A liberdade de imprensa, o dinheiro que nunca mais acaba e as eleições em Nova Iorque
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A liberdade de imprensa, o dinheiro que nunca mais acaba e as eleições em Nova Iorque

O primeiro-ministro reagiu cauteloso ao processo disciplinar movido contra Dina Ferreira. Percebe-se a táctica: em vésperas de eleições, o Governo e o partido que o sustenta nada teriam a ganhar em uma nova briga com os jornalistas, para mais quando a opinião pública tem sobre eles um olhar de simpatia e os profissionais da RTC não pretendem baixar os braços. No limite, vendo-se o executivo muito apertado pela opinião pública, Ulisses atira para a fogueira o Conselho de Administração da RTC.

Ulisses Correia e Silva que, por feitio e norma de conduta, fica sempre em cima do muro e costuma atirar a terceiros a responsabilidade de se explicarem ao país em nome do Governo, abriu uma excepção. O primeiro-ministro, desta vez, não virou costas aos questionamentos dos jornalistas (como havia feito no caso do “hospital de excelência” e da crise energética) e, sem arrogância, na versão “Ulisses paz e amor” (o que dá sempre jeito em períodos pré-eleitorais), disse de sua justiça sobre o tortuoso processo disciplinar cozinhado pela administração da RTC contra a jornalista Dina Ferreira, que foi suspensa por um período de 45 dias e sem direito a salário.

Ulisses Correia e Silva, cauteloso, lá foi apelando à prudência, defendendo o apuramento dos factos e que falta ser “provado e comprovado” que houve, de facto, violação da liberdade de imprensa por parte da administração da RTC. O primeiro-ministro, contudo, embora sublimando a necessidade de “objetividade e prudência no debate público”, não resistiu à tentação de - ele próprio - se posicionar contra a objetividade e a prudência, entrando de cabeça numa táctica a que este Governo já nos habituou, de mistificação da realidade e manipulação de factos incontestáveis.

Efetivamente, ao defender que a apuração dos factos deve envolver entidades independentes, omitiu, intencionalmente, que a Autoridade Reguladora para a Comunicação Social (ARC) já deliberou nesse sentido, dando razão a Dina Ferreira e considerando que a arguida (neste caso, a administração da RTC) é “culpada por ingerência e violação da autonomia editorial da TCV”, tendo-lhe, ainda, aplicado uma coima de 350 mil escudos.

Pese o seu descambar para uma inverdade, fazendo crer que ainda nenhuma entidade independente se havia pronunciado, Ulisses distanciou-se, de alguma maneira, da atitude arrogante e autoritária da PCA da RTC, adiantando que “se houver a prova e a comprovação de que a motivação do processo disciplinar foi cercear a liberdade de imprensa”, o Governo poderá intervir de forma mais incisiva.

Percebe-se a cautela táctica do primeiro-ministro: em vésperas de eleições, o Governo e o partido que o sustenta nada teriam a ganhar em uma nova briga com os jornalistas, para mais quando a opinião pública tem sobre eles um olhar de simpatia e os jornalistas da RTC não pretendem baixar os braços. No limite, Ulisses atira para a fogueira o Conselho de Administração (CA) da RTC.

Autonomia editorial é inegociável

A memória não se pode apagar e deve, pelo contrário, ser permanentemente exaltada para que a verdade não possa ser manipulada. E a verdade é que a ARC não anunciou apenas uma deliberação. De facto, nos últimos meses, a entidade independente (para usar uma expressão do primeiro-ministro) tornou públicas duas deliberações, concluindo sem ambiguidades que a administração da RTC interferiu ilegalmente em competências da responsabilidade exclusiva da direção da televisão pública.

Na deliberação 06/CR-ARC/2025, relativa ao programa “Nha Terra Nha Cretcheu”, a ARC determinou que o CA violou o artigo 40.º, n.º 6, da Lei da Televisão ao celebrar um contrato definindo conteúdos, periodicidade e horários sem aprovação editorial da então diretora da TCV. A lei é clara: a administração gere meios e recursos, a definição de conteúdos é competência da direção editorial.

Ora, só por ignorância ou má-fé o CA meteria a mão em competências que não são suas. Mas, persistir na ignorância e ultrapassar linhas vermelhas definidas pela legislação e garantidas constitucionalmente, tornando-se reincidente, já a coisa pia mais fina…

E foi o que aconteceu pela segunda vez, num curto espaço de tempo, conforme, aliás, foi plasmado na deliberação 56/CR-ARC/2025, sobre a sabotagem promovida pelo CA na realização de um directo de uma das edições do “Show da Manhã”, no Tarrafal de Santiago, com a ARC a concluir, de novo, que o CA interferiu em matéria editorial. No entanto, foi ainda mais longe, ordenando a abertura de um processo de contraordenação contra cada um dos membros do Conselho de Administração por intromissão editorial grave.

"Há dinheiro que nunca mais acaba" - a saga continua...

A expressão, muito enfatizada por Olavo Correia, anos atrás, adquiriu agora uma nova circunstância e novos protagonistas. Com Ulisses e o novo “garoto-propaganda” da governação, Eurico Monteiro (diga-se de passagem, dos poucos do executivo com autoridade e habilidade política) a recauchutarem o “há dinheiro que nunca mais acaba” em vésperas de eleições e com objectivos facilmente deduzíveis…

Num périplo pela Europa, os dois encontraram-se com governantes, empresários e as comunidades cabo-verdianas, procurando passar a mensagem de que “agora é que é” e que, nos oito meses que faltam para as eleições, irão realizar o que não fizeram em nove anos de governação.

Vem aí investimento externo, acrescidos apoios de governos estrangeiros e mais o que a fértil imaginação da propaganda pode produzir. Só que há um problema: o “dinheiro que nunca mais acaba”, a confirmar-se e com alguma sorte, só entrará nos cofres do Estado lá para meados de 2026, precisamente o ano em que se realizam as eleições.

Na mesma linha, o primeiro-ministro anunciou nesta sexta-feira o novo foco das políticas do Governo, para mais já contempladas no orçamento (do próximo ano, entenda-se…). Agora, é a juventude que está na mira do executivo de Ulisses. E vale prometer tudo e mais alguma coisa, às pressas, em cima da hora, que as eleições estão aí ao virar da esquina.

Reforçar políticas públicas voltadas para a juventude, com destaque para a habitação, formação profissional e emprego foi anunciado pelo primeiro-ministro, enfatizando que “quando há mais crescimento, há mais empresas, mais empregos e mais oportunidades para os jovens criarem os seus próprios negócios” – mais uma mistificação para ocultar a verdade objectiva, aliás, anunciada pelo Banco de Cabo Verde (BCV): a economia não está a crescer, pelo contrário, desacelerou.

Efetivamente, o BCV aponta para um crescimento de 5,5 porcento (%) em 2025; 4,8% em 2026 e 5% em 2027, refletindo uma desaceleração face aos 7,2% registados em 2024.

Sempre se pode aludir ao Fundo Monetário Internacional (FMI) que, recentemente, debitou que a economia cabo-verdiana está de “boa saúde”, mesmo descontando recorrentes previsões do FMI, em outras latitudes, que se manifestaram furadas.

Numa perspectiva optimista, quando muito, poderá dizer-se que o país não está na bancarrota (e ainda bem!), mas que a economia desacelerou é um facto, confirmado pelo último relatório do BCV.

As lições de Nova Iorque

Poderá questionar-se: mas, afinal, o que as eleições em Nova Iorque têm a ver connosco? Têm tudo a ver, connosco e com o mundo inteiro. Afirmando-se como socialista e muçulmano (duas identidades susceptíveis de preconceito e estigmatização), Zohran Mamdani, ao ser eleito “mayor” da maior cidade dos Estados Unidos da América (EUA), infligiu a maior derrota de sempre a Donald Trump (desde que foi eleito pela segunda vez), mesmo sem o inquilino da Casa Branca constar no boletim de voto.

A cidade historicamente construída e mantida por imigrantes, tem agora um imigrante a liderá-la, pesem embora as ameaças de Trump em cortar fundos federais a Nova Iorque.

Partindo de previsões eleitorais que não lhe davam mais de 1% nas urnas, Mamdani venceu as eleições com mais de 50% dos votos, um feito só possível pela habilidade com que geriu a campanha, a linguagem da propaganda nas redes sociais e priorizando o contacto directo com os eleitores.

Debatendo-se com uma confrangedora falta de dinheiro, Zohran Mamdani assumiu-se com simplicidade, apresentando propostas concretas dirigidas aos eleitores comuns, principalmente aos trabalhadores, aos jovens, às mulheres e aos imigrantes, não se escondendo por detrás do politicamente correcto, dizendo, com toda a frontalidade que irá acabar com o escândalo da especulação imobiliária, as rendas abusivas geradas pela ganância dos senhorios, a gratuitidade do transporte público, apontando o dedo ao genocídio na Faixa de Gaza e denunciando o apartheid em Israel.

Mamdani rompeu com a tendência das últimas décadas: com toda a gente em cima do muro e dizendo o que a classe dominante queria ouvir. Ao assumir a sua identidade de esquerda e ao falar de forma clara em socialismo (uma palavra maldita na “maior democracia do mundo”), Zohran Mamdani não se acobardou, separou águas e clarificou ideologicamente o debate político, provando que a tibieza e a falta de coluna vertebral já não são a receita mágica para se ganhar eleições. E isso é uma grande lição para o mundo!

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