A pergunta da discórdia não é apenas uma falha de um professor ou de uma comissão de exames. É um sintoma claro de um sistema que precisa de mais vigilância, mais debate e, sobretudo, mais respeito pela complexidade do passado e mais competência da parte de seus gestores. Se queremos formar cidadãos livres e críticos, a História deve ser ensinada com fontes plurais, vozes contraditórias e narrativas abertas — e nunca como uma lição ditada pelo poder do momento.
No meio da habitual “tranquilidade” das provas finais do 12.º ano, uma pergunta do exame nacional de História gerou polémica — e não sem razão. O que parecia, à primeira vista, uma questão normal de interpretação da história recente, revelou-se um espelho de problemas mais profundos do sistema educativo cabo-verdiano.
Mais do que uma tentativa deliberada de instrumentalização ideológica da escola, esta pergunta tornou-se um sinal claro de uma falha estrutural: o insucesso da reforma educativa em garantir rigor, equilíbrio e pensamento crítico no ensino da História.
A Pergunta Polémica
A questão em causa, inserida no tema “Percurso da institucionalização da democracia”, apresentava dois documentos: uma declaração política do MPD, datada de 14 de março de 1990, e uma afirmação recente do Presidente da República (35 anos depois do primeiro documento), exaltando Carlos Veiga como “champion da liberdade e da democracia”. Com base nestes textos, os alunos deviam:
- Identificar fatores internos e externos que levaram ao fim do regime de partido único;
- Comentar o papel de Carlos Veiga na institucionalização da democracia.
Onde Está o Problema?
À primeira vista, a pergunta parece cumprir os objetivos curriculares: leitura de documentos históricos, contextualização e análise crítica e, especificamente, Descrever o papel de Carlos Veiga, do seu governo e do novo parlamento na produção legislativas de reforço do Estado Democrático, conforme consta do Programa de História – 12.º Anos de escolaridade – Componente de Formação Específica – Área de Humanística, pagina 16. No entanto, uma análise mais atenta revela diversos erros pedagógicos e epistemológicos.
1. Fontes desequilibradas e descontextualizadas
Os dois documentos apresentados são de natureza diferente. Um é um manifesto partidário de 1990; o outro é uma homenagem feita 35 anos depois, por uma figura institucional. Não há equilíbrio temporal nem institucional. O documento adequado como contraponto ao do MPD seria, logicamente, um posicionamento do PAICV (mencionado no excerto) emitido na mesma época, e não uma reflexão institucional tardia, e ainda feita pelo Presidente da República.
2. Confusão entre facto histórico e opinião política
Apresentar um documento do MPD como fonte histórica objetiva ignora que se trata de um texto opinativo, de um partido em formação, claramente interessado em construir uma narrativa própria. O programa curricular exige que o aluno “interprete factos na linha do ofício dos historiadores” e “analise teorias históricas”. Isso pressupõe o uso de fontes plurais, factuais e contraditórias — o que não aconteceu.
3. Exaltação unilateral de uma figura política no próprio programa
A prova convida implicitamente os alunos a glorificarem Carlos Veiga, sem margem para o debate. Isso fere a neutralidade exigida no espaço escolar. O próprio programa de História (p. 16) refere Carlos Veiga como figura central da transição democrática. Mas esta leitura é redutora e historiograficamente incorreta. O processo de abertura começou com o discurso de 19 de fevereiro de 1990, ainda sob a liderança do PAICV. O multipartidarismo foi uma conquista coletiva, fruto de fatores internas e externos, e não de um único homem.
4. Seleção incorreta dos conteúdos programáticos
A prova concentra-se no ponto 2.4.4 do programa — “O papel de Carlos Veiga na institucionalização do Estado de Direito” — ignorando os passos e atores anteriores e essenciais da transição democrática, como:
- A abertura política (2.4.1),
- A criação do MPD (2.4.2),
- As primeiras eleições democráticas (2.4.3).
Focar apenas no último ponto é inverter a lógica da história. Como se a democracia tivesse surgido depois da vitória e não antes dela.
Uma Reforma que Precisa de Reforma
Este episódio evidencia o que muitos educadores vêm alertando: esta reforma segue sem a correta vigilância epistemológica, os programas (do 12.º, incluído) foram mal testados, mal acompanhados e mal corrigidos. A experimentação não foi devidamente monitorizada. Como consequência, erros conceptuais e pedagógicos escaparam ao crivo da avaliação, tornando-se normativos — e agora aparecem em exames nacionais.
O ensino da História não pode ser usado como palco de elogios de instituições partidárias e seus agentes nem de promoção de narrativas enviesadas. O espaço da escola exige pluralidade, rigor e pensamento crítico.
Conclusão
A pergunta da discórdia não é apenas uma falha de um professor ou de uma comissão de exames. É um sintoma claro de um sistema que precisa de mais vigilância, mais debate e, sobretudo, mais respeito pela complexidade do passado e mais competência da parte de seus gestores.
Se queremos formar cidadãos livres e críticos, a História deve ser ensinada com fontes plurais, vozes contraditórias e narrativas abertas — e nunca como uma lição ditada pelo poder do momento.
Comentários
Xines de Platô, 13 de Jun de 2025
País de cegos, onde não falta nem a mansidão nem a quietude – nem a resignação. Onde os zarolhos que há querem ser reis – a fim de dar razão a um velho provérbio. Tudo em ordem a mandar bater no ceguinho. São, pois, menos simpáticos os zarolhos. País algo cinzento, cumpridor das normas. Para nós, grande multidão dos cegos, uma consolação porém: nunca os zarolhos, naturais detentores do poder, hão de conhecer os supremos prazeres do país em que vivem.
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Xuxu Pé de Ferro, 13 de Jun de 2025
O Eleutério conhece a matéria e aborda-a com competência. Curioso são os comentários: numa matéria muito mais candente e com impacto civilizacional, que é a questão linguística, todos fingem que não veem. A UCID não conta, o PAI é historicamente o parido dos nortistas, e o MPD é o partido traidor da ilha de Santiago. Como disse o Eleutério aqui neste podcast https://www.youtube.com/watch?v=R0ju9_X6zhw «badiu inda ka txiga puder».
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Inácio David, 12 de Jun de 2025
Só RIOLA e INTRIGA!!! VIVA CARLOS VEIGA?????. “ CHAMPION DA LIBERDADE”, PRESIDENTE É K DZE!!!! Agora Bzot CRY ME A RIVER!!!
Inacio David, 12 de Jun de 2025
É VIVA CARLOS VEIGA, MESMO. SEM PONTO DE INTERROGAÇÃO.Responder
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Olisses, 12 de Jun de 2025
A verdade é que deste governo já nada surpreende mas o mais triste são as figuras dos engraxadores de turno e o aproximar do fim de uma gestão insuficiente em quase todas as áreas. Pergunto, como MJ, ao Man in the Mirror, porque sim, no final do dia, temos que nos ver a nós mesmos no espelho e tentar justificar todas os malabarismos que efetuamos para chupar ou engraxar aos dirigentes do MPD. Será que o indivíduo não consegue discernir entre a falácia e a realidade?
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Leão Vulcão, 12 de Jun de 2025
Meus parabéns ao PROFESSOR Eleutério Afonso, SINEIRO DA VERDADE na sua especialidade e frontalidade ao sistema de ensino escolar em Cabo Verde, sem papas na língua.
Parabéns Sr. Jorge Lopes que basicamente pôs tudo no prato limpo. Parabéns à prima Champion of Champions, "poeira, cinza e lava do Cume de Cabo Verde" Helena Fontes - que nada deixa passar, esqueça!
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Victor Fortes, 12 de Jun de 2025
Fantástico, Eleutério! Um abraço.
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Jorge Lopes, 12 de Jun de 2025
Confesso que li este artigo com um misto de inquietação e alívio. Inquietação, porque a situação descrita revela uma falha estrutural grave — não apenas no conteúdo de um exame nacional, mas no próprio desenho e supervisão da reforma educativa que o sustenta. Alívio, porque ainda há vozes lúcidas e comprometidas com a dignidade do ensino público que ousam denunciar o que muitos preferem ignorar.
Jorge Lopes, 12 de Jun de 2025
A pergunta polémica do exame de História do 12.º ano de 2025 é, para mim, muito mais do que um erro de formulação. É uma distorção metodológica com implicações jurídicas e cívicas sérias. Estamos a falar de um exame nacional — um instrumento com força normativa que define percursos, valida competências e molda consciências. Não pode, em caso algum, ser contaminado por parcialidade ideológica.Jorge Lopes, 12 de Jun de 2025
Do ponto de vista do direito à educação consagrado constitucionalmente, há aqui uma questão sensível de violação do princípio da neutralidade pedagógica do Estado, que deve garantir um ensino baseado em pluralidade de perspectivas, rigor científico e promoção do pensamento crítico — e não a glorificação unilateral de figuras ou partidos. Concordo plenamente com o autor: apresentar como fontes dois documentos desequilibrados no tempo e na natureza institucional, e depois pedirJorge Lopes, 12 de Jun de 2025
aos alunos que avaliem o papel de uma figura política, sem o devido enquadramento contraditório, é epistemologicamente imprudente e juridicamente censurável. Fere o direito dos alunos a uma avaliação justa e objectiva. Mais preocupante ainda é perceber que este tipo de enviesamento não é acidental, mas antes sintomático de uma reforma educativa mal conduzida, sem avaliação séria nem vigilância crítica.Jorge Lopes, 12 de Jun de 2025
Quando o ensino da História é reduzido a uma sucessão de narrativas acríticas ditadas por quem está no poder — seja qual for o partido —, estamos a recuar para uma pedagogia autoritária. Neste momento, mais do que um simples pedido de desculpas ou correcção apressada, o que se exige é uma auditoria pedagógica e institucional séria ao processo de elaboração de exames, ao acompanhamento da reforma, e à formação dos próprios docentes e avaliadores.Jorge Lopes, 12 de Jun de 2025
O que está em causa não é só a verdade histórica — é a integridade do sistema educativo. Sim, a História tem de ser ensinada com fontes plurais, vozes contraditórias e abertura à complexidade. Tudo o resto é doutrinação — e doutrinar alunos, ainda por cima em nome da democracia, é uma contradição que Cabo Verde não pode aceitar calado.Responder
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Manuel Mota, 12 de Jun de 2025
Tudo dito. O articulista conhece muito bem a história de abertura política.
Os políticos deverão ter isso em conta nas tomadas de decisões, relative a esfa matéria...
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Helena Fontes, 12 de Jun de 2025
Brilhante, assertiva e oportuna análise que impõe a imperiosa revisão da tal reforma do sistema de ensino, imposto desde 1993, pelos tais donos do poder de então e de agora!
É urgente sim, uma reforma de todo sistema educativo!
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Carlos De Pina, 12 de Jun de 2025
Excelente análise !
Parabéns ! Nada a acrescentar !
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