque, por estas bandas, o futuro talvez já nem a Deus pertença!
Desta vez o Paleio - conversas organizadas pelo Centro Cultural de Mindelo - foi dedicado aos “Outros Bairros - Alto de Bomba”. O tema foi apresentado pelo arquiteto Nuno Flores, coordenador geral da Iniciativa Outros Bairros (IOB) e por dois moradores do bairro.
Não irei discorrer acerca dos objetivos específicos da IOB, pois, apesar de terem decorrido apenas três anos desde o seu início, já muito se disse e escreveu acerca dos seus propósitos.
Não irei percorrer as vicissitudes e os atropelos que, hoje, envolvem este assunto, nem me irei debruçar sobre a forma como a cidade e seus habitantes têm convivido com este tema.
O que me interessa refletir, nesta crónica, é sobre o estado cómico-burlesco, para não dizer trágico, do contexto em que se encontram as populações mais desfavorecidas que, no dia-a-dia, se vêm obrigadas a coabitar com a escassez de recursos económicos, com a fome e com o desemprego.
Proponho que façamos, em jeito de preâmbulo à reflexão, uma pequena viagem no tempo.
Num quente dia de maio, decorria o ano de 2019, os jornais e as redes sociais anunciavam a deslocação de figuras governamentais a Mindelo, tendo como objetivo a apresentação de um plano/projeto para “transformar os bairros informais Alto de Bomba, Canalona, Covoada de Bruxa e Fernando Pó.”
O avião terá saído da Praia, com as proeminentes figuras de estado a bordo. Embalados pela velocidade da aeronave e inebriados pelo entusiasmo mediático, os governantes entenderam ampliar as suas promessas -vamos expandir a ideia do projeto “Outros Bairros” a todo o território nacional. Começaremos aqui em São Vicente para depois levar a todo o território. Esta não é uma obra do Governo, mas de Estado, do Estado de Cabo Verde. Estas foram as palavras, à data, proferidas pela senhora Ministra Eunice Silva.
Como, por estas paragens, os voos não se dispensam, a deslocação, ainda que de pequeno curso, da comitiva governativa a São Vicente, terá conferido boleia a empreiteiros, investidores, “beneméritas” Organizações Não-Governamentais, académicos encartados e um punhado de artistas ativistas de faro bem apurado. Estas figuras fazem sempre questão de acompanhar os eventos deste calibre mediático, para fazerem prospeção de negócios, ainda que tal obrigue a uma deslocação aos territórios “de fala”, os quais, não fora a perspetiva das famigeradas oportunidades, jamais teriam disponibilidade para visitar.
A comitiva, e o séquito pendura, foram recebidos, com sorrisos largos, pelo edil e por umas quantas reconhecidas figuras mediáticas locais. Seguiu-se uma visita programada aos bairros, ditos informais, aí se distribuíram abraços e se renovaram promessas, cumprindo-se os rituais de pré-campanha eleitoral.
Mais tarde, já no interior da coletividade, os palestrantes dirigiram-se à mesa e assumiram as suas posições. Os painéis contaram com a presença de promotores, ativistas afamados da cena cultural de Cabo Verde (e além-mar) e uns quantos académicos. Na plateia os moradores, desconfiados, miravam os palestrantes e ouviam os seus discursos, inspirados pela usual bazofaria institucional programada.
Os promotores do encontro, os conferencistas, os ativistas e os académicos, apesar das tensões sociais e das responsabilidades institucionais que o tema em análise despertava, evitaram levantar ou explorar questões polémicas, colocaram de parte as suas palavras de ordem e, em uníssono, contribuíram com os seus discursos de conveniência, para embrulhar a problemática da ausência de habitação condigna, num clima de festa governamental.
Porém, no período aberto à intervenção do público, surgiu uma questão que beliscou, por instantes, o consenso da cerimónia. Apesar da distância temporal, é inevitável recordar a pertinência da intervenção desalinhada, então efetuada.
A senhora, que assistia ao enredo cerimonial, pediu a palavra e alertou para o seguinte: de acordo com os princípios orientadores da cartografia da ação social, defendidos por Ana Clara Ribeiro e Milton Santos, é necessário ter um extremo cuidado na seleção dos parceiros, para a concretização de intervenções do género da Iniciativa Outros Bairros. E tal, segundo disse, parecia não estar a ser acautelado, uma vez que os principais promotores apresentados, a Câmara e o Governo, eram também os principais responsáveis pela ausência de resposta aos problemas de habitação, que grande parte da população enfrentava. Pelo que, continuou, quando se procede a um levantamento social do género, o teor das informações colhidas no terreno, deve ser tratado com prudência e confidencialidade, seja para respeitar a confiança, entretanto alcançada junto das populações, seja para defender os propósitos da intervenção, evitando divulgar informações que possam, por indevida utilização, fazer colapsar os objetivos e frustrar, uma vez mais, as expectativas dos moradores dos Outros Bairros.
O painel, alinhado com a tónica festiva do encontro, teceu algumas considerações generalistas e prosseguiu com o evento. Pois, naquele tempo, o governo de direita em funções, Movimento Para a Democracia (MPD) procurava, a todo o custo, encontrar uma iniciativa de remediação urbanística e social, capaz de mitigar as polémicas e dirimir os imbróglios criados pelo “Casa Para Todos”. Projeto que tanto fez engordar os senhores empreiteiros portugueses e alguns cabo-verdianos, sob a batuta do “visionário” José Sócrates, antigo Primeiro Ministro de Portugal.
Todos os presentes sabiam que essa necessidade era a motivação central do encontro, porém, todos, nos seus pedestais de hipócrita incúria, defenderam os seus postos e desviaram o rosto, não fosse a população presente capaz de perscrutar as suas reais intenções.
Após esta incursão temporal, voltemos ao Paleio no Centro Cultural de Mindelo e à triste realidade que, volvidos três anos, perdura nos Outros Bairros.
O evento, desta vez, não se destinava a celebrar coisa alguma, o clima não era de festa, das cerimónias e protocolos restavam apenas umas quantas memórias, alguns oradores de outrora ocuparam um silencioso lugar na plateia. As intelectualidades mediáticas, os académicos, os governantes, os representantes da autarquia, não compareceram, talvez por se encontrem a bordo de voos mais convenientes! Ausentes estiveram também os ativistas, quiçá o tema em apreço tenha deixado de ser rentável para a simentera dos seus egos!
Nuno Flores, desta vez sozinho, assumiu a tarefa de alimentar o Paleo sobre a IOB. Encolhendo os ombros, discorreu uma resenha histórica sobre os acontecimentos. Aqui e ali, proferiu comentários que deixavam adivinhar o incómodo, a desolação, a profunda tristeza a que esta iniciativa chegou.
Apesar da obra feita até ao momento, apesar do reconhecimento dos moradores do bairro… Hoje, lamentavelmente, o governo, o presidente da Câmara de São Vicente, alguns apoiantes e a comunidade ativista, que no início se empenhou na defesa da iniciativa, distanciaram-se dos holofotes. Recuaram, remeteram-se ao silêncio e aguardam que a iniciativa morra sozinha!
Estranha foi, também, a ausência da ordem dos arquitetos de Cabo Verde. Segundo foi referido, no decurso do Paleo, não se conhece uma posição oficial e clara acerca desta iniciativa, mesmo quando questionada acerca do assunto, ter-se-á remetido ao estratégico silêncio, servindo assim, direta ou indiretamente uma agenda encoberta, sobre a qual não se conhecem as reais motivações.
Igualmente incompreensível foi o silêncio de Ângelo Lopes, Arquiteto Coordenador Técnico da IOB. Presente na sala, mas à margem do Paleo, não fez ouvir o seu testemunho, pelo que ficamos sem saber se partilha a indignação de Nuno Flores, quanto à suspensão da iniciativa, ou se terá outra opinião. No entanto, estou certo que, apesar de ter optado pelo silêncio, a sua intervenção pública, nos inúmeros lugares de fala que ocupa, poderá servir para assegurar a efetiva continuidade desta iniciativa.
Creio que teria sido igualmente fundamental, quer na perspetiva de enriquecer o Paleo, quer na perspetiva de atender à defesa pública da IOB, termos tido a oportunidade de contar com o testemunho, claro e inequívoco do Coordenador metodológico do projeto de assentamento da iniciativa Manoel Ribeiro (especialista em Favelas), acerca do atual estado da IOB. Aguardamos, pacientemente, pelo seu posicionamento público.
Porém, apesar dos silêncios que se fizeram notar, o Paleo suscitou a necessidade de tecer algumas considerações, acerca do impasse em que se encontra a iniciativa.
Pelas informações partilhadas, podemos ser levados a pensar que a viabilidade e continuidade deste meritório projeto, só será possível se, entretanto, adquirir autonomia financeira. O que, num país com sérias limitações orçamentais, como é Cabo Verde, seria um problema difícil de ultrapassar. No entanto, e nas palavras do Arquiteto Nuno Flores a iniciativa não ganha outros contornos, porque o Governo de Cabo Verde se tem mostrado indisponível para avançar para outras etapas deste projeto. Inclusive (afirmou Nuno Flores) tem provas escritas que o estado português se mostrou interessado em financiar o projeto “outros bairros”, mas de forma peremptória e incompreensível o governo de Cabo Verde sempre recusou. Instado a apresentar essas provas documentais, Nuno Flores respondeu que este não é o momento mais oportuno para as apresentar.
Ora, dado a relevância do que está em causa, considero essas revelações particularmente gravosas, pelo que, necessitam ver-se esclarecidas.
Precisamos, em nome da transparência da relação entre os dois países, e quiçá em nome da viabilização da continuidade do projeto, de saber que condições serão essas, que o governo português terá proposto para a viabilização da Iniciativa Outros Bairros! Que contrapartidas terá exigido? Qual o teor e os termos concretos em que prevê o envolvimento dos promotores do IOB? Porque estará Portugal, uma vez mais, interessado num projeto relacionado com a habitação? E, não menos relevante, porque terá o governo de Cabo Verde declinado esta parceria? Terá o governo perdido o interesse na iniciativa, por considerar que projetos deste género, ao promoverem o envolvimento das comunidades na tomada de decisões e, ao estimularem a capacidade de construção de uma consciência cidadã e política, podem atrapalhar os planos governamentais?
Enquanto estas e outras questões não forem cabalmente esclarecidas, poderemos todos especular e todos os cenários serão verosímeis!
Entretanto, enquanto escrevo este artigo, centenas de famílias continuam a viver, em São Vicente, em condições habitacionais miseráveis, apesar de, paradoxalmente, muitas delas coabitam paredes meias com (espante-se o leitor) bairros e novos complexos habitacionais que, pese embora se encontrem concluídos, permanecem vazios.
É disso exemplo o bairro da Portelinha, construído, dentro dos prazos, pela cooperação chinesa e inaugurado, em janeiro de 2022 com pompa e circunstância pelo Governo de Cabo Verde, sob o olhar incrédulo e desolado da população das redondezas que, há muito se habituou a contar apenas com o presente. Porque, por estas bandas, o futuro talvez já nem a Deus pertença!
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