1. Um balanço, por mais breve que seja, mas que declara o falhanço do municipalismo em Cabo Verde, será sempre doloroso para os pioneiros que idealizaram e criaram as bases para o arranque do movimento autárquico nestas ilhas atlânticas. Pior ainda, num país quase completamente avesso a avaliações. Acontece que a avaliação do municipalismo ganhou carácter de urgência porque está-se a projetar novos saltos e fugas para a frente, acumulando mais erros ao processo de descentralização que nasceu muito torto. Nesta avaliação, tem de se evitar dramas porque, em princípio, os modelos teóricos são todos bons. O problema é a realidade onde são aplicados: se o Tribunal de Contas anda meia dúzia de anos atrasado no julgamento das contas das câmaras municipais ou não; se a Procuradoria Geral da República é marcada por inação ou não; se a sociedade civil – pior ainda a do próprio município – está condicionada ou não, pois as câmaras são os melhores centros de emprego locais, além das oportunidades chorudas de consultoria; e, por fim, se a comunicação social tem ou não jornalismo capaz de escrutinar o trabalho de autarcas!
2. Há três grandes razões que constituem indicadores do falhanço do municipalismo caboverdeano. Em primeiro lugar, (i) as câmaras municipais estão falidas e endividadas e nenhuma instituição no país tem dados precisos da dimensão dessa falência e endividamento. Incapazes de gerar recursos próprios, encontramos 40% de autarquias em que o peso dos recursos do Governo, recebidos através do Fundo de Financiamento Municipal (FFM), é igual ou superior a 40% do total das suas receitas. Ribeira Grande de Santo Antão e São Salvador do Mundo receberam mais de metade das suas receitas desse FFM (Quadro 1)! Em segundo lugar, (ii) as câmaras municipais revelaram-se incapazes de fazer uso de grande parte das competências que lhe foram atribuídas por lei. Com efeito, há 40% de autarquias que não consegue implementar quase metade das suas atribuições, oscilando entre 40 e 45% (Quadro 2). E, por fim, (iii) as câmaras municipais aparecem no top 3 das instituições que os caboverdeanos consideram como das mais corruptas do país;
3. Estes dados da corrupção estão no estudo sobre a perceção da corrupção em Cabo Verde de 2017, elaborado pela Afrosondagem. Já os dados sobre o peso dos recursos recebidos do Governo e da fraca capacidade dos municípios em cumprir com as suas competências foram divulgados pelo estudo que fez a análise dos vinte anos do municipalismo em Cabo Verde, publicado em 2014 e que na página 17, diz, de forma clara: “À luz da CRCV [Constituição da República de Cabo Verde], facilmente, se depreende que os municípios estão longe de cumprir integralmente todas as suas atribuições e competências, tanto no que se refere à prestação de serviços aos cidadãos, à promoção da democracia local e da cidadania, como ao desenvolvimento económico local”. Os autores deste estudo foram José Semedo, Carlos Veiga, Jacinto Santos e Floresvindo Barbosa;
4. Esta profunda constatação é de 2014, por isso, pode-se perguntar o que terá mudado dessa altura até ao presente para que a avaliação do municipalismo saia do grau de falhanço? Foi apresentado algum grande programa nacional de capacitação dos municípios caboverdeanos? Foi implementada alguma iniciativa autárquica de contratação definitiva de especialistas em desenvolvimento local? Há algum município que se tornou especialista em alguma matéria? Foram resolvidas as questões de formação profissional, transporte e planeamento urbanos e acesso à habitação condigna? Não! E, ainda, lembremo-nos de que uma das competências em que as câmaras municipais falharam quase por unanimidade é na capacitação dos seus recursos humanos!
5. Cabe também a todos, os profissionais das mais diversas áreas; os independentes – mas que também votam –; os indivíduos membros de instituições públicas e privadas; as pessoas integrantes de credos religiosos; o homem e a mulher trabalhadores do mundo rural; os jovens de todos os cantos e de todas as ilhas; enfim, cabe a cada um – enquanto cidadão – refletir e decidir se é este o modelo de municipalismo que é o melhor para o presente e para o futuro desenvolvimento deste país. Cabe a todos, pois como diz o meu amigo José Casimiro Pina: “na democracia o povo não pode ser eternamente vítima. A partir de um certo tempo, torna-se cúmplice”;
6. O que é que cria este “desenvolvimento calcetamento”, ou “desenvolvimento pavê”? Que avanço representa em relação aos grandes problemas locais e nacionais, como a pobreza, o desemprego e a capacidade produtiva instalada apenas num nível ligeiramente para além da subsistência? Por isso, esta é a hora de avaliar em termos globais – na perspetiva de uma ampla reforma do Estado – e não acrescentar mais erros em cima do processo autárquico já falhado, uma vez que as câmaras municipais “estão longe de cumprir integralmente todas as suas atribuições e competências”.
Anexos:
- Perceção da corrupção aumenta em Cabo Verde, segundo um estudo da Afrosondagem, 23 Maio 2018
- Estudo diagnóstico sobre o processo de descentralização em Cabo Verde, 2014
Quadro 1: Peso de FFM nas receitas Totais cobradas de 2002 a 2012 (valores em contos)
Quadro 2: Municípios segundo a quantidade de competências não assumidas e assumidas, mas não executadas
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